Blader Runner 2049: Os androides voltaram

ROTANEWS176 E CARTACAPITAL 06/10/2017 16h38                                                                                              Por Jotabê Medeiros

O filme revisita uma âncora pós-moderna dos anos 1980 e reacende o debate sobre o universo das citações

Stephen Vaughan

Reprodução/Foto-RN176  O cipoal das citações está emaranhado, mas nem por isso mais sedutor

“Pele falsa.” O termo é pejorativo, usado por seres humanos normais para fustigar emocionalmente humanoides criados em laboratório, chamados de replicantes.

Nesse contexto, o policial K. (Ryan Gosling) é duplamente alvo de preconceito: além de ser um “pele falsa”, também é tira e vive isolado no gueto do gueto. Na porta de seu apartamento, alguém pichou “Esfolador nojento”, em tradução livre.

Sua função é exterminar modelos antigos de replicantes, ou seja, é um carniceiro de si mesmo. Se, como dizia John Lennon, a mulher é o negro do mundo (concentrando dois alvos preferenciais de segregação em uma frase), em 2049 é o replicante o negro do mundo.

É nesse ambiente, que já tinha sido o solo fértil no qual prosperou, há 35 anos, o filme Blade Runner: O caçador de androides, de Ridley Scott, que se estrutura a sequência Blade Runner 2049, dirigida por Denis Villeneuve, nos cinemas do mundo todo na sexta-feira 6.

O Blade Runner: O caçador de androides original, mistura de filme noir e ficção científica, foi uma espécie de âncora pós-moderna dos anos 1980. Influenciou diretores, músicos, designers, quadrinistas, arquitetos, escritores e videomakers. O francês Jean Baudrillard criticou a prevalência do visual no filme; o italiano Umberto Eco indagou qual seria a linha que separava o pai do filho e prevenia esse último de cometer um parricídio.

O segredo de sua condição hoje cult (foi um fracasso de bilheteria na época) parece evidente: o futuro distópico mostrado pelo filme mais sugeria do que explicava, o final era aberto e as conclusões morais eram tristes e melancólicas.

Reprodução/Foto-RN176   A Los Angeles do futuro na qual o novo caçador de androides K. (Ryan Gosling) segue os passos do pioneiro Rick Deckard (Harrison Ford, abaixo)

Durante anos, permaneceu o segredo sobre a condição do detetive Rick Deckard (Harrison Ford), o policial do primeiro filme: seria ele também um replicante? Como os replicantes tinham prazo de validade, qual seria o tempo de vida de Rachel (Sean Young), a paixão humanoide de Deckard? O tempo que dura o amor?

O fascínio dessas possibilidades, abertas ao espectador, tornou a própria versão posterior do diretor Scott irrelevante: nada do que ele queria que fosse o final tornou-se mais determinante do que o final que cada espectador criou na própria cabeça. Era como se Machado de Assis, num surto voluntarista, decifrasse o segredo de Capitu.

As citações deliciam até hoje os fãs: quais seriam as corporações que engoliriam as outras para reinar no futuro (2019)? Quais metrópoles se juntavam para culminar na grande megalópole? Em 2049, o novo futuro de emoções sintéticas é ainda mais cinza e perturbador, com uma vantagem: quase inteiramente filmado em Budapeste, na Hungria, evita ao máximo o uso da computação gráfica. É esse artesanato que mais seduz.

Reprodução/Foto-RN176

Como na simbologia cristã, o presumível nascimento de uma criança em 2021 é que acelera as expectativas. Para os humanos, entretanto, isso é prenúncio de guerra. Para os replicantes, os novos escravos construtores de pirâmides e fazendeiros de orgânicos, é a esperança da redenção.

No filme original, os replicantes estavam em busca das mesmas respostas que os seres humanos: de onde viemos? Para onde vamos? Quanto tempo temos? Agora, eles já têm um Messias, um Jesus, embora não saibam onde está.

Interessante notar, na segunda metade do filme, o conceito de “ruínas culturais” que o cineasta Villeneuve seleciona. Deckard envelhece nostalgicamente numa Las Vegasabandonada, acompanhado apenas de um cachorro silencioso, como um Zé Buscapé do pós-apocalipse.

