Ativista contou à BBC como foi sequestrada e escravizada sexualmente pelo grupo extremista autodenominado Estado Islâmico.
ROTANEWS176 E POR BBC NEWS BRASIL 05/01/2018 09:47
Os ativistas Nadia Murad, de 25 anos, e Denis Mukwege, de 63 anos, receberam nesta sexta-feira o Prêmio Nobel da Paz de 2018 por seus esforços na luta contra o uso da violência sexual como arma de guerra e conflito armado.
Reprodução/Foto-RN176 Nadia, hoje com 25 anos, se tornou porta-voz da campanha para libertar os yazidi, minoria étnica e religiosa Foto: Getty Images / BBC News Brasil
Nadia, que pertence à minoria yazidi no Iraque, foi sequestrada e violentada pelo grupo extremista autodenominado Estado Islâmico (EI) e hoje luta contra o tráfico sexual de mulheres.
Mukwege é um ginecologista congolês que atende há décadas mulheres estupradas na República Democrática do Congo. Junto aos colegas, ele já cuidou de mais de 30 mil vítimas com ferimentos graves em decorrência de violência sexual realizada como arma de guerra.
Reprodução/Foto-RN176 Mukwege já atendeu milhares de vítimas de estupro com ferimentos graves no Congo Foto: Getty Images / BBC News Brasil
De acordo com Berit Reiss-Andersen, presidente do Comitê do Nobel, a dupla deu uma “contribuição crucial para chamar a atenção e combater tais crimes de guerra.”
No total, 331 indivíduos e organizações foram indicados ao prêmio neste ano, entregue em Oslo, na Noruega.
Confira abaixo a história de Nadia publicada pela BBC News Brasil:
Quando integrantes do grupo autodenominado Estado Islâmico (EI) invadiram a aldeia de Nadia Murad no Iraque, em 2014, mataram todos os homens, incluindo seis de seus irmãos.
Nadia é da minoria étnica e religiosa yazidi, considerada “infiel” pelos extremistas do EI.
Ela e centenas de outras mulheres yazidis foram sequestradas, vendidas e passadas de mão em mão por homens que as estupraram coletivamente. Foram vítimas do que o EI chama de “jihad sexual”.
Nadia conseguiu fugir após passar três meses em cativeiro, mas acredita-se que milhares de mulheres continuem presas.
O ataque
Em 3 de agosto de 2014, o EI atacou os yazidis em Sinjar, região no norte do Iraque próxima a uma montanha de mesmo nome. Antes disso haviam atacado locais como Tal Afar, Mosul e outras comunidades xiitas e cristãs, forçando a saída dos moradores.
“A vida em nosso vilarejo era muito feliz, muito simples. Como em outros vilarejos, as pessoas não viviam em palácios. Nossas casas eram simples, de barro, mas levávamos uma vida feliz, sem problemas. Não incomodávamos os outros e tínhamos boas relações com todos”, contou Nadia ao programa HARDtalk da BBC.
Naquele dia de agosto, diz ela, 3 mil homens, idosos, crianças e deficientes foram massacrados pelo EI.
Alguns conseguiram fugir e se refugiar no monte Sinjar, mas a aldeia estava longe da montanha e o EI cercou as saídas.
Perseguidos, os yazidis reverenciam a Bíblia e o Alcorão, mas grande parte de sua tradição é oral.
“Rodearam a aldeia por alguns dias mas não entraram. Tentamos pedir ajuda por telefone e outros meios. Sabíamos que algo horrível iria acontecer. Mas a ajuda não chegou, nem do Iraque nem de outras partes.”
Depois de alguns dias, o EI encurralou os moradores na escola da aldeia e ali seus militantes mantiveram homens, mulheres e crianças.
“Deram-nos duas opções: a conversão ao islã ou a morte”, disse Nadia.
Reprodução/Foto-RN176 Uma vez libertada, Nadia Murad conseguiu refúgio na Alemanha Foto: EPA / BBC News Brasil
Assassinatos, sequestros e estupros
Logo separaram os homens, cerca de 700. Levaram todos para fora da aldeia e começaram a atirar neles. Nove irmãos de Nadia estavam entre eles.
Seis dos irmãos de Nadia morreram ─ três ficaram feridos mas escaparam.
“Da janela da escola podíamos ver os homens sendo baleados. Não vi meus irmãos sendo atingidos. Até hoje não pude voltar à aldeia nem ao local da matança. Não há notícias de nenhum dos homens.”
Segundo Nadia, meninas acima de nove anos e meninos acima de quatro anos foram levados a campos de treinamento.
“Depois levaram umas 80 mulheres, todas acima de 45 anos, incluindo minha mãe. Uns diziam que haviam sido mortas, outros que não. Mas quando parte de Sinjar foi liberada encontrou-se uma vala comum com seus corpos”, conta.
Ao todo, 18 membros da família de Nadia morreram ou estão desaparecidos.
Nadia foi levada com outras mulheres. Havia cerca de 150 meninas no grupo, incluindo três sobrinhas dela.
Elas foram divididas em grupos e levadas de ônibus até Mosul.
