ROTANEWS176 E POR ANF 25/05/2023 05h00 Por Marcos Zibordi
Patrocínio cultural é necessário para preservar fitas de vídeo, fotos e até a casa deixada por Laudelina de Campos Mello.
Dezenas de fotografias da mulher negra que fundou o primeiro sindicato de empregadas domésticas no Brasil, entrevistas em vídeo e a própria casa onde morou Laudelina de Campos Mello, dona Nina, precisam de recursos financeiros para preservação. O conjunto histórico está em Campinas, interior de São Paulo, última cidade em que viveu uma das mais importantes figuras femininas brasileiras.
O acervo está em três lugares: no Museu da Imagem e do Som (MIS), que guarda a maior parte das gravações em vídeo e fotos; no Centro de Memória da Unicamp; e na Casa Laudelina, que tem móveis e objetos, como uma cristaleira, a farda e a medalha que a ativista ganhou na 2ª Guerra Mundial, quando foi espiã – no local funciona também o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Campinas e Região.
Reprodução/*Foto-RN176 Abertura do 3º Congresso Nacional da Trabalhadora Doméstica, década de 1950. Laudelina é a de blusa preta. Foto: Casa Laudelina
Cleusa Aparecida da Silva, coordenadora da Casa Laudelina, calcula que, somente dos primeiros anos de militância, devem existir cerca de 50 fotografias de Laudelina de Campos Mello. “Tem também muitas gravações de vídeo, filmagens feitas pelo próprio MIS, pela imprensa de Campinas, por pesquisadores. Antes da pandemia, havia a tentativa de fazer um filme, mas parou tudo”.
A reforma da casa, deixada por Laudelina de herança para o Sindicato, permitiria realizar “educação popular continuada, luta de toda a vida dela. Precisava transformar a casa num sobrado, porque o terreno é pequeno. Na verdade, teria que derrubar a estrutura para construir uma nova. O alicerce não segura”, analisa Cleusa.
A casa fica no jardim Castelo Branco, periferia de Campinas. Laudelina de Campos Mello foi uma das primeiras moradoras do bairro, ajudou a dar o nome das ruas. A da sua residência é Ataulfo Alves, grande músico preto.
Mass essa é só uma das inúmeras histórias da guerreira brasileira que nasceu em 1904 e viveu 86 anos, mulher que ainda precisamos conhecer, ainda mais agora, quando a chamada PEC das Empregadas Domésticas, lei que garantiu direitos à categoria, completa dez anos.
Fazendo revoluções por onde passou
O jornalista Francisco Lima Neto escreveu uma das biografias de Laudelina de Campos Mello, nascida em Poços de Caldas (MG). “Com apenas 16 anos, ela fundou e presidiu o Clube 13 de Maio, que promovia atividades culturais para a população negra, que não podia entrar nos demais clubes.”
Na época, junto com a mãe do sambista Geraldo Filme, Laudelina realiza um jantar em homenagem às cozinheiras no clube Paulistano da Glória, na capital paulista. Ela percebe que as domésticas são abandonadas pelos patrões depois de idosas. Inconformada, a jovem ativista começa a alugar casarões em Santos, onde morava.
Reprodução/*Foto-RN176 Laudelina, terceira à direita, promovia jantares para cozinheiras no clube Paulistano da Glória, em São Paulo Foto: Casa Laudelina
Esses palacetes estavam perdendo importância porque os endinheirados queriam morar em prédios. É o início da verticalização da cidade. “Ela alugava esses casarões como pensão para os homens e, em uma parte da casa, abrigava mulheres. Foi assim que ela criou o primeiro sindicato das empregadas domésticas”.
Isso em 1936, quando Laudelina está filiada ao Partido Comunista Brasileiro e à Frente Negra Brasileira. “Ela foi a primeira a dar corpo a um movimento organizado das trabalhadoras domésticas”, afirma Elisabete Aparecida Pinto, autora de uma das duas biografias da líder negra.
Casada, Laudelina tem um filho, mas deixa o marido ao descobrir sua amante. “Com toda certeza, ela foi uma feminista, mesmo que talvez nunca tivesse tido acesso a essa denominação”, diz o jornalista Francisco Lima Neto.
Reprodução/*Foto-RN176 Casamento de Laudelina de Campos Mello em Poços de Caldas, final da década de 1920. Foto: Casa Laudelina
Condecorada como heroína de guerra
O Estado Novo de Getúlio Vargas, ditatorial, fechou o Partido Comunista Brasileiro, a Frente Negra e o sindicato das empregadas. Mas Laudelina continua lutando, literalmente: ela atua como espiã durante a 2ª Guerra Mundial.
