Botas Verdes: A tragédia do morto mais famoso do Everest

ROTANEWS176 19/11/2015 18:00                                                                                                                                Por Elias Luiz | texto: Rachel Nuwer                                                                                                                          Tradução: de Daniela Silvestre

O Monte Everest representa o ápice dos sonhos para qualquer alpinista, entretanto, serve também como leito final para mais de 200 corpos. Prosseguindo com o Especial do Everest do EXTREMOS, a jornalista Rachel Nuwer se debruça sobre a melancólica e pouco conhecida história de seu mais notório habitante, conhecido como “O Botas Verdes”, e revela os impactos arrasadores que esta montanha letal pode infligir tanto ao psicológico quanto ao físico.

RN176 O  cadáver de Tsewang Paljor, mais famoso para alpinistas na escalada do Monte Everest de altura 8.848 m tornou-se  um ponto de referência para os alpinistas ( já passei o botas verdes) de nome Botas Verdes

Está claro que o risco enfrentado pelo montanhista é elevado: é uma questão de vida ou morte. Para sair vitorioso, ele deve, em primeiro lugar, alcançar o cume da montanha; porém, além disso, é essencial que desça em segurança. A medida que o caminho se torna mais difícil e os perigos mais numerosos, maior se torna o valor de sua conquista.

– George Mallory, 1924

Como se estivesse cochilando, o escalador repousa de lado sob a sombra protetora de uma rocha saliente. Cobriu o rosto com um fleece vermelho, buscando ocultá-lo de sua própria visão, e enlaçou os braços em torno de si mesmo firmemente para se proteger do vento e do frio cortante. Suas pernas, estendidas pelo caminho, obrigam os que passam a saltar cuidadosamente sobre suas botas de escalada de neon verde.

Reprodução/Foto-RN176 O Botas Verdes  – Tsewang Paljor, quando jovem. Foto: Rachel Nuwer

Seu nome era Tsewang Paljor, mas para a maioria que se depara com ele, é conhecido simplesmente como Botas Verdes. Por quase duas décadas, seu corpo, situado não muito distante do cume do Monte Everest, atuou como um ponto de referência no trajeto para aqueles que buscam conquistar a montanha mais alta do mundo pela sua face norte. Muitos perderam suas vidas no Everest e, a exemplo de Paljor, a grande maioria permanece eternamente nas suas encostas. No entanto, o corpo de Paljor, devido à sua fama, tornou-se o mais emblemático.

Leia e veja o filme e a primeira morte do alpinista ao escala Everest 1924: 

RN176; – ALPINISTA ESTABELECE NOVO RECORDE AO ESCALAR O MONTE EVEREST PELA 30ª VEZ

RN176; –   A tragédia dos mortos do Everest

“Eu afirmaria que todos, particularmente aqueles que escalam pela face norte, estão cientes da existência do Botas Verdes, ou já leram a respeito, ou ouviram alguém mencioná-lo,” declara Noel Hanna, um aventureiro que alcançou o cume do Everest por sete vezes. “Aproximadamente 80% das pessoas também fazem uma pausa no abrigo onde se encontra o Botas Verdes, e é quase impossível não notar que há alguém repousando ali.”

Após a morte de Paljor, emergiram várias controvérsias, incluindo alegações de que ele e seus dois colegas de equipe faleceram devido à negligência de outros escaladores. Estes, consumidos pelo desejo ardente de alcançar o cume, teriam insensivelmente ignorado os sinais de socorro do grupo. Contudo, informações detalhadas sobre o homem por trás do apelido “Botas Verdes” são escassas. Uma busca por “Botas Verdes” no Google revela que Paljor, junto com seus parceiros de escalada, Tsewang Smanla e Dorje Morup, encontrou seu fim em 1996 durante uma tempestade, um evento imortalizado no best-seller de Jon Krakauer, “No Ar Rarefeito”, e retratado no filme de alto orçamento “Everest”. A página da Wikipédia de Paljor menciona que ele era membro da polícia de fronteira Indo-Tibetana e que tinha apenas 28 anos quando perdeu a vida.

