ROTANEWS176 E POR BBC NEWS BRASIL 22/10/2020 08h51 Por José Carlos Cueto – BBC News Mundo
Viver com a porfiria eritropoiética congênita, uma doença rara e agressiva, significa dor e sacrifício; Fide Mirón, que sofre desde criança, fala sobre sua luta inspiradora.
Reprodução/Foto-RN176 Fide Mirón tem 46 anos e não conhece outra vida senão a de luta Foto: Fide Mirón / BBC News Brasil
Fide Mirón tinha 18 anos no dia em que sofreu provocações e perseguições de um grupo de adolescentes no metrô de Barcelona.
Ela conta que eles a perseguiram e usaram como diversão do dia.
Eles a seguiam por causa de sua aparência, já que Fide tem o rosto marcado por uma doença conhecida como porfiria eritropoiética congênita, ou doença de Günther, um mal raro e agressivo com a qual ela convive desde criança.
Quinze anos depois, a jovem recebeu uma mensagem inesperada.
Era de um dos que caçoaram dela naquele dia, desculpando-se pela “infantilidade” — como descreve agora — que cometeu quando era adolescente.
O arrependido reconheceu Fide em uma entrevista à imprensa na qual ela contava sobre sua luta contra a doença de Günther.
Mas ela não gosta de falar sobre “experiências desagradáveis”. Isso não importa mais.
O que a motiva é que sua condição recebe atenção e esforços para ajudar a encontrar uma cura ou tratamento que mitigue seus efeitos.
É uma doença devastadora, que causa danos ao fígado, anemia e úlceras na pele. O tecido acaba apodrecendo e caindo, por isso também o chamam de porfiria mutilante.
Mirón está com 46 anos e este é o relato de toda uma vida com essa doença.
‘Uma dor contínua, excruciante, desalentadora’
Isso dói muito.
As feridas apareceram aos seis meses, quando eu era apenas um bebê.
Reprodução/Foto-RN176 As primeiras feridas apareceram aos seis meses e na época muito pouco se sabia sobre a doença Foto: Fide Mirón / BBC News Brasil
Meus pais me levaram ao médico, mas naquela época muito pouco se sabia sobre a doença. Os médicos só disseram o nome da doença.
Não havia tratamento — e nem há um agora — e não se sabia como a doença poderia evoluir.
O que se sabia é que era uma doença terrivelmente difícil, então minha vida não seria normal. Eu teria que evitar me machucar a todo custo, não poderia me expor ao sol.
Como a doença me deixou anêmica, precisei de transfusões de sangue a cada 15 dias. Passei minha infância recebendo sangue.
Essa doença ataca por surtos, dia após dia. Eu acordava de manhã e descobria uma nova ferida.
Devido aos ferimentos, perdi minhas mãos, minhas características faciais. Era uma dor contínua, excruciante e desalentadora.
Aos 14, meu corpo parou de repente de precisar de transfusões.
A doença cedeu. Ainda está lá, mas é como se estivesse me dando uma trégua.
Continua doendo, mas não tanto quanto na minha infância. É mais esporádico.
Um rosto marcado
Estou diferente por causa das sequelas. É muito visível. Sei que pode gerar rejeição.
Mas nunca presto muita atenção nisso.
Quem quer me conhecer sabe como sou e do que sou capaz.
Quem ficou com a Fide doentia e delicada, não entendeu que esta vida e as dores me fortaleceram.
Reprodução/Foto-RN176 Fide não tem tempo para aqueles que não veem a mulher que ela se tornou Foto: Fide Mirón / BBC News Brasil
Claro que me senti mal quando aqueles caras de Barcelona me assediaram no metrô.
A gente só quer sair por aí sem ser incomodada, sem ninguém ficar te olhando. Mas naquela tarde, eu fui a brincadeira deles.
Mas olha, isso foi um pouco infantil e foi bonito que um deles se desculpou comigo tantos anos depois.
Sem respostas
O pior não é a dor, é a solidão.
Não me refiro à solidão pessoal, mas à falta de respostas, de orientação.
Tenho médicos que me apoiam, mas nunca houve um tratamento específico.
São os momentos que mais pesam e doem, quando você sente que os caminhos estão fechados e você não sabe para onde ir.
Quando peço respostas, é como se criasse problemas. Meu caso é muito complexo e como todos nós andamos tão rápido, às vezes só prestamos atenção nas coisas que achamos que podemos resolver.
Não há muitos como eu.
