PMs pagavam ‘pedágio’ de R$ 60 mil por mês ao chefe do tráfico no Morro do Dendê

ROTANEWS176 E POR IG 28/06/2019 09:10

Com 14 mandados de prisão e foragido por 18 anos, Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, foi morto pela polícia nesta quinta-feira

Reprodução/Foto-RN176 Guarabu era chefe do tráfico de drogas do Morro do Dendê – Arquivo pessoal

Um grupo de oito policiais militares, sete da ativa, é investigado pela Corregedoria da Polícia Militar por participar de um esquema ligado ao chefe do tráfico na Ilha do Governador, Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, de 40 anos. O bandido e mais quatro cúmplices foram mortos ontem em uma operação policial . Segundo as investigações, os PMs arrendaram de Guarabu uma permissão para explorar a venda de gás no bairro. Em contrapartida, pagavam ao traficante um “pedágio” de R$ 60 mil por mês.

Entre os policiais investigados, há um tenente e um cabo da reserva. A Corregedoria fez ontem uma operação para cumprir 34 mandados de busca e apreensão pelo Dendê , parte deles em armários de policiais em quatro unidades: 17º BPM (Ilha do Governador), 31º BPM (Recreio), 4º BPM (São Cristóvão) e Comando de Polícia Ambiental (CPAM).

De acordo com as investigações dos corregedores, dois dos PMs são donos de uma distribuidora de gás. A empresa vende botijões por um preço mais alto do que o de mercado aos comerciantes da Ilha. Estes, por sua vez, são forçados pelos demais policiais do esquema a adquirir o produto com ágio. Parte do lucro com essa venda inflacionada era repassada a Fernandinho Guarabu, para que o chefe do tráfico permitisse a atuação dos policiais .

‘Pedágio’

Ontem, as equipes do Batalhão de Choque e da Corregedoria chegaram à Ilha do Governador no fim da madrugada, para dar início à operação Repugnare Criminis (“para lutar contra o crime”, em latim). No entanto, por volta das 5h30, um carro preto com cinco ocupantes tentou furar um cerco no entorno do Morro do Dendê e mudou o rumo dos acontecimentos. No veículo, estava todo o comando da quadrilha que atua na região, inclusive o chefe do tráfico há mais tempo em liberdade no Rio de Janeiro . Teve início, então, um confronto.

Com 14 mandados de prisão e foragido por 18 anos, Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, levou vários tiros e não resistiu aos ferimentos.

‘Bunker no Dendê’

Guarabu era um dos criminosos mais procurados do Rio — o Disque-Denúncia (21 2253-1177) oferecia uma recompensa de R$ 30 mil por pistas que levassem à sua captura. Mas a dificuldade para prendê-lo estava diretamente relacionada, de acordo com investigadores, à forma como ele construiu um verdadeiro império na Ilha do Governador.

Guarabu tinha um “exército” de aproximadamente cem homens bem armados e gastava mais de R$ 500 mil por mês em propinas. Raramente saía do Morro do Dendê, onde se sentia bem protegido. Só deixou a comunidade na madrugada de ontem porque havia sido chamado para uma reunião de chefes do tráfico no Complexo da Maré, onde costumava participar de bailes funk, sempre armado com fuzil e granadas.

Na ação de ontem, também foram mortos dentro do carro em que ele estava Gilberto Coelho de Oliveira, o Gil, amigo de infância de Fernandinho, dois bandidos identificados como Paulo César da Costa, o Piu, Tiago Farias Costa, o Logan, e o ex-PM Antônio Eugênio de Souza Freitas, o Batoré. Em um outro confronto com policiais, um sexto acusado de participação no crime organizado da Ilha morreu.

Apesar de a PM ter reforçado o policiamento no bairro, moradores temem uma guerra pelo controle de bocas de fumo, do transporte alternativo e da venda gás.

Comparsa era suspeito na morte de Marielle

Batoré era um nome de peso na quadrilha. Considerado um dos mais requisitados matadores de aluguel do estado, ele chegou a ser considerado suspeito de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, no ano passado, e foi investigado por diversos outros homicídios de grande repercussão.

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Gil, por sua vez, era apontado como um eventual sucessor de Guarabu. Ganhou fama por atos de violência e por ter sido aficionado pelo personagem Hulk: tinha uma estátua do personagem à beira da piscina de sua casa, e o gigante verde dos quadrinhos e do cinema ainda estampava sua pistola favorita, assim como seu radiotransmissor e seu coldre.

