Transformar tristeza em paixão

ROTANEWS176 E POR  JORNAL BRASIL SEIKYO  12/08/2022 17:34                                                              CADERNO NOVA REVOLUÇÃO HUMANA

Capítulo “Levantando Voo”, volume 30

Por Ho Goku

Reprodução/Foto-RN176 Desenho de ilustração da matéria – Ilustrações: Kenichiro Uchida

PARTE 1

Pequim estava envolta por resplandecentes e agradáveis raios de sol. A paisagem bucólica, que se estendia no entorno do aeropor­to, fazia se sentir a primavera em Pequim.

Shin’ichi Yamamoto e a quinta delegação em visita à China chegaram ao Aeroporto de Pequim às 14h30 (horário local) do dia 21 de abril de 1980.

Essa era a primeira viagem ao exterior após a renúncia de Shin’ichi à presidência. Em seu cora­ção ardia a chama da decisão de tornar ainda mais sólida a ponte dourada da amizade entre Japão e China construída até aquele momento por meio dos intercâmbios entre os povos e, com isso, expandir o grande caminho da paz rumo ao século 21.

Sun Ping-hua, vice-presidente da Associação da Amizade Sino-Japonesa, que recepcionou a comitiva no aeroporto, começou a conversar com Shin’ichi:

— Pequim estava sob a “poeira amarela” nestes últimos três dias.

A “poeira amarela” é um fenômeno em que nuvens de poeira amarela sobem ao céu levada por fortes ventos.

— A situação era tão complicada que não conseguíamos enxergar nem um palmo diante do nosso nariz. A situação abrandou-se ontem à tarde. Hoje, o clima se transformou em um típico dia da primavera e temos um extenso céu azul. Parece que a grande natureza também está congratulando sua visita à China.

Na carta-convite recebida da Associação da Amizade Sino-Japonesa para essa visita de Shin’ichi ao país, havia uma frase que externava o desejo de recebê-lo “na época do agradável calor da primavera, quando desabrocham as flores”, e, de fato, ocorreu exatamente esse clima.

Por um momento, Shin’ichi pensou na situação que envolvia a Soka Gakkai no Japão: “Os jovens sacerdotes do clero estão prosseguindo em seus ataques contra a Soka Gakkai repetidas vezes e chega a ser até misterioso. Pode-se dizer que é como a ‘poeira amarela’. No entanto, não há como uma situação como esta perdurar para sempre. Não há dúvida de que, quando transpormos vitoriosamen­te tudo isso, um céu azulado como o de hoje, de um futuro de esperança do kosen-rufu, se abrirá para nós”.

A sala VIP, para onde foram conduzidos, estava decorada com uma grande tela bordada. Tinha a imagem de uma grande catarata que havia no curso médio do rio Amarelo e, descendo a correnteza, havia a torrente do Portal do Dragão. A antiga lenda de que o peixe que subir por ela se torna um dragão deu origem às palavras “portal do dragão”.

O Portal do Dragão também é citado nos escritos de Nichiren Daishonin como uma parábola que mostra a dificuldade de se atingir a iluminação por meio da prática budista.

A comitiva observou atentamente a tela bordada da cascata pensando na trajetória de superação de inúmeras torrentes da Soka Gakkai.
PARTE 2

Na manhã do dia 22, Shin’ichi Yamamoto e a delegação em visita à China foram conhecer a Exposição Primeiro-Ministro Zhou Enlai no Museu Nacional da História Chinesa [atual Museu Nacional da China] na cidade de Pequim. Em seguida, aceitando o convite que haviam recebido de Deng Yingchao, viúva do primeiro-ministro Zhou que ocupava diversos cargos importantes como vice-presidente da Comissão Permanente do Congresso Nacional do Povo, foram visitá-la em sua residência, denominada Xihuating (“Salão de Flores Ociden­tal”), situada no complexo de edifícios Zhongnanhai.