Confesso que sinto uma curiosidade mórbida ao refletir sobre Paljor e os demais escaladores que encontraram seu fim na montanha, deixados para trás, distantes de seus entes queridos, e eternamente preservados pelo frio, testemunhas silenciosas do instante de suas mortes. No entanto, além do fascínio pelo aspecto macabro, tenho um interesse genuíno em descobrir a história do jovem de botas verdes – em particular, as circunstâncias que o levaram a permanecer na montanha por tantos anos.

Também me intrigava entender o que a altitude extrema pode fazer ao corpo e à mente humana, e como isso pode afetar inesperadamente as decisões e até mesmo a ética de uma pessoa. No entanto, recentemente, busco respostas para uma questão mais específica, levantada inúmeras vezes, mas que parece se dissipar sem explicações claras: Por que escalar essa montanha? Por que arriscar a vida em suas encostas implacáveis? De acordo com as informações de Alan Arnette, um montanhista do Colorado cujo blog é uma fonte confiável sobre o Everest, de 1924 a agosto de 2015, 283 pessoas morreram na montanha – sendo 170 estrangeiros e 113 nepaleses – resultando em uma taxa de mortalidade global de 4%. Como, então, tantas pessoas ainda consideram esse desafio como algo que vale a pena?

Minha determinação em buscar respostas para essas perguntas — através de uma série em duas partes para a BBC — me conduziu a uma profunda investigação sobre psicologia, ética e a cultura do montanhismo; seguindo os passos de lendas da escalada bem como de pais com corações despedaçados; explorando fontes que vão de Fukuoka a Califórnia e Kathmandu. Esta é minha tentativa de dar sentido a tudo o que descobri.

Reprodução/Foto-RN176 Ladakh fica na sombra das grandes montanhas dos Himalaias.

Um lugar alegre

Logo após a decolagem, à medida que o avião se encaminha para o norte a partir de Nova Delhi, a poluição urbana e o congestionamento logo se dissipam da vista, dando lugar a extensas planícies marrons, colinas verdejantes e campos em terraços.

A paisagem, no entanto, apenas inicia sua transformação em escala e esplendor. As colinas ascendem a alturas cada vez maiores, desprendendo-se de vilarejos, campos e vegetação – despojando-se, assim, de quaisquer vestígios de vida. Picos montanhosos denteados, adornados por neve, erguem-se ainda mais, como se buscassem arrancar nossa diminuta aeronave dos céus. Aqui e ali, rios e vales interrompem a paisagem monocromática com faixas de verde, linhas vitais em um terreno hostil. Estamos quase alcançando nosso destino. O avião inicia sua descida, e a voz do piloto surge, crepitante, nos alto-falantes: “Espero que tenham deixado todas as suas preocupações em Delhi, para que possam desfrutar de uma estadia maravilhosa em um lugar repleto de alegria.”

Encontrávamo-nos na região de Ladakh, conhecida como “a terra dos passes”, situada ao norte da Índia, sob as sombras imponentes do grande Himalaia. Era início de setembro, época em que os dias são claros e quentes, mas as noites já começam a descer abaixo de zero.

Foi neste deserto de altitude, a 3.800 metros acima do nível do mar, que Tsewang Paljor veio ao mundo em 10 de abril de 1968. Ele cresceu em Sakti, conhecido como “O trono de ouro” – uma aldeia situada em um vale idílico, com casas pintadas de branco, campos de cevada, e árvores de álamo.

Reprodução/Foto-RN176 Chegando na casa da mãe de Paljor, sem saber o que esperar.

Partimos cedo para Sakti na quarta-feira, seguindo o brilho azul do Rio Indus, passando por monastérios de tirar o fôlego, restaurantes à beira da estrada cobertos de poeira e planícies transcendentais de rocha e terra estéril. Eu estava acompanhada de Tsultim Dorjey, um sociólogo e guia, que atuava como meu elo com o local.

Optamos por não contatar previamente a família de Paljor, apostando que teríamos mais sucesso em persuadi-los a conversar conosco sobre um tema tão sensível se o fizéssemos pessoalmente. Agora, me encontrava assolada pela dúvida. Eles se recusariam a falar? Ficariam ofendidos? Haveria alguém em casa?

