CORONAVÍRUS/COVID-19 –
ROTANEWS176 E POR ESTADÃO CONTEÚDO 25/07/2020 08h56 Por Fabiana Cambricoli
Centros do estudo no País são chefiados por cientistas do sexo feminino, assim como instituições responsáveis por acordo
Por trás da parceria que trouxe ao Brasil os testes da vacina de Oxford contra o coronavírus, algumas brasileiras se destacam na viabilização do acordo e na coordenação dos estudos. No campo da ciência, onde as mulheres, apesar de numerosas, ainda ocupam menos cargos de liderança do que os homens, foi uma mulher que intermediou a parceria entre o Brasil e o Reino Unido para trazer os estudos clínicos do imunizante ao País.
Os três centros de estudo da vacina no Brasil, em São Paulo, Rio e Bahia, têm à frente cientistas mulheres, assim como o braço brasileiro do laboratório farmacêutico AstraZeneca, que fez parceria com a Fiocruz para transferir a tecnologia do produto. A fundação centenária, aliás, também tem como presidente uma mulher – a primeira em 120 anos de história. E até a primeira voluntária a receber a vacina também é uma cirurgiã dentista que atua na linha de frente de atendimento aos pacientes com covid.
O Estadão entrevistou algumas das mulheres protagonistas da pesquisa da vacina no Brasil. Conheça abaixo as histórias:
“Lutei como uma leoa para trazer essa pesquisa ao Brasil”, diz pesquisadora que intermediou parceria com Oxford
Era 6 de maio quando a infectologista carioca Sue Ann Costa Clemens recebeu uma ligação de Andrew Pollard, investigador-chefe da Universidade de Oxford no estudo da vacina contra a covid-19. A brasileira, diretora do Instituto para a Saúde Global da Universidade de Siena (Itália), já era conhecida do britânico por sua larga experiência em estudos clínicos com um grande número de participantes. Em uma das pesquisas que coordenou em sua carreira, a cientista conseguiu recrutar 60 mil voluntários em apenas seis meses.
Era essa rapidez no recrutamento que os britânicos precisavam para não perderem a janela de oportunidade para os testes da vacina. Para que um imunizante tenha sua eficácia medida adequadamente, ele precisa ser testado em uma população com alta exposição ao vírus. Era fundamental, portanto, que os testes começassem quando a curva de casos ainda estivesse em ascensão.
Pollard consultou Sue sobre a possibilidade de ela encontrar centros de estudo capacitados no Brasil e coordenar a pesquisa por aqui caso Oxford decidisse realizar parte do ensaio clínico no País. A brasileira aceitou, de imediato, a missão. Sabia que trazer o estudo para o Brasil poderia facilitar nosso acesso ao imunizante caso ele se mostrasse eficaz.
“Dois dias depois da ligação do professor Andrew, eu já estava com todo o estudo desenhado na minha cabeça. Entre o primeiro contato dele e eu abrir o primeiro centro, foram 44 dias. Lutei como uma leoa para trazer esse estudo para o Brasil. Sabia que se tivéssemos essa pesquisa aqui, nossa população poderia ser beneficiada”, conta ela.
Mas até a pesquisa efetivamente começar, Sue atuou nas mais diferentes frentes para viabilizar a ensaio clínico, desde o aluguel de móveis para o centro até pedidos de financiamento para o estudo. “A primeira coisa que eu fiz foi ligar para o (então) ministro (da Saúde, Nelson) Teich, que deu todo o suporte e pediu para eu apresentar a proposta. Não tínhamos ainda dinheiro, então fui bater na porta do Instituto D’Or (IDOR) e da Fundação Lemann, que me deram resposta em uma semana, topando apoiar o projeto”, conta ela.
A médica também fez contato com pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que ela já conhecia da época de seu doutorado, para montar o principal centro de estudo no local. “Pegamos um galpão, contratamos arquiteto, alugamos móveis e fizemos esse centro. Tivemos também que fazer obra para aumentar a ala de espera porque não podia aglomerar gente”, conta Sue, que precisou cuidar também da aquisição de equipamentos de armazenamento do imunizante, como geladeiras e autoclaves, para os três centros – além do paulista, foram abertos, com apoio do IDOR, centros no Rio e na Bahia.