Conduzidos por ela, eles circularam pelo belo jardim onde desabrochavam flores, como malus e lilás. Dialogaram por cerca de uma hora e meia na sala de estar onde o falecido primeiro-ministro recebia seus convidados do exterior. Esse foi o primeiro encontro após um ano, depois de tê-la encontrado em abril do ano anterior, em 1979, no Akasaka Palace do Japão, a conversa ficou animada quando falaram das lembranças com o primeiro-ministro.

À tarde, durante o banquete de boas-vindas no Grande Salão do Povo, eles conversaram novamen­te a respeito da vida de Zhou, e Deng Yingchao contou a comovente história de ter espalhado as cinzas do marido de um avião.

Ela relatou:

— Quando éramos jovens, o camarada Enlai e eu prometemos dedicar nossa vida a serviço do povo. Nos últimos anos, para permanecermos fiéis a essa promessa, mesmo na morte, concordamos que não teríamos nossas cinzas guardadas em algum lugar.

Armazenar as cinzas implicaria a construção de um túmulo ou monumento, o que exigiria terra e mão de obra. Isso não significava “servir ao povo”, sentiram eles. Mas se suas cinzas fossem espalhadas sobre a terra, elas se tornariam nutrientes para as plantas e, portanto, seriam úteis para as pessoas. Essa ideia, no entanto, ia totalmente contra os costumes e as tradições chinesas, e realizar isso foi um ato verdadeiramente revolucionário.

— Quando o camarada Enlai ficou muito doente e passou a necessitar de enfermeiros de ambos os lados para se locomover, ele reconfirmou seu desejo: “Cumpra sem falta a nossa promessa”.

Depois que ele faleceu, meu único pedido ao comitê central foi que eles não preservassem suas cinzas, mas as espalhassem pelo país. O presidente Mao Tsé-tung e o comitê central acataram meu pedido e pude cumprir minha promessa ao camarada Enlai.

Essa história simboliza o primeiro-ministro Zhou, que serviu ao povo até o fim.

Um desejo ou uma intenção se tornam reais quando postos em ação e eles representam um verdadeiro compromisso quando mantidos até o fim.
PARTE 3

Na tarde de 22 de abril, Shin’ichi Yamamoto e a delegação visitaram a Universidade de Pequim, onde foram recebidos pelo vice-reitor Ji Xianlin e por outros representantes. Um acordo de intercâmbio acadêmico entre a Universidade de Pequim e a Universidade Soka foi assinado no salão de recepção Lin Hu Xuan, no campus. Nessa ocasião, a instituição chinesa anunciou a decisão de conferir o título de professor honorário a Shin’ichi.

Depois de manifestar seus agradecimentos por essa honra, Shin’ichi proferiu uma palestra especial na qual compartilhou suas observações a respeito da China e sua visão para uma perspectiva sobre o povo.

Shin’ichi observou que Kojiro Yoshikawa, respeitado estudioso da literatura chinesa, descreveu a China como “uma civilização sem deuses”, e que parecia ser um dos primeiros países a se desfazer da mitologia.

Então, ele contou um episódio da vida do grande historiador chinês Sima Qian. Este havia provocado a ira do imperador Wu e foi punido com a castração por falar em defesa de Li Ling, um general que havia sido capturado pelas forças inimigas. Shin’ichi disse que isso fez o historiador questionar a validade do chamado “Caminho do Céu”, o qual deveria recompensar o bem e punir o mal. Shin’ichi argumentou que este é um exemplo da tendência subjacente à civilização chinesa de enxergar o universal por intermédio do individual, já que Sima Qian questionava o supos­to “Caminho do Céu” universal com base em sua tragédia pessoal.

Em contraste, Shin’ichi Yamamo­to explicou que, até o final do século 19, a civilização ocidental tendia a ver o indivíduo em termos do universal, nunca questionando o conceito de uma divindade universal absoluta que exercia a providência divina. Em outras palavras, ela contemplou o mundo humano e o mundo natural pelo prisma chamado “Deus”. Ao tentar aplicar diretamente esse ponto de vista aos povos com histórias e tradições completamente diferentes, isso se tornou uma imposição, contribuindo para o colonialismo agressivo e discriminatório em nome de Deus.