Ao saber, pelo rádio, que Hitler pretende exterminar quem não é ariano, ela se alista. É a primeira mulher negra. Seu principal trabalho em Santos consiste em descobrir os motivos pelos quais os navios brasileiros são atacados em alto mar.
Ela passa a espionar. Descobre que uma mulher leva flores regularmente ao cemitério. É um alemão disfarçado. Ele entrava em uma capela e transmitia mensagens. Laudelina observa, descobre o truque e dá o serviço. Os navios brasileiros não são mais atacados e ela, condecorada.
Reprodução/*Foto-RN176 Atividade cultural no Clube Regatas, em Campinas, final da década de 1970. Laudelina é a do meio. Foto: Casa Laudelina
Luta de uma vida pelas domésticas
O decreto 19.770, de março de 1931, cria oficialmente o sindicalismo no Brasil. Estabelece férias, descanso semanal remunerado, jornada de oito horas, regulamenta o trabalho da mulher e do menor, entre outras providências. Mas deixa de fora as empregadas domésticas.
“A superação dos impedimentos impostos nesse decreto passará a definir as ações de dona Laudelina pelos próximos 57 anos de sua vida”, afirma a biógrafa Elisabete Aparecida Pinto. As empregadas domésticas só foram reconhecidas como categoria profissional em 1972 “e essa conquista tem total ligação com a atuação de Laudelina”, lembra o biógrafo Franscisco Lima Neto sobre a mulher que era bisneta, neta e filha de domésticas.
Reprodução/*Foto-RN176 Alunas da escola de balé criada por Laudelina para meninas negras pobres, em Campinas, se apresentam no Teatro Municipal. Foto: Casa Laudelina
Antes de morrer, dona Nina, como era carinhosamente chamada, enfrenta a burocracia para transferir sua casa ao Sindicato das Empregadas Domésticas de Campinas e Região. “Ela queria que fosse um espaço de acolhimento, não só de resolver questões trabalhistas, mas de formação, de educação permanente. Nós pretendemos captar recursos para construir um espaço maior, que possibilite concretizar o sonho de Laudelina de Campos Mello”, conta Cleusa Aparecida da Silva.
Direitos trabalhistas conquistados com muito suor
A Lei 5.859, de 11 de dezembro de 1972, integra as empregadas domésticas na Previdência Social e assegura férias anuais remuneradas de vinte dias úteis. Em 1981, vem o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), facultativo. Ainda faltavam vários benefícios conquistados por outras categorias, que nem a Constituição de 1988 garante, apesar dos avanços.
Reprodução/*Foto-RN176 Laudelina colhe assinaturas para lei de 1972, que reconhece trabalho doméstico como categoria profissional Foto: Casa Laudelina
Dependiam de regulamentação a indenização em demissões sem justa causa, conta no FGTS, seguro-desemprego e salário família, adicional noturno, auxílio creche e seguro contra acidentes de trabalho. Eles são assegurados em 2013 com a Emenda Constitucional número 72, popularmente conhecida como PEC das Domésticas – a regra garante “igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais”.
Em 2015, lei complementar regulamenta o recolhimento do FGTS, fixação da jornada de trabalho em oito horas por dia e 44 horas semanais, direito às férias e hora extra. O jornalista e biógrafo Francisco Lima Neto lembra que “as fiscalizações ainda são insuficientes e os direitos muitas vezes são burlados pelos patrões. Essas trabalhadoras continuam sendo o lado frágil da disputa que continua sendo entre o Brasil colonial e Brasil que quer ser moderno e justo.”
Milhões de mulheres ainda exploradas
Após 10 anos da PEC das Domésticas, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2021, revela que 5,7 milhões de mulheres entre 30 e 59 anos realizam trabalhos domésticos no Brasil. Mulheres negras são maioria, 62%.
Reprodução/*Foto-RN176 6º Congresso das Trabalhadoras Domésticas em Campinas. Laudelina, à esquerda, está ao lado de Benedita da Silva Foto: Casa Laudelina
“Os preceitos constitucionais são insuficientes para garantir a consecução da igualdade: os dados apontam que três a cada quatro mulheres exercem a profissão na informalidade, isto é, sem registro em carteira. Desta forma, essas trabalhadoras, além da insegurança previdenciária, recebem salários 40% menores do que a média salarial quando se tem a carteira de trabalho assinada”, pontua Elisabete Aparecida Pinto, cuja pesquisa de mestrado sobre a trajetória de Laudelina de Campos Mello está publicada em livro.
Cleusa Aparecida da Silva, coordenadora da Casa Laudelina, lembra que somente 25% das empregadas domésticas são regularizadas. “A PEC traz a obrigatoriedade do registro em carteira, mas como em nosso país as leis são letras mortas, houve uma reação da classe patronal e a lei não pegou”.