“No caminho eles tocavam nossos seios e esfregavam as barbas em nossos rostos. Não sabíamos se iam nos matar nem o que fariam conosco. Percebemos que nada de bom iria ocorrer porque já tinham matado os homens e as mulheres mais velhas, e sequestrado os meninos.”
Ao chegar ao quartel-general do EI em Mosul, encontraram muitas jovens, mulheres e meninas, todas yazidis. Tinham sido sequestradas em outras aldeias no dia anterior.
A cada hora, homens do EI chegavam e escolhiam algumas meninas. Elas eram levadas, estupradas e devolvidas.
Nadia percebeu que esse também seria seu destino.
Reprodução/Foto-RN176 Estado Islâmico controla grandes partes do Iraque e da Síria Foto: AFP / BBC News Brasil
Sem compaixão
No dia seguinte, um grupo de militantes do EI chegou. Cada um escolheu uma menina, algumas entre 10 e 12 anos.
“As meninas resistiram, mas foram forçadas a ir. As mais jovens se agarravam às mais velhas. Uma delas tinha a mesma idade de minhas sobrinhas, chorava e se prendia a mim.”
Quando chegou sua vez, Nadia foi selecionada por um homem bem gordo que a levou a outro andar. Um outro militante passou e o convenceu a levá-la ─ mas isso não mudou as coisas.
“O homem mais magro me levou até sua casa, tinha guarda-costas. Estuprou-me, e foi muito dolorido. Nesse momento percebi que teria sofrido do mesmo jeito, não importasse com quem.”
Nenhum dos homens mostrou clemência. Todos estupraram as mulheres de forma violenta. “As coisas que fizeram foram horríveis. Nunca imaginamos que coisas tão terríveis aconteceriam conosco.”
Os extremistas chegavam a manter as mulheres consigo por mais de uma semana, porém frequentemente elas eram vendidas um dia ou até uma hora após o estupro.
Algumas mulheres dos irmãos de Nadia estavam grávidas quando foram capturadas e deram à luz no cárcere.
Elas também foram levadas ao tribunal islâmico do EI e forçadas a se converter.
Nadia passou três meses com o homem que a levou. Durante esse período conseguiu conversar com alguns sequestradores.
Embora algumas áreas de Sinjar tenham sido liberadas, ainda há valas comuns por descobrir.
“Perguntei por que faziam aquilo conosco, por que haviam matado nossos homens, por que nos estupraram violentamente. Disseram-me que ‘os yazidis são infiéis, não são um povo das Escrituras, são um espólio de guerra e merecem ser destruídos'”.
Ainda que a maior parte desses militantes fossem casados, as famílias – inclusive as mulheres – pareciam aceitar o que faziam, disse Nadia.
Em uma ocasião, ela pediu autorização para fazer uma chamada telefônica porque queria escutar uma voz familiar.
Disseram que poderia ligar para seu sobrinho por um minuto, mas com uma condição: “Que primeiro eu lambesse o dedo do pé que um homem havia coberto com mel.”
Muitas jovens na mesma situação se suicidaram, disse Nadia, mas essa não foi uma opção para ela.
“Acho que todos devemos aceitar o que Deus nos deu, sem importar se é pobre ou se sofreu uma injustiça; todos devemos suportar.”
Ela tampouco questionou sua fé. “Deus estava cada minuto em minha mente, ainda quando estava sendo estuprada.”
Nadia tentou fugir pela primeira vez por uma janela, mas um guarda a capturou imediatamente e a colocou em um quarto.
Sob as regras do EI, disse Nadia, uma mulher se converte em espólio de guerra caso seja capturada tentando escapar. Colocam-na em uma cela onde foi estuprada por todos os homens do complexo.
“Fui estuprada em grupo. Chamam isso de jihad sexual.”
Reprodução/Foto-RN176 Yazidis são perseguidos pelo Estado Islâmico Foto: EPA / BBC News Brasil
Fuga
Após esse episódio, Nadia não pensou em fugir de novo, mas o último homem com quem viveu em Mosul decidiu vendê-la e foi arranjar roupas para ela.
Quando ordenou que ela tomasse banho e se preparasse para a venda, ela aproveitou para escapar.
“Bati na porta de uma casa onde vivia uma família muçulmana sem conexão com o EI e pedi ajuda. Disse que meu irmão daria o que eles quisessem em troca.”
Por sorte, a família não apoiava o EI e a ajudou.
“Deram-me um véu negro, um documento de identidade islâmico e me levaram até a fronteira.”
Foi assim que conseguiu fugir.
“Mataram minha mãe. Meu pai morreu faz tempo. Meu irmão mais velho era como um pai para mim, mas também foi morto. Peço ao mundo que faça algo por nós.”
Ativismo
Nadia se tornou uma ativista após escapar do EI em novembro de 2014 – e viaja o mundo fazendo campanha para chamar atenção para a tragédia dos yazidis.
A luta de Nadia rendeu a ela vários prêmios internacionais, além do Nobel da Paz.
Em 2016, ela recebeu da União Europeia o importante prêmio Sájarov à Liberdade de Consciência, junto a Lamiya Aji Bashar, também escravizada pelo EI.
No mesmo ano, também foi nomeada embaixadora da Boa Vontade da ONU para a Dignidade dos Sobreviventes do Tráfico Humano.
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