Reprodução/Foto-RN176 Fide adora viajar com amigos, como Oscar Millet (de camisa listrada) Foto: Fide Mirón / BBC News Brasil
Desde muito jovem comecei a procurar mais pessoas na minha situação para promover pesquisas e encontrar um tratamento. Conheço um caso que visitei em Cuba, outro no Brasil e outro nos Estados Unidos.
Conheço oito pessoas na Espanha. A maioria está estável, mas no verão passado uma amiga morreu.
Sua doença complicou-se. Você nunca sabe como isso vai evoluir.
Por isso estou focada em dar visibilidade e buscar uma solução.
Em uma de minhas investigações, encontrei o Dr. (Oscar) Millet e começamos a caminhar juntos para encontrar um medicamento.
Esse caminho nos rendeu frutos e há dois anos foi descoberto um composto que atua sobre a doença. Está aprovado pela Agência Europeia de Medicamentos e agora estamos aguardando os ensaios clínicos para ver se evolui nos pacientes.
É uma porta de ilusão e esperança.
‘Eu sinto que posso voar’
Minha família tem sido um elo muito importante. Meu pai me dava o sangue de que eu precisava para sobreviver, mas aos nove anos ele morreu em um acidente de trânsito.
Sua ausência marcou a todos nós, mas principalmente a mim.
Meu apoio se foi, minha referência, a pessoa que me dava seu sangue.
Reprodução/Foto-RN176 ‘Tudo o que acontece na vida pode se tornar uma lição. Eu sinto que posso voar’, diz Fide Foto: Fide Mirón / BBC News Brasil
A vida é muito frágil. Você está aqui hoje e não amanhã. Tive que lutar muito pela minha vida, para seguir em frente.
Minha mãe, por outro lado, sempre me apoiou e carregou grande parte do fardo da doença. Ela é muito forte e nunca estabeleceu metas para mim.
Obviamente tenho que me cuidar muito, mas nas horas vagas adoro viajar, conhecer pessoas e compartilhar.
Agora eu mudei minha vida. Quando jovem, não pude estudar devido à agressividade da doença e à dureza dos tratamentos, comecei uma carreira, faço trabalhos sociais.
Tudo o que acontece na vida pode se tornar uma lição.
Eu sinto que posso voar.
O que é e como se desenvolve a porfiria eritropoiética de Günther?
“É uma doença muito rara: para desenvolvê-la, ambos os pais do paciente devem ter uma mutação desestabilizadora”, explica Óscar Millet, especialista em doenças hereditárias para a BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).
Para que os sintomas apareçam, você deve ter as duas metades, da mãe e do pai. Apenas uma não é suficiente. Se for assim, a doença existe, mas não se desenvolve, explica.
Parece tudo altamente improvável, mas no caso de Fide Mirón foi isso que aconteceu.
“Nichos de mutação se formaram em regiões diferentes e, por coincidência, ocorre que dois parentes distantes se casam, têm ascendência comum e herdam o (mesmo) gene”, diz Millet.
Mundialmente, a Associação Espanhola de Porfíria estima que existam entre 200 e 300 casos do tipo “mutilante”.
Reprodução/Foto-RN176 Além de causar úlceras na pele, a ‘mutilação’ da porfiria destrói a cartilagem e os ossos, principalmente nas mãos e no rosto Foto: Fider Mirón / BBC News Brasil
A mutação faz com que a enzima responsável pela produção do grupo hemo, que dá cor ao sangue, seja defeituosa.
“Daí a anemia e a liberação de porfirinas, uma série de compostos altamente tóxicos que, diante de estímulos como a luz visível, queimam a pele e a apodrecem. Também prejudicam o fígado e o baço”, diz o especialista.
A Associação Espanhola de Porfiria descreve que o primeiro sintoma é geralmente o aparecimento de urina vermelha em bebês.
Em seguida, surge uma extrema sensibilidade ao sol que se manifesta com lesões muito intensas, dolorosas e repetidas, que atacam ossos e cartilagens, principalmente no rosto e nas mãos.
O motivo pelo qual a doença deu uma trégua à Fide é porque o organismo muda e nem sempre funciona da mesma maneira.
“Ele tem um mecanismo de excreção de porfirinas. Quando mais são expelidos do que produzidos, um estado estacionário é alcançado.”
Mas se Mirón fica estressada, exposta à muita luz ou seu metabolismo muda, as porfirinas são reativadas, os sintomas aparecem e as feridas regressam.
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