Cada um deles é chefiado também por cientistas mulheres e Sue coordena a operação dos três. “Começamos a recrutar os voluntários muito rápido. Com um mês, já estamos com 1,7 mil vacinados e a expectativa é vacinar os 5 mil voluntários até o fim de agosto”, conta.
O volume de trabalho tem sido insano com a atuação no centro de pesquisa do Rio, reuniões com os pesquisadores dos outros centros brasileiros e conversas diárias com o time de Oxford e de outros países que também estão testando a vacina. “Já começo o dia às 7 horas com Oxford na linha para discutirmos como está o andamento do estudo em cada local. De segunda a sábado vou ao centro, checo toda a parte de qualidade, ética, tiro dúvidas. No domingo, é reunião o dia inteiro com o time Brasil.”
Sue ainda separa algum tempo para participar de outras iniciativas de busca de uma vacina contra a covid. Ela integra o comitê científico de uma empresa alemã e uma chinesa que também trabalham no desenvolvimento de imunizantes e coordena um esforço da Fundação Bill e Melinda Gates para a capacitação de centros de pesquisa na América Latina que estejam prontos para receber estudos quando novas vacinas candidatas avançarem na pesquisa.
“Pela fundação, tenho a missão de identificar, preparar e equipar de 10 a 15 centros na América Latina para que eles possam entrar em estudos internacionais a partir de outubro, quando achamos que novas vacinas em teste estarão prontas para entrar em fase 3, o que exigirá o recrutamento de um grande número de voluntários.”
Nessa agenda já lotada, a pesquisadora ainda encontra algum tempo para ministrar aulas online no mestrado que criou na Universidade de Siena sobre desenvolvimento clínico e imunologia, o único do tipo no mundo.
Há 15 anos trabalhando fora do País, Sue conta que alcançar a chefia de um instituto em uma universidade europeia não foi fácil. “Sempre tive muitas oportunidades, mas é fato que a mulher muitas vezes tem que trabalhar o dobro para ter o mesmo reconhecimento que um homem. Percebi que, nos últimos anos, isso vem mudando na Europa. Há muitas medidas para promover a igualdade de gênero. O negócio é não desistir”, diz.
A pesquisadora ressalta a importância de ampliar esse debate no campo científico, onde as mulheres têm uma participação importante, mas ainda são minoria em cargos de liderança. “Na ciência, a mulher tem uma representação grande mundialmente, mas elas não são notadas, são invisíveis. São situações como essa (da pesquisa de Oxford) que mostram a nossa força, mas é importante dizer que isso não é de agora. Se você notou as mulheres em destaque nessa pesquisa, é porque a gente está podendo mostrar agora nossa força e agilidade, mas estamos batalhando na ciência há muito tempo.”
À frente do acordo para produção da vacina no Brasil, a primeira presidente mulher da Fiocruz em 120 anos de história
Muito antes do início das tratativas para um acordo de produção da vacina de Oxford no Brasil, a socióloga Nísia Trindade Lima, primeira mulher a ocupar a presidência da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 120 anos de história, já estava mergulhada na resposta brasileira à covid.
Desde os primeiros meses do ano, quando o novo coronavírus castigava a China e estava fazendo as primeiras vítimas no Brasil, Nísia já tinha que coordenar uma série de ações que ficaram sob a responsabilidade da instituição, como a produção de milhões de testes diagnósticos, a capacitação de laboratórios públicos do País e de países vizinhos e a preparação do seu instituto de infectologia para atender pacientes com a doença.
Entre o final de abril e o início de maio, Nísia e equipe entraram em uma nova frente de batalha – iniciaram a análise das diferentes vacinas que estavam sendo testadas no mundo para pensar em formas de fazer parcerias de produção e facilitar o acesso do País ao imunizante. “Intensificamos a prospecção de todas as vacinas existentes no mundo contra a covid. Fizemos uma matriz de análise em conjunto com a Secretaria de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde”, conta ela.