De Las Vegas, notório playcenter norte-americano (em voga no noticiário agora, por motivos violentos), sobraram os resorts gigantescos e os seus heróis culturais holográficos (Elvis Presley, Frank Sinatra, Liberace). K. aciona, “acidentalmente”, um aparelho que projeta Sinatra cantando One for My Baby (One More for the Road): São 15 para as 3/ não há ninguém aqui/ exceto eu e você/ deixa eles pra lá, Joe.

Reprodução/Foto-RN176  As mulheres de 2049: Luv (Sylvia Hoecks)…

A segregação de uma minoria (os modelos antigos de replicantes, mais sentimentais) é metáfora que já nutria o filme original. Mas há uma intensificação da condição de exploração, até mesmo com o trabalho infantil numa fábrica na periferia do mundo (um ferro-velho gigante, misto de Paquistão, Afeganistão e Índia).

O pântano dos sentimentos fica mais movediço. Os replicantes choram com mais facilidade do que no primeiro filme. Até os mais desumanizados, como a cruel Luv (Sylvia Hoeks), demonstram sentimentos extremados e lutam por causas particulares; no caso de Luv, a lealdade canina a uma empresa, representada por uma espécie de Steve Jobs feito de memory cards, Niander Wallace (Jared Leto).

Nessa devastação emocional, o único sentimento que o policial replicante K. se dá ao luxo de externar é o afeto que nutre por um aplicativo holográfico chamado Joi (Ana de Armas). O mais irônico é que Joi não é exclusiva: há comerciais gigantescos dela por toda Los Angeles e suas frases são clichês para acalentar machos-padrão. E, ainda assim, enternecem K.

Reprodução/Foto-RN176  …Joi (Ana de Armas) e…

O nome K., obviamente, faz referência a Franz Kafka. Josef K. é o personagem do romance O Processo, um funcionário exemplar de banco que um dia se vê engolido por labiríntica engrenagem judicial, sem possibilidade de apelo, chegando ao ponto de perder o interesse pela própria existência. É mais ou menos isso que sucede ao caçador de androides.

Niander Wallace compra a antiga corporação Tyrell, que fabricava os replicantes do passado. Reclama que o vendedor não lhe repassou alguns segredos industriais – o maior seria o de dar condições para que as humanoides pudessem engravidar. Enfurecido, retalha úteros defeituosos em busca da fertilização.

O cipoal de citações está mais emaranhado, denso, mas nem por isso mais sedutor. A linguagem é de novo um esperanto compreensível por todos. A holografia de Elvis, falha, invade o mundo avermelhado cantando Can’t Help Falling in Love e Suspicious Minds.

Há diálogos adivinháveis. Quando K. fala à chefe de polícia, tenente Joshi (Robin Wright), que sua nova incumbência é exterminar o(a) filho(a) nascido(a) de dois replicantes, porque teria alma, a chefe lhe diz: “Você tem feito um bom trabalho sem”. Ele pergunta: “Sem o quê?” “Alma”, ela responde – mas o espectador responde antes.

Reprodução/Foto-RN176  …Joshi (Robin Wright)

Chamava atenção, no filme original, a música composta pelo grego Vangelis. Feita de uma mistura orgânica de jazz e eletrônica, música de boate e orquestral, com um artesanato de sintetizadores, enfatizava a perseverança do humano nas infinitas combinações matemáticas da música do futuro.

A música do novo Blade Runner é impactante sem ser nostálgica, uma batida pesada, opressiva, resultado do trabalho de dois compositores excepcionais: Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch. Villeneuve demitiu, em plena filmagem, o compositor Johann Johannsson, insatisfeito com o resultado. Queria algo que fosse um prolongamento natural da música original.

Há um momento em Blade Runner 2049 em que é oferecida a Deckard uma cópia (uma replicante) de sua mulher no primeiro filme, Rachel. As famosas ombreiras, o jeito de andar, a franja: tudo parece estar de volta. Emocionado, Deckard aproxima-se, toca o rosto dela, chora. Súbito, dá as costas à cena e diz, secamente: “Ela tinha olhos verdes”.

É mais ou menos o que podemos dizer da produção original em relação a esta: está tudo ali, tudo se conecta, o novo artefato é chancelado pelos protagonistas do passado. Mas o fato é que a produção original tinha olhos verdes. Veja o trailer do filme androides na integra e entenda a situação no ano de 2049!