Como o Brasil almeja eliminar até 2030 a hepatite C, que causa 400 mil mortes ao ano no mundo

BRASIL

ROTANEWS176 E BBC BRASIL.COM 19/05/2018 16:08

Um dos maiores de problemas de saúde globais pode ser contido graças a nova leva de medicamentos mais eficientes, agora disponíveis pelo SUS; médico Jairo Bouer explica por que essa infecção é tão perigosa.

Até 2030, é possível que o Brasil e o mundo consigam conter a hepatite C, um dos maiores problemas de saúde pública globais, com mais de 71 milhões de pessoas infectadas (700 mil delas no Brasil) e 400 mil mortes por ano no planeta.

Reprodução/Foto-RN176  Hepatites atrapalham o funcionamento do fígado; tipo C da doença é o mais letal e não tem vacina Foto: Getty Images / BBCBrasil.com

O motivo principal disso é um grande avanço da medicina: tratamentos com novos antivirais, mais efetivos, de curta duração e com menos efeitos colaterais, têm ganhado escala em diversos países e levado à cura em até 90% dos casos. O Ministério da Saúde universalizou há um mês o acesso a esses novos medicamentos através do Sistema Único de Saúde (SUS), medida que pode ser fundamental para o Brasil alcançar a meta da Organização Mundial da Saúde (OMS) de controle da infecção – embora especialista diga que a universalização ainda precisa ocorrer na prática.

Até o início desta década, os únicos tratamentos disponíveis, com uso combinado de um antiviral mais antigo (ribavirina) e interferon (modulador da resposta imunológica), podiam demorar até um ano, com muitos efeitos colaterais, taxas de sucesso relativamente baixas (cerca de 50%) e risco de retorno da infecção quando os medicamentos eram interrompidos.

Os novos antivirais, conhecidos como DAAs (antivirais de ação direta), usados isoladamente ou em associação, ampliaram o arsenal contra o HCV, encurtaram o tempo de tratamento (para 8 a 12 semanas), têm efeitos colaterais toleráveis e atingem taxas de sucesso na casa dos 90%-95%, mesmo em estágios mais avançados de doença hepática. Até pacientes que antes não tinham indicação para um transplante de fígado (pelo alto risco de recorrência da hepatite C) passaram a ter suas chances reavaliadas.

Os mais novos DAAs prometem ser ainda mais efetivos, simplificando o tratamento e resolvendo as infecções causadas por qualquer um dos genótipos do vírus (com a geração anterior havia a necessidade de testes genéticos para definir qual droga deveria ser empregada contra cada tipo de HCV).

Além de curar as pessoas, os DAAs trouxeram a esperança da redução significativa do risco de transmissão da hepatite C, o que levou os especialistas a considerarem a perspectiva de uma eventual eliminação de novas infecções pelo HCV.

Segundo Hugo Cheinquer, professor titular de hepatologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, eliminar não equivale a erradicar o vírus, o que dependeria provavelmente de uma vacina (que não existe) aplicada na maior parte da população. Eliminar o vírus até 2030, de acordo com as metas da OMS, significa reduzir em até 90% a chance de novas infecções e a diminuição em até 65% do número de mortes causadas pela hepatite C.

Doença silenciosa

Um dos grandes desafios hoje é identificar quem possui a doença, mas desconhece sua condição, já que ela pode permanecer “silenciosa” por décadas. Outra barreira é garantir que o tratamento seja, de fato, acessível para todos os infectados, já que o custo elevado e a logística de distribuição dos medicamentos podem ser limites importantes para os sobrecarregados sistemas de saúde pública dos países em desenvolvimento.

A infecção pelos vírus da hepatite C (HCV) é transmitida basicamente pelo sangue. A maior parte dos portadores se infectou em transfusões realizadas antes de 1992 (quando ainda não existiam testes específicos para detecção do vírus nos bancos de sangue) ou ao compartilhar agulhas e seringas, principalmente entre usuários de drogas injetáveis. Em quase um terço dos casos se desconhece a origem da infecção (transmissão na gestação, sexo sem proteção ou uso de materiais domésticos ou hospitalares com sangue contaminado são algumas possibilidades).

