A diáspora africana

Dia 23 de agosto foi a data internacional de recordação do tráfico negreiro. Passados mais de cem anos desde o fim oficial da escravidão no Brasil, pesquisas já revelam em detalhes o número de africanos trazidos para a América

ROTANEWS176 E DUETO 04/01/2017 00:00

HISTÓRIA

 
(C) The Bridgeman Art Library / Keystone

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Reprodução/Foto-RN176  Escravos resgatados pela marinha inglesa na década de 1880, perto do litoral de Zanzibar

por Manolo Florentino

O tráfico negreiro provocou um dos maiores deslocamentos populacionais da história da humanidade. Uma pesquisa recente coordenada pelo professor David Eltis, da Universidade de Emory, nos Estados Unidos, mostra que, entre os séculos XVI e XIX, mais de 12,5 milhões de africanos foram escravizados e exportados para a América, a Europa e algumas ilhas do oceano Atlântico. Desses, cerca de 10,7 milhões chegaram vivos ao fim da travessia.

Tudo começou no século XV, quando os portugueses abriram o caminho para a exploração da costa da África subsaariana, depois de cruzarem o Cabo Bojador, em 1434. Ao longo dos anos seguintes, os navegadores lusitanos avançaram cada vez mais rumo ao sul, até atingirem, na década de 1470, a baía de Biafra, na região dos atuais Nigéria e Camarões. Nessa época, no entanto, a mão de obra africana ainda não era tão cobiçada. O principal objetivo dos europeus era buscar terras, mercados, ouro e uma rota marítima alternativa para o Oriente.

Foi só após a conquista das ilhas do Atlântico que o trabalho forçado de africanos começou a se difundir. Em São Tomé foi implantado pela primeira vez o modelo de exploração mercantilista que mais tarde vingaria em boa parte das Américas, baseado no tripé grande propriedade, monocultivo e trabalho escravo. Essas ilhas e, em menor escala, o próprio continente europeu, eram os principais pólos de uma fraca demanda por africanos até princípios do século XVI.

O pioneirismo rendeu aos portugueses um predomínio quase absoluto nos primórdios do tráfico. O primeiro concorrente foi o reino de Castela (embrião da moderna Espanha), atraído pelo comércio de escravos e pelo ouro, que recorreu ao papa para reivindicar o direito de também fazer negócios na costa africana. Sua santidade, porém, deu ganho de causa aos portugueses, e confirmou a primazia dessa nação no continente.

Os lusitanos permaneceriam senhores incontestes da costa ao longo de todo o século XVI, quando a conquista da América aumentou significativamente a demanda por escravos. Essa situação começou a mudar no século XVII, com o surgimento da concorrência de franceses e ingleses. Por essa época, o tráfico transatlântico já havia se transformado em uma indústria, que iria crescer cada vez mais, até atingir o ápice no século XVIII. Seu declínio começaria no século XIX, com a proibição do trânsito de navios negreiros no Atlântico.

Nacional Maritime Museum, Greenwitch

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Reprodução/Foto-RN176  Para traficar escravos, os lusitanos tinham antes que cortejar o soberano local. Na imagem, esse líder é o rei do Congo

Século XVI: a montagem do sistema atlântico

A conquista e a colonização da América deram novo impulso ao comércio negreiro, que inicialmente foi canalizado para as colônias de Castela. As plantações surgidas no Caribe e a montagem dos sistemas mineradores no México e nos Andes estimularam o estabelecimento da ligação direta com a África, razão pela qual oito entre cada dez africanos desembarcaram em portos da América espanhola entre 1501 e 1600.

A colonização da América portuguesa também contribuiu para a intensificação do fluxo de escravos através do Atlântico, apesar de nessa época Lisboa ainda estar mais interessada no comércio com o Oriente. À Europa – leia-se basicamente Península Ibérica – cabiam importações residuais.