Cerca de uma hora após deixarmos Leh, estávamos próximos. Tsultim saiu do carro e se aproximou de um senhor que contava suas contas de oração budista à beira da estrada. Ele perguntou ao homem onde poderia encontrar a fazenda dos Fana – o sobrenome da família de Paljor – e o homem apontou estrada abaixo. Em lugares como Sakti, com uma população estimada em 300 famílias, todos se conhecem. “Não estamos longe agora,” Tsultim anunciou, retornando ao carro.

Poucos minutos depois, chegamos a um portão marrom diante de uma casa de dois andares, com janelas amplas e bandeiras de oração flutuando sobre o telhado. “Aqui estamos,” disse Tsultim. “Cruze os dedos.”

Meus temores se aliviaram quando Tashi Angmo, mãe de Paljor, nos recepcionou. Aos 73 anos, seus olhos brilhantes e o rosto sorridente a faziam parecer uma década mais jovem. Com a calorosidade de uma avó, ela nos cumprimentou efusivamente com um “Julay” e nos convidou a entrar, sem sequer questionar quem éramos ou o motivo da nossa visita.

A sala de estar, adornada com sofás aconchegantes, mesas entalhadas e fotos em tamanho grande de seus netos, nos acolheu. Após servir chá fumegante e biscoitos, Tashi e Tsultim trocaram amenidades por alguns minutos. Não entendendo Ladaki, percebi o momento em que Tsultim revelou o propósito real de nossa visita. O semblante até então alegre de Tashi Angmo mudou abruptamente, refletindo anos de angústia e dor. Mesmo assim, ao ser questionada sobre a possibilidade de prosseguir com a entrevista, ela concordou.

Paljor, um entre cinco irmãos, era reconhecido na vila por sua conduta educada e compaixão. Dotado de um grande coração e uma bondade inata, ele era visto como alguém de boa aparência, mas extremamente tímido, a ponto de nunca ter tido uma namorada. Certa vez, confidenciou ao irmão que preferia dedicar sua vida a algo grandioso a se casar.

Como o filho mais velho, Paljor provavelmente sentia a pressão de sustentar sua família, que lutava para manter a pequena fazenda. Após completar o ensino médio, ele deixou a escola para ingressar na Polícia de Fronteira Indo-Tibetana (ITBP), cuja base ficava próxima de Leh, o centro administrativo de Ladakh. Criada em 1982 em resposta ao aumento das tensões com a China, a ITBP especializou-se em operações de alta altitude, uma necessidade dada a extensa fronteira da Índia com seu imponente vizinho. Para a alegria de Paljor e sua família, ele foi aceito.

Tashi Angmo apoiava a carreira do filho na ITBP, mas sabia que esse apoio não se estenderia à escalada da montanha mais alta do mundo. Quando Paljor foi selecionado para fazer parte de uma equipe de elite de alpinistas em uma missão grandiosa – tornar-se um dos primeiros indianos a alcançar o cume do Monte Everest pela face norte – ele escolheu não revelar a ela seu verdadeiro destino. “Ele disse uma pequena mentira, que escalaria outra montanha,” lembrou sua mãe. “Mas ele também contou a verdade a alguns amigos, e a notícia acabou chegando até nós.” Embora a carreira de Paljor já incluísse a escalada bem-sucedida de outros picos, e as estantes de Tashi Angmo estivessem cheias de certificados e prêmios, a ideia do Everest a aterrorizava. Ela implorou para que ele não fosse, mas Paljor sentiu que precisava ir. “Ele deve ter pensado que, ao escalar o Everest, traria benefícios para a família,” ela disse.

Reprodução/Foto-RN176 Na estrada para Shakti.

O irmão mais novo de Paljor, Thinley Namgyal, não estava preocupado com a jornada do irmão. Ele via Paljor como a pessoa mais forte que conhecia. “Quando ele vinha para casa nas férias, costumávamos brincar de chutar a barriga dele, que era dura como pedra,” diz ele. “Eu sempre o via como uma espécie de Super-Homem.”

Thinley, que é monge, teve a oportunidade de se encontrar com Paljor em Delhi, alguns dias antes de sua partida; ele ofereceu ao irmão uma bênção antes de se despedirem. “Ele havia acabado de passar nos exames médicos e estava ansioso para ir ao Tibete,” relembra Thinley. “Não havia nenhum sinal de nervosismo. Ele estava realmente feliz.” Thinley foi o último da família a ver Paljor vivo.