Reprodução/Foto-RN176  Maior parte dos portadores se infectou em transfusões realizadas antes de haver testes específicos ou ao compartilhar agulhas e seringas Foto: Getty Images / BBCBrasil.com

Cerca de 20% dos infectados se curam espontaneamente, mas os demais 80% evoluem para uma infecção crônica (mais ou menos grave) que leva até 20 anos para se manifestar. O vírus provoca um processo inflamatório no fígado que pode causar danos sérios antes de ser detectado.

Em teoria, quanto mais cedo a detecção e o tratamento, maiores as chances de cura, com menos impactos para a saúde. A doença é hoje uma das principais responsáveis pela insuficiência hepática, cirrose, câncer do fígado e a necessidade de transplante do órgão. Cerca de 20% das infecções crônicas evoluem para cirrose e, de 1% a 5% para câncer de fígado.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as hepatites virais (incluindo as hepatites A,B,C,D e E) mataram 1,4 milhão de pessoas em 2016, mais do que malária, tuberculose ou aids.

Nos EUA, por exemplo, de acordo com dados dos Centros de Controle de Doenças (CDC), a hepatite C atinge hoje 4,1 milhões de pessoas (quase 4 vezes o número de portadores do HIV, causador da aids), mata mais do que qualquer outra infecção e o número de casos só vem aumentado, principalmente em função da epidemia de drogas opioides.

Brasil

Dados do Ministério da Saúde estimam que 700 mil pessoas estão cronicamente infectadas com o HCV. Aproximadamente dois terços desse montante não sabem que têm a doença. Foram realizados 319 mil diagnósticos de 1999 até 2016 e, cerca de 67 mil pessoas já receberam os novos tratamentos contra hepatite C.

De acordo com Cheinquer, descontados os casos tratados e os óbitos no período, cerca de 100 mil pessoas estão hoje na “fila de espera” dos novos medicamentos no SUS, além daqueles que ainda vão ser identificados. O plano para atingir a meta da OMS até 2030 prevê o tratamento de cerca de 600 mil pessoas.

Um modelo matemático da eliminação da hepatite C, apresentado pelo Ministério da Saúde no último Congresso Internacional do Fígado, que aconteceu em Paris no início de abril, mostra que um esforço concentrado do país, a partir de 2018, para aumentar a detecção de casos nas populações de alta prevalência e a ampliação do acesso aos novos medicamentos, tornaria possível alcançar os objetivos da OMS.

Segundo Edison Parise, presidente do Instituto Brasileiro do Fígado, da Sociedade Brasileira de Hepatologia, a boa notícia é que no mês passado, o tratamento no Brasil, antes restrito a pacientes com doença avançada (apenas graus 3 e 4 de fibrose no fígado), foi universalizado para todos pacientes que testem positividade para o vírus, independentemente da gravidade da doença.

‘Tirar universalização do papel’

Cheinquer também avalia que universalizar o acesso no Brasil é um avanço. No entanto, ele aponta uma série de questões estruturais que podem limitar o uso dos medicamentos. “Em diversas regiões do país, uma consulta com um especialista e a espera pelos novos tratamentos pode levar até um ano. A lista de espera não leva em conta a gravidade dos casos. Pacientes com a doença mais avançada, muitas vezes, não podem esperar tanto tempo. Quem tem recursos pode até importar os antivirais, mas quem não tem condições financeiras vai ter que aguardar. É importante tirar a universalização do papel e colocá-la em prática”, diz ele.

O Ministério da Saúde informa que os medicamentos que já estavam disponíveis vêm sendo distribuídos regularmente para as unidades de alto custo, porém os que foram recentemente incorporados ao SUS, no protocolo revisado de 2018, têm prazo de 180 dias para chegarem às unidades. Quanto à demora no atendimento, nas regiões com problemas locais, a capacidade poderia ser expandida recorrendo à atenção básica, e não exclusivamente aos serviços de assistência especializada.