Embora os castelhanos estivessem envolvidos no comércio negreiro, sua participação era débil, e em pouco tempo o sistema de asientos se transformou no seu principal meio de obtenção de africanos. Esse era o nome dado a uma permissão que a coroa de Castela concedia aos seus súditos para comercializar escravos com as colônias portuguesas. Seja para prover sua colônia, seja para atender ao grosso da demanda do mundo hispano-americano, o predomínio dos traficantes lusitanos se intensificou em todo o litoral africano.

Nacional Maritime Museum, Greenwitch

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Reprodução/Foto-RN176  Para traficar escravos, os lusitanos tinham antes que cortejar o soberano local. Na imagem, esse líder é o rei do Congo

O principal pólo de exportação de mão-de-obra escrava era a África Ocidental, região que englobava todo o território compreendido entre os atuais Senegal e Camarões. Essa área era responsável por quase 60% das exportações e, nela, a região da Senegâmbia representava a principal fonte de venda de africanos cativos. Ao mesmo tempo, a região congo-angolana despontava como o segundo grande celeiro de escravos no continente.

No século XVI, as taxas de mortalidade a bordo dos navios negreiros variavam de acordo com a distância entre o porto de exportação e o de recepção nas Américas. Na média, porém, atingiram quase 30%, mais altas do que em qualquer outra época. Para isso contribuíam a precariedade da tecnologia naval de então e a ainda incipiente estruturação das empresas negreiras.

Apenas na segunda metade do século XVI apareceram os primeiros reais competidores dos portugueses, os ingleses, cuja expansão marítima ocorreu velozmente após a Reforma Anglicana. Seu objetivo maior era o ouro e, tal como ocorrera com os ibéricos, eles começaram a exploração sistemática do litoral, logo alcançando a baía de Benim. Também traficavam escravos, mas de modo secundário e quase sempre por meio de pirataria contra naus portuguesas. As incursões dos ingleses se intensificaram a partir de 1570, mas sem se concentrar em pontos fixos da costa.

Os franceses também desempenharam papel secundário no século XVI, e seu tráfico se restringia ao litoral entre os rios Senegal e Gâmbia. Como os ingleses, não estavam muito interessados em escravos e tampouco se fixaram permanentemente na costa.

Coleção Particular

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Reprodução/Foto-RN176  Frontispício do livro Descrição da África, do holandês Olfert Dapper: a partir de 1611, os Paises Baixos se tornam atores de peso na África

Século XVI: a luta pelo controle da costa africana

O cenário do século XVII era distinto. Outras nações européias, como a Holanda, Dinamarca, Suécia e Brandenburgo, passaram a traficar. Os recém-chegados criaram suas próprias feitorias e fortes ao longo do litoral, a chave do êxito lusitano. Esses novos atores agiam nas brechas abertas pelo paulatino rompimento do monopólio da presença espanhola no Caribe e na América do Norte e, portanto, no aumento da procura por mão de obra escravizada.

Vivia-se o período de desenvolvimento das grandes fazendas especializadas na produção de um único produto para exportação, o chamado sistema de plantation. Baseado no trabalho escravo, esse sistema floresceu nas colônias britânicas, holandesas e, principalmente, na América portuguesa, que se afirmou como maior produtor mundial de açúcar.

A vitalidade dos engenhos brasileiros fez com que a coroa lusitana voltasse sua atenção paulatinamente para a colônia americana, em detrimento do comércio com o Oriente. O “boom” das grandes fazendas aumentou extraordinariamente a demanda por escravos, o que fez com que, ao longo do século XVII, os europeus importassem quase sete vezes mais africanos do que no século anterior.

Nesse contexto, os holandeses despontaram rapidamente como novos atores de peso no cenário negreiro, afiançados por seu poderio técnico e financeiro. Eles se aproveitaram das rivalidades européias, dos conflitos entre europeus e africanos e das disputas internas entre os próprios africanos. Começaram atacando o poderio português na África ao construírem o forte Nassau, na Costa do Ouro, a partir de 1611.

