ROTANEWS176 17/02/2025 09:15 Por Douglas Mendonça
Vamos falar do “inesquecível” Gordini. Lançado na Europa em 1956 e três anos depois aqui no Brasil, falamos de um pequeno carrinho da categoria sedã. Foi um dos primeiros automóveis da nossa indústria automotiva, quando o então presidente Juscelino Kubitschek tinha como meta, no final dos anos 1950, acelerar a industrialização do país. O tal carrinho atendia bem às necessidades das famílias locais da época: custava barato, consumia pouco combustível, mas era, na verdade, uma caixa de fósforo, bem pequeno e frágil.
Tinha um motor minúsculo, com 31 hp SAE da época (algo em torno dos 23 cv atuais). Para piorar ainda mais, o modelo de origem francesa trazia apenas três marchas no câmbio manual. A primeira só era engatada com o veículo parado, afinal não era sincronizada.
Com tão pouca potência e transmissão limitada, já deu para imaginar a performance dessa “máquina” com quatro ocupantes e bagagem, né? Na realidade, uma verdadeira piada. Não precisa ser engenheiro para notar que o pequeno sedã se arrastava ao invés de acelerar.
Reprodução/Foto-RN176 Na Europa, o carrinho era vendido como Dauphine, mas por aqui foi rebatizado com nome do preparador que envenenava o carrinho na França
Na Europa, como rodava por regiões planas, o carrinho até dava conta do recado. Mas, nas ladeiras e rampas brasileiras, ele gemia! Muitas vezes, era fraco a ponto de não vencer uma subida: faltava força e marcha.
O interessante é que as suas propagandas da época, de 1959, 1960 e 1961, falavam de uma carroceria sólida, de um carro muito resistente e adequado ao Brasil, suas altas temperaturas, piso esburacado e aclives infindos. A realidade era outra: quando o público começou a rodar com o tal carro, tentando provar o que diziam os anúncios, todas aquelas vantagens caíam por terra. O pequeno carro começou a desmontar a partir dali.
Gordini era uma tragédia sobre rodas
Só para que se tenha uma ideia, na época, entre final dos anos 1950 e início dos anos 1960, existia um leite em pó da marca Glória. Como slogan, destacavam que ele era um dos únicos que “desmanchava sem bater”: isso significava que bastava jogá-lo na água para criar leite líquido, um processo bem mais fácil do que o com produto da concorrência. Não demorou muito para os brincalhões de plantão associarem esse slogan do leite Glória ao tal sedan de origem europeia: logo o carro ganhou o apelido nacional de “Leite Glória”, afinal desmanchava sem bater.
O baque foi pesado, afinal o carrinho ainda era novidade. Logo, foi sentido em suas vendas, que despencaram. Mas, não era só por conta do apelido: o modelo era realmente uma tranqueira. Frágil e com desempenho medíocre, para não dizer pior.
Reprodução/Foto-RN176 Com apenas 23 cv era impossível subir uma ladeira com lotação máxima (Foto: Wikimedia)
Tive um tio, o Alberto, que comprou um desses sedãs em 1962, com dois anos de uso. Preço bom, negócio atraente, e o tio Alberto comprou. Na época, ele tinha esposa e dois filhos pequenos, e o carrinho atendia à família dele, também pelo bom porta-malas frontal (tinha motor traseiro).
Lembro-me que esse tio morava numa casa que tinha garagem no subsolo. Uma rampa lateral levava o carro até a rua. Até aí, tudo normal, mas o tal sedã virava atração da família inteira na hora de sair da garagem por aquela tal subida: primeiro que o motor tinha que ser aquecido até a temperatura de operação antes de tirá-lo do lugar (não podia engasgar).
Meu tio alinhava com a rampa, ia o máximo possível para trás, e dentro do carro só ia ele: com o peso da esposa e filhos a bordo, nem pensar. A família ficava esperando na calçada, lá em cima, enquanto o pai ia “buscar o carro”.
O tio Alberto colocava o carrinho em altas rotações, engatava a primeira e arrancava valente, lá de baixo. Parecia largada de corrida. Começava a subir a rampa e, já na metade, as rotações do motor iam caindo, mostrando que a força dos 31 hp estavam se esvaindo.
Quando ele estava perto da calçada, no final da rampa, o pequeno propulsor de 850 cm³ já estava de “língua de fora”, quase apagando. Aquela era a primeira prova do dia com o carrinho: depois de embarcados esposa e crianças, o peso aumentava e, claro, outras subidas por aí tornavam-se desafiadoras.
Reprodução/Foto-RN176 Lado a lado as duas identidades do carrinho francês, Gordini e Dauphine, que suavam sangue para rivalizar com o Fusca (Foto: Willys | Divulgação)
O tal carrinho do meu tio, pintado de verde claro, tinha um motor de partida que nunca funcionava. Nesse caso, a partida era a base da boa e velha manivela, que era a mesma peça da chave de roda. Se o carro já estivesse na rua, todo mundo entrava a bordo, a manivela já ficava “de jeito” no porta-malas, e no parachoque traseiro estava o buraco para engatar a ferramenta.
No primeiro tranco na manivela, o motor acordava. Meu tio guardava a peça, sentava-se no seu posto de motorista e, como sempre, colocava o motorzinho para girar alto na hora de sair do lugar. Tenebroso.
Nem é preciso dizer que, em seis meses, meu tio já tinha trocado aquele meio de transporte por algo melhor e que, pelo menos, tinha torque para carregar seu peso e o dos ocupantes. Em terras de muitas subidas, como em Minas Gerais, era complicado: se precisasse reduzir de 2ª para 1ª numa subida, era preciso pará-lo totalmente e torcer para conseguir sair novamente. Não teve força? Não tinha jeito a não ser descer todo o aclive de ré, embalar lá de baixo e manter a 1ª do início ao final da subida.
Willys deu um upgrade no Gordini, mas a fama já estava feita
O sedã de projeto francês era fabricado, aqui no Brasil, por uma outra empresa, norte-americana, que não era a original dele. Logo perceberam que aquela primeira versão era uma furada, por isso se apressaram para lançar uma atualização com motor (bem) mais potente (40 hp SAE, ou cerca de 30 cv ABNT de hoje), quarta marcha no câmbio manual, 1ª sincronizada e até um novo nome, para esquecer o antigo completamente.
O design da carroceria era praticamente o mesmo, porém com estampas mais espessas e lataria mais sólida, o que, aí sim, melhorava a rigidez do modelo. Também havia freios melhores.
Esse carro, depois das modificações e do novo nome, ganhou uma história a parte na nossa indústria automotiva. Obteve muito mais sucesso que a do primeiro, raquítico e frágil, que ainda conseguiu ficar em produção até 1962. Histórias da nossa indústria.
FONTE: AUTOPAPO