Paljor era jovem, forte e experiente, mas o Everest é conhecido por apresentar inúmeras formas de colocar em risco a vida dos alpinistas mais preparados – seja através de quedas, avalanches, exposição ao frio extremo ou à alta altitude, entre outros perigos. A montanha mantém os corpos de muitos que ali pereceram. Morte súbita, decorrente de ataques cardíacos, arritmias, asma ou exacerbação de doenças pré-existentes, não é rara. A escassez de oxigênio pode levar a condições fatais como edema pulmonar ou cerebral, quando fluidos dos vasos sanguíneos se infiltram nos pulmões ou no cérebro.

Contudo, nem todos na montanha contemplam a possibilidade de morte sob quaisquer circunstâncias. Um estudo retrospectivo sobre 212 mortes de alpinistas no Everest, de 1921 a 2006, conduzido por Paul Firth, anestesista do Massachusetts General Hospital em Boston, e seus colegas, descobriu que a maioria das mortes de Sherpas ocorreu em baixas altitudes, refletindo o risco inerente de atravessar a cascata de gelo do Khumbu – uma área de gelo glacial instável, com blocos de gelo do tamanho de casas e fendas abertas. Mortes em altitudes mais elevadas quase sempre envolviam clientes pagantes e guias ocidentais, sendo que mais de 50% dessas mortes ocorreram após os alpinistas atingirem o cume e iniciarem o caminho de volta. “Fiquei surpreso com o quão poucos Sherpas morrem em grandes altitudes,” diz Firth. “Mas os números são bastante claros.”

Esses achados refletem uma série de fatores, incluindo a adaptação superior dos Sherpas a condições hipóxicas, sua experiência no Everest e sua menor vulnerabilidade à “febre do cume” – um impulso incontrolável de alcançar o pico que faz com que os alpinistas ignorem a segurança. “As pessoas tomam decisões baseadas no sucesso, não na sobrevivência,” afirma Ed Viesturs, o primeiro americano a escalar todas as montanhas acima de 8.000 metros sem oxigênio suplementar.

Mark Jenkins, jornalista, autor e aventureiro do Wyoming, que esteve no Everest em 2012, testemunhou um dia em que cinco pessoas morreram. Sherpas entrevistados por ele disseram que a maioria das fatalidades era de clientes que se recusaram a voltar. “Seu Sherpa dirá, ‘você está muito lento, precisa voltar ou vai morrer’,” diz Jenkins. “E alguns não voltam.”

“As montanhas não matam pessoas; as pessoas se matam,” ele afirma.

Viesturs, que já interrompeu uma escalada no Everest a apenas 100 metros do cume devido a condições adversas, credita sua sobrevivência à capacidade de ouvir a montanha e saber quando é hora de voltar. “Minha regra sempre foi que escalar é uma viagem de ida e volta,” diz ele. No entanto, muitas das vítimas do Everest, segundo Firth, provavelmente são pessoas que não reconhecem os sinais de perigo a tempo devido à falta de experiência necessária para saber o que é normal, ou são alpinistas experientes cujo julgamento fica comprometido pelos efeitos da altitude. Quando percebem que estão em apuros, já é tarde demais.

Reprodução/Foto-RN176 Tashi Angmo, com posses de seu filho.

Jenkins estima que metade de todos os alpinistas do Everest hoje não são nativos da região do Himalaia. “Não é apenas minha opinião, é um fato,” ele diz. “Para a maioria deles, o lugar mais alto que já estiveram antes foi em um arranha-céu.”

Bill Bierling, um jornalista baseado em Kathmandu, escalador e assistente pessoal da jornalista Elizabeth Hawley, que aos 91 anos tem sido a cronista das expedições no Himalaia desde os anos 60, concorda: “Sem os Sherpas, 98% das pessoas não conseguiria escalar o Everest.”

Para Paljor e seus companheiros, a expedição ao Everest estava progredindo sem contratempos. A equipe indiana tinha uma conexão forte com a montanha, contando com uma tenda luxuosa e enorme onde escaladores de qualquer nacionalidade eram bem-vindos.

