A estrela brasileira no céu azul: a história da VARIG – Parte 1

ROTANEWS176 14/01/2024 20:48                                                                                                                                  Por Wellington Tohoru Nagano

Fundada há quase um século, mais famosa companhia aérea do país foi referência mundial por muitas décadas, mas pereceu nos anos 2000.

 

Reprodução/Foto-RN176 Dornier Wal “Atlântico”, a primeira aeronave da VARIG.

Airway tem feito uma série de artigos das principais empresas aéreas do país. Desde a REALPanair do BrasilCruzeiro do Sul e VASP até as empresas que formaram o SITAR – Sistema de Transporte Aéreo Regional.

Com elas navegamos pela história da aviação comercial brasileira e agora vamos falar da principal empresa aérea que o Brasil teve, amada por muitos, odiada por outros, mas que todos reconhecem pela sua qualidade técnica-operacional, em nível igual ou superior ao das mais consagradas empresas aéreas do mundo: a Viação Aérea Rio-Grandense, ou simplesmente VARIG.

Fundação de uma lenda

A América do Sul era um distante e exótico continente para os europeus. Longe dos conflitos que arrasavam o Velho Continente, a região vinha em um processo gradual de urbanização, que apresentava oportunidades para novos negócios. Do lado romântico, a dimensão continental, a geografia e a precariedade da infraestrutura tornavam a América do Sul um dos terrenos mais férteis para aventuras aéreas. Sim, aventuras, pois muito dos empreendimentos estavam longe de serem rentáveis ou no mínimo viáveis operacionalmente.

Otto Meyer era um dos europeus que viam na região um eldorado de oportunidades na aviação. Exímio piloto na I Guerra Mundial, Meyer usou seu conhecimento e veio para o Brasil em 1921, inicialmente em Recife, onde trabalhou na Irmãos Lundgreen Tecidos S.A, atualmente Casas Pernambucanas.

Reprodução/Foto-RN176 Otto Ernst Meyer, fundador da VARIG. Foto: Wikimedia Commons.

Após Recife, Meyer foi para um dos maiores berços da imigração alemã no país, o Rio Grande do Sul. Com apoio da colônia, Meyer foi angariando investidores para formar uma empresa aérea.

Meyer conseguiu o capital necessário para abrir a Viação Aérea Rio-Grandense – VARIG, no dia 07 de maio de 1927. A companhia nascia com uma única aeronave: Dornier Wal, batizada de Atlântico, arrendado da Kondor Syndikat.

Reprodução/Foto-RN176 O Dornier Wal “Atlântico”, não só a primeira aeronave da VARIG, mas a primeira aeronave comercial brasileira. Foto: Wikimedia Commons.

Nota-se que a aviação era algo tão incipiente que não havia sistema de matrículas de aeronaves na época. Isso só ocorreu em 16 de junho de 1927 quando o Atlântico ganhou a matrícula P-BAAA, tornando-se a primeira aeronave no Registro Aeronáutico Brasileiro – RAB.

Em 22 de junho de 1927, a VARIG realizou oficialmente o primeiro voo de passageiros, entre Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande com o Atlântico. Apesar de não ter sido a primeira empresa aérea constituída no Brasil, teve a primazia de lançar voo antes que suas rivais, daí sua alcunha de “Pioneira”.

Tempos difíceis

A Kondor Syndikat, posteriormente Syndicato Condor, detinha 21% das ações da VARIG, participação representada pelo Atlântico. Com o estabelecimento da filial brasileira e a oportunidade de operar voos a partir da então capital federal, Rio de Janeiro, a Condor se retirou da sociedade em 1931, vendendo as ações para o governo gaúcho.

A Syndicato Condor levou consigo o Atlântico e o Dornier Merkur, deixando a VARIG apenas com os aviões terrestres Klemm, para treinamento, o Nieuport-Delage 641 e o Morane-Saulnier 130, que não tinha como serem utilizados pela ausência de campos de pouso terrestres no Rio Grande do Sul, deixando a companhia sem operar enquanto as pistas não eram construídas.

A situação da VARIG era grave a ponto de Meyer pedir empréstimo e subvenção ao interventor do Rio Grande do Sul, general Flores da Cunha, para manter as operações. Depois de muita relutância, o general cedeu aos pedidos e passou a subvencionar a VARIG.

Reprodução/Foto-RN176 Terminal e hangar da VARIG no Aeroporto São João (atual Salgado Filho), construídos para a operação da empresa. Entre 11 e 12 de agosto de 2023, a edificação foi demolida pela concessionária do aeroporto, a Fraport. Foto: Divulgação.

Capitalizada, a VARIG pôde concentrar seus esforços para crescer. Além da “Linha da Lagoa”, a empresa começou a expandir sua atuação no interior do mercado gaúcho, com os aviões alemães Junkers A-50 e F-13. A imigração europeia e a industrialização proporcionaram ao Rio Grande do Sul uma prosperidade econômica que colocava o estado em destaque entre os pares nacionais, e a VARIG aproveitava esta maré boa.