Informações levantadas pelo serviço de inteligência da PM dão conta de que boa parte da quadrilha fugiu para a Maré, e a expectativa é de que bandidos do complexo sejam mobilizados para ocupar o lugar do grupo. No entanto, muitos acreditam que uma facção rival do tráfico e até mesmo uma milícia entrem na disputa pelo império deixado por Guarabu.

Quatorze mandados e nenhuma prisão

Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, tinha contra ele 14 mandados de prisão por tráfico de drogas, homicídios e outros crimes. Entretanto, o traficante, que era evangélico e tinha uma fervorosa crença em Jesus Cristo, nunca havia sido preso, embora tivera sido alvo de diversos cercos policiais na última década.

Investigações do Ministério Público e da Polícia Civil indicam que Guarabu se associou a milicianos há três anos, passando a cobrar taxas de motoristas de vans e Kombis na Ilha do Governador. Ele controlava 13 linhas e cobrava R$ 330 de cada motorista — a exploração de 500 cooperativados teria lhe rendido R$ 27 milhões entre 2013 e 2017.

Segundo o MP, o bandido forçava pescadores a transportar armas e drogas pela Baía de Guanabara. Ele chegou a criar um depósito temporário na Ilha Seca, perto do subbairro Ribeira.

Em junho de 2007, um tiroteio entre cúmplices dele e policiais causou o fechamento de uma das pistas do Aeroporto Internacional Tom Jobim.

Intolerância

Cinco anos depois, motoqueiros foram proibidos de circular com capacete na Ilha por conta do medo do traficante de ter sua área invadida por um bando rival.

Guarabu frequentava a Assembleia de Deus Ministério Monte Sinai desde 2006 e tinha o nome de Jesus Cristo tatuado no antebraço direito, além de colecionar bíblias. Em 2013, quem fosse visto andando de branco no Dendê era ‘‘convidado a sair’’. O traficante chegou a ordenar que dizeres bíblicos fossem escritos nos muros da favela e determinou o fechamento de dez centros espíritas na região, proibindo em seu reduto manifestações relacionadas à umbanda e ao candomblé.

O traficante controlava a venda de drogas na região desde meados de 2004, quando assumiu as bocas de fumo do Dendê após guerra iniciada em outubro de 2003, que resultou na morte de mais de 30 pessoas. À época, houve um racha entre os bandidos ligados a Romildo Souza Costa, o Miltinho do Dendê, que era o chefão do tráfico na área.

PM havia filmado quadrilha

Após a operação de ontem, a Polícia Militar revelou que, por dois meses, uma câmera instalada pelo major Alan de Luna Freire, registrou cada movimento da quadrilha de Guarabu dentro de uma casa, usada como quartel-general do bando, no Dendê. Em novembro passado, o PM foi executado a tiros em Nova Iguaçu.

Nas imagens, obtidas com exclusividade pelo “RJTV’’, da TV Globo, não só o chefe da quadrilha aparece no esconderijo (contando bolos de dinheiro), como também Batoré — que prepara um sanduíche — e outras lideranças, como Humberto Jerônimo, o Gordon, irmão de Gil, e Marcos Vinícius dos Santos, o Chapola, considerado pela polícia como possível sucessor no comando do tráfico na região, no lugar de Guarabu.

“O major Luna conseguiu ter acesso a esse local, onde somente os líderes frequentavam, e instalou essas câmeras, que depois foram descobertas por esses criminosos, que retiraram as câmeras, e deixaram em cima da mesa para que quando o major voltasse ao local percebesse que eles tinham descoberto — revelou o delegado titular da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF), Moysés Santana’’.

Nas ruas, clima de medo

O tiroteio deixou um rastro de destruição por ruas próximas ao Morro do Dendê : casas e carros foram atingidos por balas. Além disso, o clima era de medo no bairro. Policiais militares ocuparam os principais acessos à favela, revistando moradores e carros.

Nas ruas, o movimento era menor que o habitual, reclamou um comerciante da Estrada do Cacuia. Apenas quem precisavam ir trabalhar ou para a escola circulava. Na frente do Cemitério do Cacuia, PMs montaram uma barreira.

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“O trabalhador não pode nem sair de casa com tranquilidade”, reclamou uma moradora. Na Rua Uruaçu, perto de onde houve o tiroteio no Dendê , várias casas ficaram com marcas de tiros. Pelo menos cinco carros tinham perfurações ou estavam batidos.