O comandante Mohinder Singh, líder da equipe, relembrou a expedição de sua casa perto de San Francisco, onde agora ele administra um complexo de apartamentos: “Nós éramos o melhor grupo do mundo.”

Ele recorda Paljor como sendo muito falante, “como uma criança”, e que ele adorava escalar rochas desafiadoras. “Ele parecia um macaco escalando,” diz Singh. Ele também se lembra do amor de Paljor por frango assado, sua tendência a cantar nas horas vagas e como ele sempre se voluntariava para os trabalhos mais difíceis. “Ele era muito prestativo,” disse Singh.

Reprodução/Foto-RN176 A medalha concedida após a morte de Paljor.

Singh tinha confiança nas habilidades de Paljor, Morup e Smanla – todos provenientes de Ladakh e já testados em campo. No entanto, quase imediatamente, a expedição foi assolada por “erro atrás de erro”, nos quais os escaladores “falharam em seguir instruções claras”, conforme Singh relatou posteriormente em seu relato oficial dos eventos.

Os problemas surgiram na manhã de 10 de maio, quando a equipe se atrasou devido a fortes ventos e acabou adormecendo. Eles não partiram do campo 4 até as 8h, em vez das 3h30min planejadas. Devido ao atraso significativo, decidiram prosseguir com a fixação de cordas na montanha, em vez de tentar alcançar o cume, para garantir que pudessem descer da Zona da Morte ao anoitecer – a região acima de 8.000 metros onde muitos escaladores perdem a vida.

Por volta das 14h30min, a equipe havia feito progresso significativo, mas o vento começava a aumentar novamente. Singh havia dado ordens estritas para retornarem às 14h30min, ou 15h no mais tardar. No entanto, Harbhajan Singh, que estava bastante atrasado em relação aos três homens de Ladakhi, sinalizou para que parassem e voltassem ao acampamento. Ou eles não o viram ou o ignoraram. Observando-os subir enquanto sofria de congelamento, Harbhajan Singh não teve escolha a não ser voltar ao campo 4 sem eles. Refletindo sobre esse momento, 19 anos depois, em seu escritório em Nova Delhi, Harbhajan Singh, agora um inspetor geral do ITBP e agraciado com o Padma Shri, o quarto maior prêmio civil da Índia, olha distante.

“Quando perdemos aquelas três pessoas, eu era o quarto, eu estava com eles,” ele diz, olhando para mim. “Estou aqui na sua frente hoje, mas se eu tivesse prosseguido, teria me juntado a eles. É somente por um milagre divino que estou vivo.”

Ele suspeita que a Febre do Cume tenha consumido seus homens.

Finalmente, às 15h daquela tarde, um Singh ansioso por notícias, avançando do campo base, ouviu seu rádio dar sinal de vida – era Smanla.

Reprodução/Foto-RN176 Singh e sua esposa em sua casa próxima a San Francisco.

“Senhor, estamos a caminho do cume,” anunciou Smanla.

Singh ficou alarmado. “Ah não! O tempo está muito estranho, ruim.”

Smanla, contudo, não parecia convencido. Ele argumentou que o cume estava a menos de uma hora de distância e que os três homens estavam se sentindo bem.

“Não seja tão autoconfiante,” Singh insistiu. “Escute-me. Por favor, desça. O sol já está se pondo.”

Reprodução/Foto-RN176 Arquivos de expedições, mantidos por Elizabeth Hawley.

 

Smanla ignorou os avisos e passou o telefone a Paljor. “Senhor, por favor, deixe-nos continuar,” disse Paljor, sua voz cheia de orgulho. Então, a comunicação foi cortada.

Eram 17h35min quando Singh teve notícias de seus homens novamente. Uma onda de alívio e excitação o invadiu quando Smanla anunciou que ele, Paljor e Morup estavam no cume. Apesar de Singh reforçar a necessidade de eles retornarem o mais rápido possível, ele começou a planejar a mensagem triunfante que enviaria para Nova Delhi, anunciando a vitória de sua equipe.