Coleção Particular

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Reprodução/Foto-RN176  Frontispício do livro Descrição da África, do holandês Olfert Dapper: a partir de 1611, os Paises Baixos se tornam atores de peso na África

O mesmo ocorreu depois na Senegâmbia, quando os navegadores dos Países Baixos conseguiram instalar dois pequenos fortes na ilha de Goréa, na costa do Senegal. Por fim, em 1637 os holandeses deslocaram os portugueses de Elmina, forte localizado no litoral da atual Gana, obrigando-os a fixar a sua atenção nas baías de Benin e de Biafra. Aos lusos ainda era permitido traficar em determinados pontos da Costa do Ouro, previamente determinados pelos batavos, pagando uma taxa de 10% sobre o valor das transações.

Enquanto os holandeses moviam seus peões, outras nações européias também passavam a disputar o controle da costa africana. Os franceses, que já possuíam uma pequena feitoria na região de Ajudá (na costa do atual Benim), buscaram consolidar sua presença no Senegal, o que implicou expulsar os holandeses, objetivo finalmente alcançado na década de 1670.

Suecos, dinamarqueses e prussianos conseguiram se estabelecer em feitorias e fortes na Costa do Ouro, onde os grandes rivais dos holandeses – os ingleses – também se fixaram, embora a sua presença fosse registrada no Senegal e em Serra Leoa.

A Costa do Ouro era palco das mais acirradas disputas entre os europeus, pois mantinha sua posição de grande fornecedora de escravos para o mundo colonial americano, mesmo que superada pelas exportações das baías de Benim e de Biafra. Na Costa do Ouro, de acordo com as boas relações que conseguissem estabelecer com as autoridades locais, abria-se um importante manancial de escravos, e a competição mais duradoura dava-se entre ingleses e holandeses.

A corrida por escravos, no entanto, não se restringia à África Ocidental. O enorme incremento da produção açucareira da América portuguesa fez com que, pela primeira vez, as exportações da região congo-angolana superassem as dos portos do norte. A mortalidade média dos escravos nos navios negreiros caiu substantivamente em relação ao século XVI, e fixou-se na casa dos de 20% por viagem.

(C) Museu Marítimo Nacional, Londres

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Reprodução/Foto-RN176  No auge do escravismo, o controle dos mercados de cativos era disputado por ingleses e franceses

Século XVIII: o apogeu do comércio de escravos

O tráfico negreiro atinge seu apogeu no século XVIII. O sul dos Estados Unidos se especializava na produção do algodão que abastecia a Revolução Industrial nascente. No Brasil, crescia a demanda por escravos para a extração do ouro em Minas Gerais. A indústria açucareira caribenha atingia seu mais alto grau de desenvolvimento, com destaque para Saint Domingue (atual Haiti).

Todos estes movimentos funcionavam como uma espécie de engrenagem devoradora de mão-de-obra africana, motivo pelo qual a demanda americana alcançou o seu ápice: no século XVII, cerca de 1 milhão de africanos escravizados desembarcaram nas Américas; no século XVIII, esse número aumentou para 5, 6 milhões.

A competição mais feroz pela primazia no controle das rotas negreiras restringiu-se a portugueses, ingleses, franceses e holandeses. Muitas vezes, todos atuavam na mesma área, o que não os impediu de estabelecerem zonas preferenciais ao longo da costa africana.

Por volta de 1760, seis regiões podiam ser identificadas na África Ocidental, de acordo com sua importância como fornecedoras de escravos e com o comprador europeu predominante. A primeira se estendia do Cabo Branco, na atual fronteira entre o Marrocos e a Mauritânia, até Serra Leoa, e era dominada pela França. Os ingleses também atuavam ali e monopolizavam o tráfico entre o rio Casamansa, no atual Senegal, e Serra Leoa.

