Festa sergipana lembra com ‘dor’ e tinta a escravidão

ROTANEWS176 E O DIA  29/10/2017 10:00

Laranjeiras celebra desde o século 19 o ‘embate’ dos Lambe-Sujos com os Caboclinhos. Conheça

Sergipe – Injustamente mais conhecido como o menor do Brasil, o Estado de Sergipe se orgulha de seu grande passado e da gigantesca cultura popular. Desde o fim do século 19, a Festa dos Lambe-Sujos e Caboclinhos, uma das manifestações mais tradicionais da nação, acontece anualmente no Município de Laranjeiras, a 30 km de Aracaju, na segunda semana de outubro. Trabalhadores e estudantes se transformam em reis e rainhas e protagonizam momentos de êxtase na representação de uma luta, mas o tom é de festa. O repórter-fotográfico Severino Silva acompanhou a edição deste ano e conta para nós o que viu.

Reprodução/Foto-RN176 O ‘líder dos escravos’ se destaca no início dos festejos, sempre toda segunda semana de outubroSeverino Silva / Agência O Dia

A guerra entre os Lambe-Sujos e Caboclinhos é uma representação das investidas que indígenas faziam contra os quilombos a mando dos engenhos. O objetivo era derrotar e aprisionar os negros escravos fugidos, já que os índios conheciam melhor a região e eram recompensados com os bens materiais que pudessem saquear dos negros.

No calor da festa, desavisados podem levar uma chicotada: personagens encarnam com vontade o papel de capitão do mato e castigam ‘escravos’ e espectadores ‘na linha de tiro’. A performance representa a luta do escravo pela conquista da sua liberdade. “Muita gente apanha e se diverte. Isso tudo para não morrer a tradição”, lembra Severino.

Reprodução/Foto-RN176  Com chicote na mão, ‘capitão do mato’ castiga os ‘escravos fujões’. Sobra lambada para espectadoresSeverino Silva / Agência O Dia

A cidade é tomada pelo inebriante aroma do mel de cabaú, que, mesclado com tinta preta à base de cana, cobre o corpo dos lambe-sujos, deixando apenas o expressivo olhar e o branco dos dentes. Como adereços, gorros vermelhos e shorts surrados. Nas mãos, as foices dos canaviais; chupetas e cachimbos completam a caracterização.

A festa cresceu e hoje é expressão do sincretismo. “O bloco termina na Igreja, mas antes passam em frente a uma casa de mãe de santo. O fim do bloco termina com o padre, o índio e o caboclinho, sem preconceito e respeitando um a fé do outro”, conclui Severino.

Reprodução/Foto-RN176  Nas costas dos moradores, as marcas do respeito à própria históriaSeverino Silva / Agência O Dia

Tinta preta e mel de cabaú na pele

A cor dos Lambe-Sujos é uma atração à parte. Um preto escuro com um brilho que realça ainda mais o tom de pele. Para chegar a ele, a pele é revestida primeiro com tinta em pó. Em seguida, o corpo é coberto com mel de cabaú, derivado da cana-de-açúcar, que fornece o brilho.

Por um valor simbólico, interessados em imitar os ancestrais podem entrar na fila na casa de um dos moradores e sair ‘fantasiado’. Mas mesmo quem não se atreve a ficar pintado acaba marcado, ou com uma mão no rosto, ou com um abraço repentino. De repente, todos na cidade estão manchados.

Reprodução/Foto-RN176  Para encarnar os escravos, moradores se pintam dos pés à cabeça com mistura de tinta que os deixa retintos e brilhantes: memóriaSeverino Silva / Agência O Dia

“A população mostra alegria enorme”

Eu sempre faço viagens para o Nordeste com o objetivo de retratar festas populares. Através de amigos, descobri essa festa em Laranjeiras. Para minha surpresa, encontrei todos os tipos de gente, mulheres, crianças, jovens, adultos, idosos, de todas as cores participando. A preocupação deles é não deixar morrer essa cultura que pouca gente conhece. Muita gente se envolve, até dos municípios vizinhos, quem nos recepciona é muito acolhedor. As pessoas brincam quase todas as 24 horas do dia. Eu fiquei muito feliz de ter conhecido essa festa devido à tradição dela, ela simboliza a resistência dos escravos, de toda a batalha para não deixar essa história morrer.

Reportagem do estagiário Matheus Santana, sob supervisão de Eduardo Pierre