As celebrações começaram imediatamente, tanto em casa quanto no campo base. Os homens haviam acabado de enviar uma mensagem poderosa para seu país. Mais tarde, surgiram dúvidas sobre se Paljor e seus companheiros realmente alcançaram o cume. Krakauer e outros suspeitam que eles pararam intencionalmente a 150 metros do cume, acreditando — talvez devido ao agravamento do tempo e à confusão mental causada pela altitude — que tinham chegado ao topo. Apesar das incertezas, eles foram creditados pela ascensão, e os troféus recebidos posteriormente por Tashi Angmo em memória de seu filho confirmam essa conquista. Como Singh disse: “Eles conseguiram, acreditamos que conseguiram, e eu confirmo isso.”

Entretanto, a alegria no campo base durou pouco. Pouco depois da chamada de Smanla, o tempo, já em deterioração, piorou significativamente. A infame tempestade de 1996 chegou, envolvendo a montanha com uma fúria de neve e vento. Tentando manter a calma, Singh dizia a si mesmo que seus homens estariam bem, que eles já tinham enfrentado condições piores antes. Se eles se movessem rapidamente, poderiam até chegar ao campo 4 à meia-noite. “Porém,” ele relembrou mais tarde, “isso não aconteceu.”

Ética a 8.000 metros

Por volta das 20h daquela noite, com Smanla, Paljor e Morup ainda subindo, Singh não conseguiu esconder sua preocupação. Segundo seu relato oficial, ele procurou uma equipe de escalada comercial japonesa de Fukuoka para pedir ajuda. Dois escaladores, Hiroshi Hanada e Eisuke Shigekawa, planejavam fazer sua tentativa de cume naquela noite.

Com a ajuda de um Sherpa que falava um pouco de japonês para traduzir, Singh “enfatizou ao líder japonês a gravidade da situação.” Na presença de Singh, o líder japonês entrou em contato por rádio com sua equipe no campo 4 para explicar a situação e disse a Singh que os escaladores japoneses fariam tudo ao seu alcance para ajudar os indianos abandonados, caso os encontrassem no caminho para o cume. “O Sherpa tradutor nos assegurou, em nome dos japoneses, que eles tratariam o problema como se fosse deles,” Singh descreve.

Reprodução/Foto-RN176 Harbhajan Singh, líder da equipe, e o único sobrevivente da expedição.

Na manhã seguinte, com a tempestade já dissipada, a equipe japonesa pôde prosseguir em direção ao cume. Às 9h, o líder da equipe comunicou a Singh que seus dois escaladores haviam encontrado Morup, que estava congelado e deitado na neve. Eles o ajudaram a prender-se às cordas fixas, mas continuaram seu caminho em direção ao cume. “Ficamos consternados,” relatou Singh. “O chá preto que os japoneses nos serviram parecia ter um gosto realmente amargo.”

Duas horas depois, sob um “céu claro e tranquilo”, os dois escaladores japoneses e seus três Sherpas passaram por Smanla e Paljor, mas novamente não pararam para ajudar. “Por que eles não ofereceram nem uma gota de água ao nosso homem que estava morrendo? E a ética no montanhismo?” indaga Singh. “Os japoneses nos deixaram com pouca esperança.”

No entanto, a equipe japonesa mais tarde contestou essa versão dos eventos. “As acusações infundadas” que foram feitas contra eles destacaram que a narrativa dependia exclusivamente de uma única perspectiva. De volta ao Japão, eles realizaram uma coletiva de imprensa e emitiram um relatório oficial afirmando que Shigekawa e Hanada haviam sido informados de que os indianos estavam enfrentando algum tipo de problema. Ao encontrarem diversos escaladores no caminho para o cume, Hanada afirmou, “Não vimos ninguém que parecesse estar em apuros ou morrendo.”

O relatório também enfatizava que, acima dos 8.000 metros, “é senso comum” que cada escalador deve ser responsável por suas próprias ações, “mesmo à beira da morte.”

O código de ética para escaladores, conforme estabelecido pela Federação Internacional de Escalada e Montanhismo, diz que “Ajudar alguém em dificuldades tem prioridade absoluta sobre alcançar os objetivos pessoais na montanha.” Muitos levam isso muito a sério. “Salvar a vida de alguém é mais importante do que chegar ao cume do Everest cem vezes,” afirma Serap Jangbu Sherpa, a primeira pessoa a escalar todos os oito picos do Nepal acima dos 8.000 metros e o primeiro a alcançar o cume do K2 duas vezes no mesmo ano. “Sempre podemos voltar e alcançar o cume, mas uma vida perdida nunca pode ser recuperada.”