A partir das análises dos resultados preliminares dessas vacinas em teste e conversas entre o Brasil e os responsáveis pela vacina de Oxford, decidiu-se firmar um acordo com os parceiros britânicos. “Houve um movimento dos dois lados. O ministério contatou várias farmacêuticas colocando o Brasil à disposição para participar dos testes clínicos e colaborar com a nossa competência. Recebemos um contato do laboratório AstraZeneca (parceiro de Oxford no desenvolvimento) e da embaixada britânica”, conta Nísia.
“Com base na análise científica que tínhamos feito, o governo brasileiro firmou uma carta se comprometendo a adquirir 30,4 milhões de doses da vacina, mas com o acordo de que haverá a transferência integral da tecnologia para que possamos produzir nacionalmente na Fiocruz, por meio de Biomanguinhos. Com isso, o Brasil poderá ser autossuficiente”, destaca ela.
Nísia está em seu quarto ano como presidente da Fiocruz, mas já acumula mais de três décadas de trabalho na instituição. Já passou por cargos técnicos e executivos, mas, mesmo assim, ainda sofre questionamentos sobre sua competência para estar no posto.
“Paralelamente à carreira de pesquisadora, atuei como gestora por oito anos na Casa Oswaldo Cruz, trabalhei na Editora Fiocruz, fui vice-presidente de educação, comunicação e informação e, vez ou outra, ainda passo pelo processo de desqualificação”, diz.
Nísia destaca a criação de um comitê pró-equidade de gênero e raça na Fiocruz para discutir a questão da igualdade na ciência. “A Fiocruz tem 56% dos trabalhadores mulheres e, na área de pesquisa, esse percentual é equivalente, de 57%. Somos maioria, temos muitas mulheres em lideranças de grupos de pesquisa, mas nos cargos de gestão essa progressão não é acompanhada. Isso tem a ver com uma dificuldade de reconhecimento do papel das mulheres nos cargos de gestão científica e liderança.”
Diante da dificuldade e do lento avanço rumo à igualdade de gênero na ciência (e na sociedade como um todo), Nísia faz questão de destacar a presença de outras mulheres na coordenação de departamentos fundamentais da fundação que vem atuando na resposta à covid. “São muitas mulheres na linha de frente dessa resposta. Isso vai desde o laboratório de referência para vírus respiratórios até a área de desenvolvimento de Biomanguinhos, área de pesquisa clínica. Temos que valorizar essa presença em espaços tão importantes.”
“Meus filhos pequenos já sabem o que é vacina”, diz diretora médica de laboratório parceiro na pesquisa
Na casa de Maria Augusta Bernardini, seus filhos, de 3 e 7 anos, já sabem o que é vacina. A diretora médica da AstraZeneca no Brasil teve que conversar com as crianças sobre o assunto para justificar por que tem trabalhado tanto desde maio, quando o laboratório, parceiro da Universidade de Oxford no desenvolvimento da vacina, iniciou o processo de parceria com o Brasil para futura produção do imunizante.
A diretora coordena uma equipe de cerca de 25 pessoas que trabalham em diversas frentes da parceria. “Inicialmente, como temos expertise em pesquisa clínica no País, colaboramos com a documentação para aprovação da pesquisa. Depois veio a parceria com a Fiocruz para futura transferência de tecnologia”, diz.
O período que antecedeu a aprovação do estudo junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) foi o de maior estresse, segundo Maria Augusta. “Precisávamos correr para iniciar o estudo quando a pandemia ainda estivesse no pico aqui”, conta.
Reprodução/Foto-RN176Maria Augusta Bernardini, Executive Medical Director na AstraZeneca do Brasil Ltda Foto: Divulgação/AstraZeneca / Estadão ConteúdoFoto: Divulgação/AstraZeneca / Estadão Conteúdo
Com a pesquisa já aprovada e em andamento, Maria Augusta conta que o maior desafio agora é lidar com as expectativas externas sobre o resultado. “É um desafio extra porque o mundo inteiro, inclusive meus familiares e amigos, estão ansiosos por uma vacina. Alguns me pressionam, mas não temos respostas ainda”, diz. “Mas isso virou um objetivo maior de vida, não só pelo que o mundo está passando, mas porque vejo amigos médicos na linha de frente da pandemia, correndo risco”, diz.