Em 1935, a empresa teve o primeiro lucro operacional. Era necessária a renovação da frota, pois os aviões que a VARIG operava eram de pequena capacidade e inadequados para o crescimento da oferta. Assim em 1938 o primeiro Junkers JU-52 foi recebido pela empresa, que agora poderia operar em rotas mais longas e com maior demanda de passageiros.

Segunda Guerra e a “desgermanificação”

Quem desconhecesse a VARIG e olhasse seu quadro de funcionários, acreditaria que a empresa era alemã e não brasileira. A influência germânica na empresa era muito forte, com rigor na eficiência e na engenharia, ambos como parte do DNA da VARIG e, sem nenhuma falácia, afirmaria décadas mais tarde que um dos orgulhos era a sua manutenção.

Os laços germânicos, no entanto, tornaram-se um problema para a empresa e seus funcionários após a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Com a entrada do Brasil ao lado dos Aliados, a situação das duas empresas aéreas de origens germânicas, VARIG e Syndicato Condor, passaram pelo escrutínio das autoridades, que viam nelas extensões tropicais do nazismo no país.

Meyer sabia que a situação da VARIG não seria fácil, pois as empresas com ligações ou origens alemãs sofriam hostilidades da sociedade brasileira. Comunicou ao governo gaúcho sua intenção de renunciar e, após tratativas, foi decidido que o sucessor de Meyer na empresa deveria ser um brasileiro nato.

Em 24 de dezembro de 1941, Ruben Berta, primeiro funcionário da VARIG e fiel escudeiro de Meyer, assumiu interinamente o posto após a renúncia do fundador. Mesmo deixando o cargo, Meyer ainda foi preso por três dias por suposta ligação com grupos de espionagem nazistas.

Reprodução/Foto-RN176 Adjetivos não faltam para Ruben Berta: articuloso politicamente, obstinado, ambicioso, perfeccionista, rígido, ousado, mas que criaria uma empresa que foi referência de serviço por décadas. Foto: Wikimedia Commons.

Um fato pouco conhecido era que a VARIG não tinha o cargo de presidente, com o posto máximo sendo de diretor-gerente. Em 1942, o governo gaúcho escolheu quem assumiria o recém-criado cargo de diretor-presidente da empresa: Érico de Assis Brasil, que era representante do governo na empresa desde 1940, e bem respeitado entre os funcionários. O nome de Assis Brasil foi aprovado em assembleia extraordinária no dia 28 de outubro.

Entretanto, a duração da presidência de Assis Brasil na VARIG conta-se em dias já que em 02 de novembro, ele faleceu ao chocar-se com fios de alta tensão durante uma missão de resgate para socorrer o comandante Lili de Souza Pinto, que sofreu acidente no mesmo dia. Com o trágico desfecho, o cargo foi assumido definitivamente por Berta.

Antes do acidente de Assis Brasil, a VARIG comemorava uma conquista importante: inaugurava sua primeira rota internacional: Porto Alegre-Jaguarão-Montevidéu, no Uruguai, no dia 05 de agosto, com os de Havilland DH-89 Dragon Rapide.

Ao ser definido com presidente definitivo da VARIG, Berta buscou a padronização da frota como forma de economizar em treinamento, manutenção, estoque e procedimentos. Além disso, preferiu voltar-se ao mercado americano, uma vez que não havia escassez de peças, como ocorria com as fabricantes europeias, engajadas na guerra.

Em 1943 chegaram os dois primeiros Lockheed 10 Electra, ex-Panair do Brasil, que se tornaria o modelo padrão da empresa até a chegada dos DC-3. Em 1945, a frota do “Electrinha” atingiu oito unidades e a VARIG atendia todo o estado do Rio Grande do Sul e Montevidéu. Os voos para São Paulo e Rio de Janeiro eram em parceria com a Cruzeiro do Sul.

Reprodução/Foto-RN176 O Lockheed 10 Electra marcou a transição da empresa de aeronaves germânicas para americanas. Foto: Wikimedia Commons.

Com o término da Segunda Guerra e as perspectivas do fim da ditadura do Estado Novo, Berta temia que a VARIG fosse estatizada. Para evitar esta possibilidade, propôs aos acionistas que cedessem 50% das ações para os funcionários por meio de uma associação a ser criada. Berta era entusiasta da obra Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, que pregava a distribuição dos lucros para os funcionários como forma de combater a injustiça social. Em 29 de outubro de 1945, a proposta foi aprovada por unanimidade em assembleia ordinária.