Reprodução/Foto-RN176 Qual é a responsabilidade deve alpinistas têm para os seus colegas alpinistas? Foto: Rex

“Argumentar que cada um deve cuidar de si mesmo e que ninguém deve ajudar outra equipe é uma falta de compreensão,” acrescenta o Capitão MS Kohli, um montanhista que liderou a Índia em sua primeira expedição bem-sucedida ao cume do Monte Everest em 1965. “Isso vai completamente contra o espírito do montanhismo.”

No entanto, essas regras se tornam mais complexas quando envolvem clientes de expedições comerciais. Após desembolsarem milhares de dólares por uma passagem segura ao cume, não fica claro se é responsabilidade desses escaladores ajudar alguém em apuros ou até que ponto podem contar com um guia para salvar a vida do cliente, mesmo que isso possa custar a própria vida do guia.

A isso se soma o fato de que, acima de 8.000 metros, a capacidade de tomar decisões e o pensamento crítico são severamente comprometidos. “A coisa mais próxima que consigo comparar é estar seriamente bêbado, mas sem a parte divertida,” diz Firth. Com a escassez de oxigênio, planos e princípios morais, formulados em altitudes mais baixas, frequentemente perdem sua clareza.

“As pessoas ficam fascinadas com isso enquanto estão sentadas confortavelmente em suas salas de estar, lendo a revista Outside ou acompanhando a cobertura online do Extremos, mas a dinâmica do que significa estar lá em cima é realmente difícil de compreender aqui de baixo,” diz a montanhista Gulnur Tumbat, professora associada de marketing na Universidade Estadual de San Francisco. Mesmo que um escalador queira ajudar alguém em apuros, ela aponta, provavelmente estaria colocando sua própria vida em risco ao fazer isso. “Acima de 7.000 ou 8.000 metros, não há muito que se possa fazer,” diz ela. Após experimentar os efeitos da altitude por si mesma, ela não se surpreendeu ao descobrir, em sua pesquisa, que as pessoas no Everest tendem a ser individualistas. “Na realidade, não há muita camaradagem no alto da montanha,” diz ela. “Não estou dizendo que isso seja bom ou ruim – é quase que uma necessidade ser assim, dadas as condições.”

Além disso, para muitos – indubitavelmente incluindo Shigekawa e Hanada – a jornada ao Everest é vista como a oportunidade de uma vida. A quantidade de tempo, dinheiro e esforço investido na montanha pode incentivar a tomada de decisões egoístas e imprudentes. “Há uma mística em torno do Everest, que leva as pessoas a acreditar que as regras tradicionais não se aplicam, seja em relação aos riscos que correm ou ao que significa alcançar o cume para elas,” diz Christopher Kayes, diretor e professor de administração na Universidade George Washington em Washington D.C. “Acho que quanto mais perto você chega do seu objetivo, mais provável é que você faça racionalizações para contornar os valores ou a moral que anteriormente defendia.”

Em alguns casos, isso pode significar “literalmente jogar a cautela ao vento”. Em outros, pode significar deixar para trás um escalador caído, considerado sem esperança de ajuda. (Bierling observa, contudo, que resgates acontecem todos os anos – eles simplesmente não ganham as manchetes como as mortes.)

Reprodução/Foto-RN176 Local aproximado onde fica a caverna em que o Botas Verdes se abrigou e morreu na tragédia de 1996. Arte: Elias Luiz

Nuvem de dúvida

Nem Shigekawa nem Hanada responderam aos pedidos de entrevista para esta história, mas Koji Yada, um dos líderes dos dois homens, compartilhou suas recordações do incidente quando nos encontramos em Fukuoka. “Pelo que entendi, os escaladores indianos estavam usando equipamentos pesados, então era difícil identificá-los,” ele explicou, acrescentando que não sabia se Shigekawa ou Hanada perceberam que os escaladores não identificados estavam em apuros.

“Não sei o que faria se estivesse na mesma situação, mas não consigo parar de pensar que não pude fazer nada,” ele disse. “Alguns podem dizer que é desumano e egoísta, mas não há nada que eu possa fazer.”