A diretora, que lida quase que diariamente com as outras mulheres à frente do processo, defende que a liderança feminina deve ser mais valorizada. “Fico muito feliz de fazer parte disso e tenho orgulho de ver tantas mulheres nessas posições”, diz ela, que integra um grupo dentro da AstraZeneca de empoderamento feminino.
Ela diz que desigualdades históricas são combatidas não só com oportunidades, mas com exemplos. “É importante outras mulheres verem que estamos em posições de destaque para que elas próprias não tenham um pensamento limitante”, diz. “Eu mesma já tive pensamento do tipo. Quando fiz o processo seletivo para ingressar na AstraZeneca e fui chamada, havia decidido que não trocaria de emprego na ocasião porque estava tentando engravidar e meu foco era esse. Cheguei a falar isso para o RH da empresa e eles me disseram que isso de forma alguma seria um impeditivo. Me senti muito estimulada”, conta.
Desde então, Maria Augusta teve dois filhos e acumulou promoções. “Voltei de uma licença-maternidade e fui promovida. É importante que as empresas tenham políticas de inclusão para evitar que a própria mulher se sabote tendo que escolher entre uma área ou outra da vida.”
“Não tem como ficar indiferente vendo o que eu vi”, diz dentista que foi a primeira voluntária a tomar a vacina
Nos últimos quatro meses, a cirurgiã dentista Denise Abranches não teve folga um dia sequer. Coordenadora da odontologia do Hospital São Paulo, da Unifesp, onde trabalha há 20 anos, ela passou até mesmo o seu aniversário de 47 anos, no último dia 14 de junho, dentro da UTI, cuidando de pacientes com covid.
Com a chegada da pandemia ao País, ela tem trabalhado de segunda a segunda, coordenando uma equipe de 25 dentistas e capacitando profissionais de enfermagem para lidar com esses doentes. É dela a responsabilidade de definir os protocolos para a higienização da boca dos hospitalizados. E isso não é um mero detalhe. Como a maioria dos pacientes graves precisa ser entubado, há maior risco de lesões bucais, porta de entrada para micro-organismos que podem levar a infecções secundárias perigosas.
Em sua jornada até agora, o que mais abalou a profissional não foi o intenso risco de contaminação ao qual está exposta nem as UTIs lotadas, mas, sim, ver as mortes solitárias dos pacientes com a doença.
O pesar pela situação foi o que moveu a especialista, também professora da Unifesp, a se voluntariar para participar da pesquisa de uma possível vacina contra a covid desenvolvida pela Universidade de Oxford.
Denise tornou-se, no final de junho, a primeira brasileira a receber o imunizante em teste, que contará com 5 mil voluntários no País. Ela diz que, assim que soube que a Unifesp participaria da pesquisa britânica e que os voluntários seriam principalmente profissionais de saúde, foi imediatamente se inscrever. “Eu saí da sala de reunião onde isso foi anunciado e, no mesmo minuto, atravessei a rua e fui para o Centro de Referência para Imunobiológicos Especiais (CRIE) falar que eu queria me voluntariar. Não pensei duas vezes. Isso para mim não é um sacrifício, é mais uma forma de contribuir”, diz.
Denise tomou a dose do imunizante no dia 23 de junho, por via intramuscular e, desde então, vem preenchendo um diário eletrônico sobre seu estado de saúde. “Tenho que medir a temperatura todos os dias e relatar se eu tive algum sintoma ou evento adverso, mas até agora está tudo normal”, diz ela, que será acompanhada por um ano.
A dentista, assim como os demais voluntários, não sabe se recebeu, de fato, o imunizante em teste ou uma vacina contra meningite que está sendo dada para os voluntários do grupo controle. Como o estudo é randomizado e duplo-cego, nem pesquisadores nem participantes são informados sobre isso para que não haja nenhuma influência nos resultados.
Denise conta que não teve medo de ser voluntária de um imunizante ainda em testes. Ao contrário, encara a decisão como uma obrigação cidadã. “Essa pandemia ressignificou muita coisa para mim e para todos que estão na linha de frente. Você ver tantos pacientes chegando ao hospital e piorando rapidamente, morrendo sem direito à despedida, é muito triste. Não tem como ficar indiferente vendo o que eu vi, por isso considerei como um dever participar da pesquisa”, conta.