Preparando-se para crescer

Ruben Berta talvez seja um dos mais importantes executivos de aviação que o Brasil já teve, se não o principal. Autodidata, era para muitos uma figura implacável e ambiciosa, que não media esforços para alcançar seu objetivo. Para outros, uma pessoa de extraordinária habilidade política, com trânsito entre políticos de diferentes ideologias. Para os funcionários, um presidente exigente, perfeccionista, mas que considerava o bem-estar dos funcionários elemento essencial para o funcionamento da VARIG, a ponto de muitos o considerarem como um pai rígido, porém, justo.

Esta dedicação com os funcionários era o motivo da criação da Fundação dos Funcionários da VARIG, em 07 de dezembro de 1945. Além de ser responsável por 50% das ações da empresa, a fundação teria como objetivo prover o bem-estar dos funcionários. Entre as ações da fundação foi a criação da Vila VARIG para os funcionários, financiamento habitacional, doação de material escolar, mercado com preços subsidiados, uma fazenda para a produção de alimentos, apoio para viúvas, entre outros, um típico exemplo do conceito de welfare state (bem-estar social) do pós-guerra.

Seguindo à risca o conceitoBerta sabia que funcionário com todo aparato social e trabalhista não se voltaria contra a empresa, de tal forma que ele não tolerava greve na VARIG, por entender que ela provia de forma justa o sustento para seus funcionários e familiares.

Com organização societária definida e padronização da frota com os Electra, a VARIG embarcou em um processo de expansão doméstica pela primeira vez. Com o término da Segunda Guerra, milhares de aeronaves passaram a estar disponíveis a preço de banana e com tecnologia igual ou superior aos empregados pela aviação comercial da época.

Em 1946, a VARIG recebeu o primeiro Douglas C-47/DC-3 (padronizaremos como DC-3 por ser nome mais difundido que o C-47) e inaugurou no dia 27 de agosto de 1946 a rota Porto Alegre-Rio de Janeiro, via Florianópolis, Curitiba e São Paulo. A capital gaúcha estaria ligada com o centro industrial e a capital federal em um mesmo voo.

Em janeiro de 1948, a VARIG recebeu sua primeira aeronave para serviços cargueiros, um DC-3, e no mesmo ano o Curtiss C-46 Commando, aeronave que tinha a versatilidade de voos cargueiros, alta densidade, ou os serviços de luxo, empregados pela VARIG nas rotas principais.

No início da década de 1950, a VARIG havia se consolidado como a principal operadora no Sul do país, principalmente em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, com voos chegando até São Paulo, Rio de Janeiro e Montevidéu. Mas Berta queria crescer mais, indo para o Nordeste, passo fundamental para se transformar em uma empresa nacional.

Reprodução/Foto-RN176 Encarte do Timetable da VARIG de 1952. Nota-se a presença maciça no interior gaúcho, as linhas para Argentina e Uruguai, a ligação São Paulo-Santos e o voo Rio de Janeiro-Porto Alegre sem escalas. Fonte: Timetableimages.

O salto significativo foi a compra da Aero Geral em 29 de fevereiro de 1952. Era uma pequena linha aérea com quatro anfíbios PBY Catalina, dois DC-3 e um único C-46, mas que detinha a concessão de rotas ao norte do Rio de Janeiro.

No ano seguinte, em 30 de maio, a VARIG estendeu a rota de Montevidéu até Buenos Aires, tornando-se seu segundo destino internacional. O voo era operado pelo C-46 três vezes por semana, em cooperação com a Aerolíneas Argentinas.

O próximo passo era voar para os Estados Unidos. A VARIG contaria com o apoio de Getúlio Vargas, recém-eleito para presidência. Vargas e Berta tinham uma relação próxima desde o início da empresa. Foi Getúlio Vargas, enquanto presidente da província do Rio Grande do Sul, que ajudou a VARIG quando o Syndicato Condor saiu da sociedade e o presidente via com simpatia o jeito de Berta em administrar a empresa e seus princípios trabalhistas. A VARIG apoiava as pretensões de Vargas, dando todo apoio necessário, como a cessão de avião para campanhas.

A concessão dos voos para os Estados Unidos estava com a Cruzeiro do Sul, porém, a empresa exigia subvenção para operar regularmente os voos para Nova York e Washington.

Quando Vargas assumiu a presidência, chamou o Ministro da Aeronáutica, Nero Moura, e teria dito: “O Berta ajudou muito na campanha e eu gostaria que você olhasse com simpatia as pretensões da VARIG, atendendo-a com boa vontade”. O ministro revogou a concessão da Cruzeiro do Sul e repassou para a VARIG em 1953.

Naquela época, para uma empresa com atuação basicamente regional e com aviões provenientes de excedentes de guerra, operar a rota para Nova York demandaria novas aeronaves, treinamento específicos, conhecimento de outros sistemas de legislação e concorrer com nada menos que a poderosa Pan American. Tantos fatores que faziam da rota para Nova York uma aposta que poderia levar à ruína a empresa aérea em pouco tempo.

Na segunda parte da história da VARIG, iremos abordar desde o início dos voos para Nova York até a presidência de Hélio Smidt.

FONTE: AIRWAY