“Oito mil metros é um mundo completamente diferente,” continuou ele. “Sempre falamos em responsabilidade pessoal para descrever a situação lá em cima.”

Assim como muitos eventos no Everest, o que aconteceu naquele dia de maio de 1996 é, sem dúvida, ofuscado por subjetividade, interesses pessoais e os efeitos de mentes afetadas pela grande altitude, e provavelmente nunca saberemos ao certo o que se passou nas últimas horas de Paljor, Smanla e Morup.

Quando as coisas dão errado, surge um frenesi na mídia, e a reação típica é dissecar o ocorrido para extrair lições. Algumas escolas de negócios até usam o desastre do Everest em 1996 como ferramenta de ensino, mas alguns especialistas acreditam que simplesmente não há como aplicar o bom senso ao que acontece acima dos 8.000 metros.

“É difícil saber ao certo o que realmente acontece durante um desastre em uma escalada, dadas as ambições das pessoas envolvidas, os ventos fortíssimos e o estado de hipóxia, desidratação e exaustão,” diz Michael Elmes, professor de estudos organizacionais no Instituto Politécnico de Worcester em Massachusetts. “Não acho que eventos como o desastre de 1996 possam ser completamente analisados ou previstos, e tenho minhas dúvidas de que existam maneiras de prevenir futuros desastres.”

Tashi Angmo tem dificuldade em lembrar os dias que se seguiram à morte de seu filho. Ela recorda de dois homens da Polícia de Fronteira Indo-Tibetana chegando à sua porta e perguntando se ela era a mãe de Paljor. Eles informaram que havia ocorrido um acidente no Everest, e ele estava desaparecido. O ITBP havia organizado uma busca, inclusive enviando um helicóptero, mas apesar dos esforços, ele parecia ter desaparecido.

Reprodução/Foto-RN176 Vista de Leh.

Olhando para trás, Tashi Angmo questiona a veracidade dos esforços de busca por seu filho. “Talvez eles tenham procurado por ele, talvez não,” ela reflete. “Mas se tivessem feito o esforço adequado, acredito que ele poderia ter sido encontrado e salvo.”

Ao receber a notícia, e na ausência de um corpo, juntamente com a informação dos oficiais de que seu filho estava desaparecido – e não declarado morto – ela passou os dias seguintes visitando todos os mosteiros locais para fazer thimchol, uma oferta pelo bem-estar. “Teria sido melhor se tivessem encontrado o corpo,” ela diz. “Eu ainda espero que ele volte, porque nunca encontraram o corpo.” Eventualmente, no entanto, seus parentes a convenceram a aceitar a realidade. Paljor não seria resgatado e não voltaria para casa. “Desaparecido é um termo que o ITBP usa para nos confortar,” disseram a ela, com delicadeza.

A família realizou um funeral e também participou de uma cerimônia do ITBP em homenagem aos três homens de Ladakhi. “Eu estava como morta,” disse Tashi Angmo.

Seu luto foi exacerbado pela amargura que surgiu em relação ao ITBP. Embora os oficiais tivessem prometido cuidar da família, eles receberam apenas a quantia do seguro de $3.690, seguida de uma pensão mensal de $36 – um valor que, segundo Tashi Angmo, “não dura três dias.”

“Vergonha do ITBP! Eles não são bons!” ela me disse, chorando. “Um filho não tem preço, dinheiro não significa nada. Mas nós somos a família afetada. Eu perdi meu filho. Eles deveriam cumprir suas promessas.” Embora Paljor tenha morrido como um herói, sua família recebeu pouco, enquanto seu corpo permanece na montanha, tornando-se um macabro ponto de referência. Quando o Everest tira uma vida, ele também a aprisiona. Afinal, ele se tornou o “Botas Verdes” – um escalador sem nome por quem as pessoas passam todos os anos a caminho de suas próprias glórias.

No entanto, essa não seria a última vez que se ouviria falar de Paljor… décadas depois, ele viria a desaparecer. Como já foi mencionado na investigação, o problema dos mais de 200 corpos que permanecem no Everest e as razões psicológicas que levam as pessoas a escalar esta montanha mortal continuam a ser questões prementes.

FONTE: EXTREMO E RN176