(C) Museu Marítimo Nacional, Londres

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Reprodução/Foto-RN176  No auge do escravismo, o controle dos mercados de cativos era disputado por ingleses e franceses

A segunda se estendia de Serra Leoa até o cabo Palmas, na atual fronteira entre a Libéria e a Costa do Marfim, e era considerada a costa mais perigosa, em função das características geográficas e dos constantes ataques dos africanos do litoral. Logo vinha a região entre os cabos Palma e Três Pontas (na atual Gana), onde o comércio era privilégio dos holandeses, bem organizados em seu poderoso forte de Axim.

A leste estava a região que se estendia do Cabo Três Pontas ao rio Volta (também na atual Gana), o mais disputado dos pontos costeiros de tráfico. Ali, a hegemonia inglesa era indiscutível, mas sempre houve espaço para outras nações, estabelecidas em 75 pontos do litoral, um terço dos quais em mãos holandesas e inglesas. Para enfrentar o domínio britânico, a muitos europeus restou apenas contrabandear ou comprar escravos de intermediários batavos ou ingleses.

Mais ao leste ainda se localizavam as duas últimas áreas, de incorporação razoavelmente tardia ao tráfico, mas que nesta época disputavam com a Costa do Ouro o papel de grandes provedoras de escravos. A primeira era a faixa litorânea que se estendia do rio Volta até Badagri, na atual Nigéria, e daí até o Cabo Formosa, zona de grande presença portuguesa e de traficantes independentes situada na atual Guiné Equatorial.

No conjunto, a África Ocidental voltou a superar a região congo-angolana em número de escravos exportados para as Américas, com participação residual dos africanos provenientes de portos do Índico. A mortalidade média caíra ainda mais em relação ao século anterior, situando-se em torno de 14% por viagem.

O século de apogeu do comércio de escravos africanos, no entanto, seria também o do início do fim do tráfico transatlântico. As últimas décadas foram marcadas por inúmeras turbulências que culminaram na eclosão da Revolução Francesa em 1789 e da Revolução Haitiana de 1791. Os ideais igualitários disseminados a partir da França passavam a questionar a escravidão e encontravam eco na incômoda pregação dos abolicionistas ingleses e na revolta dos escravos haitianos. O sistema atlântico começava a fazer água.

Biblioteca do Congresso, Washington DC

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Reprodução/Foto-RN176 Escravos libertados pela marinha americana em 1860 ocupam o convés do navio Wildfire

Século XIX: a era do tráfico clandestino

Apesar da crescente pressão pelo fim do tráfico, o comércio negreiro resistiu até a segunda metade do século XIX, com algumas importantes novidades. Na esfera da demanda americana, o abolicionismo fez seu estrago. A estratégia dos ativistas humanitários era comprometer a opinião pública ocidental primeiramente com o fim do tráfico e, depois, com o do próprio cativeiro.

Seus efeitos foram mais sentidos nas colônias dos países da Europa do Norte, que acabaram com suas respectivas redes de tráfico na primeira década do século. Os africanos também pararam de chegar à Europa. A rigor, sobreviveram, sobretudo, as indústrias açucareiras de Cuba e do Brasil, onde a cultura do café também se expandia.

Na esfera da oferta africana, a região congo-angolana voltou à liderança das exportações em razão da diminuição das vendas afro-ocidentais. Estas, apesar de tudo, continuavam a responder por um terço das exportações africanas, sobretudo através das baías de Benim e de Biafra.

Duas outras novidades foram o aumento da participação dos escravos originários da África Oriental (de Moçambique principalmente), além do incremento do comércio negreiro no próprio litoral africano, em especial do norte para o sul do Equador. A mortalidade durante a travessia oceânica baixou muito pouco em relação ao século anterior, e foi maior durante os períodos de tráfico clandestino, quando se deterioravam ainda mais as condições a bordo dos negreiros.

Manolo Florentino é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de Em costas negras – Uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: Séculos XVIII e XIX (Companhia das Letras, 1995), entre outros livros sobre o tema. É um dos coordenadores do projeto The trans-atlantic slave trade database