Outra questão central, segundo Parise, é identificar quem ainda está fora da fila de espera.

“No mundo todo houve uma recontagem dos casos prováveis de hepatite. Certamente as prevalências antigas superestimaram o número de portadores da doença. No Brasil não foi diferente. Hoje estamos falando em 0,5% a 0,6% da população. Acreditamos que ainda reste um considerável contingente de pacientes a ser detectado, e que esses casos se concentrem em indivíduos acima de 40-45 anos, que devem ser os pacientes testados prioritariamente. Outras populações de risco incluem usuários de drogas injetáveis, encarcerados e pacientes submetidos a hemodiálise”, afirma.

Ainda segundo o Ministério da Saúde, entre as estratégias para ampliação do diagnóstico e tratamento será necessário realizar nos próximos anos 9,5 milhões testes rápidos para hepatite C e tratar 50 mil pacientes anualmente.

Reprodução/Foto-RN176  Nova leva de medicamentos têm eficácia muito superior Foto: Getty Images / BBCBrasil.com

Reino Unido: o primeiro a eliminar?

Em janeiro, o NHS (sistema público de saúde do Reino Unido) anunciou que pretende eliminar a hepatite C até 2025, cinco anos antes da meta definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o que tornaria o país o pioneiro em dar uma resposta efetiva à eliminação do HCV.

Para isso, o NHS convocou os laboratórios produtores dos novos tratamentos para discutir uma redução no custo das novas tecnologias antivirais. Parte do acordo envolve auxílio da indústria farmacêutica na identificação de potenciais pacientes.

Mais do que tratar, para o NHS, o problema central é identificar os portadores, principalmente as pessoas que se infectaram há muito tempo e os grupos sociais que tendem a ficar mais longe dor serviços de saúde, como os usuários de drogas. Testes rápidos (de sangue ou saliva) que possam ser realizados em qualquer lugar (não apenas em laboratórios ou postos de saúde) e testes de autoaplicação (como os que existem hoje para diagnosticar o HIV) poderiam trazer mais pessoas para o tratamento.

Reprodução/Foto-RN176  Será necessário realizar no Brasil, nos próximos anos, 9,5 milhões testes rápidos para hepatite C e tratar 50 mil pacientes anualmente Foto: Getty Images / BBCBrasil.com

O exemplo do Egito

O Egito, país com a maior prevalência de hepatite C do mundo (7% da população de 15 a 59 anos tem uma infecção ativa pelo HCV), iniciou já em 2015 um extenso programa de combate à doença. A epidemia no país foi desencadeada nos anos 1950, após um programa para tratamento em massa da esquistossomose, que foi feito sem o uso de agulhas e seringas devidamente esterilizadas.

Acredita-se que mais de 1,3 milhão de pessoas já foram curadas. O programa egípcio envolveu a criação de um site, onde as pessoas infectadas podem se inscrever para receber o tratamento gratuitamente, negociação com a indústria farmacêutica para revisão do preço dos antivirais disponíveis e, finalmente, a produção local de um dos medicamentos, o que reduziu o custo total do tratamento para menos de 1% do valor praticado nos países desenvolvidos.

A lista de espera para tratamento foi zerada em 2016 e, os esforços das autoridades de saúde se concentram agora em identificar outros possíveis 3 milhões de portadores do vírus, que não sabem que são portadores.

Egito, Austrália, França, Geórgia, Alemanha, Islândia, Holanda, Japão e Qatar são os nove países considerados exemplos nas estratégias de combate à hepatite e que devem atingir as metas da OMS até 2030.

Havendo vontade política de todas esferas de poder e coordenação das ações, o Brasil, quem sabe, em breve, pode fazer parte dessa lista.

*Jairo Bouer é médico-psiquiatra pela Universidade de São Paulo (USP), biólogo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestrando em antropologia evolutiva na University College London (UCL). Colaborou com os principais veículos de mídia no Brasil, como Rede Globo, CBN, Folha de S. Paulo, Estado de São Paulo, Revista Época e UOL.

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