Shin’ichi, então, enfatizou a importância de ver a realidade como ela é, e se esforçar para descobrir os princípios universais subjacentes a ela. Ele disse que a China possuía essa tradição, e acrescentou que o historiador Arnold J. Toynbee havia falado dessa atitude universalista que o povo chinês tinha desenvolvido ao longo de sua história. O presidente Yamamoto expressou também sua esperança pelo surgimento de pessoas com uma nova consciência que desempenhariam o papel de protagonistas do desenvolvimento de um novo universalismo.

Shin’ichi estava convicto da grande força e do potencial da China. Foi por essa razão que ele visitou repetidamente o país com o desejo de promover a amizade entre Japão e China, bem como a estabilidade na Ásia.
PARTE 4

Após a palestra na Universidade de Pequim, foi feita uma cerimônia de doação de livros para a Universidade de Sichuan. Inicialmen­te, Shin’ichi planejava visitar essa instituição em Chengdu, província de Sichuan, mas sua agenda apertada não tornou isso possível. Por esse motivo, a cerimônia foi realizada na Universidade de Pequim.

Shin’ichi Yamamoto entregou a Du Wenke, vice-reitor da Universidade de Sichuan, uma pequena seleção de livros, junto com uma relação dos mil títulos, gerando forte salva de palmas. Isso marcou o início de uma nova relação de intercâmbios educacional e cultural.

Na manhã do dia 23 de abril, no Hotel de Pequim, onde estava hospedado, Shin’ichi se encontrou e conversou com Chang Shuhong, diretor do Instituto de Pesquisa de Relíquias Culturais de Dunhuang (posteriormente, Academia de Dunhuang), e com sua esposa, Li Chengxian. Aos 76 anos, Chang Shuhong era uma autoridade internacional eminente na arte de Dunhuang e na pesquisa do Caminho da Seda, além de ser membro do 5o Congresso Nacional do Povo. No dia anterior, ele havia retornado da Alemanha Ocidental direto para a China, mas não parecia nem um pouco cansado.

Reprodução/Foto-RN176 O personagem do presidente Ikeda no romance é Shin’ichi Yamamoto, e seu pseudônimo, como autor, é Ho Goku.

Shin’ichi perguntou-lhe ini­cialmen­­te o que o colocou no caminho para se tornar pesquisador de Dunhuang. A resposta dele foi bastante interessante.

Em 1927, aos 23 anos, ele foi para a França para estudar pintura. Enquanto estava em Paris, encontrou um livro de fotografias de Dunhuang e ficou surpreso com a beleza de sua arte. Antes disso, não sabia nada sobre Dunhuang, apesar de essa cidade estar localizada em seu próprio país. Pareceu-lhe muito errado que um lugar de arte e cultura tão maravilhoso fosse tão pouco conhecido. Em 1936, ele deixou tudo de lado e voltou para a China a fim de se dedicar à preservação e ao estudo da arte de Dunhuang e a apresentá-la ao mundo.

Em 1943, ele finalmente realizou seu sonho de ir para Dunhuang como membro do grupo precursor da criação do instituto de pesquisa. E assim ele passou os últimos 37 anos morando em Dunhuang, empenhando-se em preservar e restaurar suas relíquias culturais.

— A grande arte de Dunhuang foi criada ao longo de um milênio. Porém, seus melhores tesouros foram retirados do país por exploradores estrangeiros. Ao dizer isso, o semblante do diretor Chang expressou um profundo pesar. Ele conseguiu transformar essa tristeza em paixão e compromisso de estudar e preservar o local. A obstinação indomável é a força motriz para a realização de grandes empreendimentos.

Ilustrações: Kenichiro Uchida