ROTANEWS176 E BBC BRASIL 28/09/2016 12:48
Celeuma causada pelo ‘fenômeno’ do século 18 fez até com que médicos da família real estudassem o caso; mas o que aconteceu com Mary Toft?
No início do século 18 na Inglaterra, correu a notícia de que uma mulher dava à luz coelhos. “Desde que escrevi pela última vez, a pobre mulher deu à luz três novos coelhos, todos eles mal-formados. O último durou 23 horas dentro do útero antes de morrer. Se você conhece alguma pessoa curiosa que queira ver isso com seus próprios olhos, parece que ela (a mulher) tem outro coelho em seu útero. Não sabemos quanto mais há lá dentro”.
Esse foi o texto da carta escrita por John Howard, um cirurgião de Guilford, na Inglaterra, a Nathaniel St. Andre, médico da corte do rei George 1º, em 1726. A pobre mulher era Mary Toft, de 23 anos.
Reprodução/Foto-RN176 Mary Toft fez a Inglaterra crer que engravidava de coelhos. Sua história só foi desmascarada após muitos exames Domínio Público
Diante da curiosíssima história, St. Andre não hesitou em ir examiná-la. “Em 23 de abril, enquanto urinava em um campo, ela viu um coelho perto dela. Por isso, ficou fixada nesses bichos”, reportou o médico real.
“Desde então, sente um desejo constante de comer coelhos, mas é pobre”. Toft estava grávida quando viu o coelho e, aparentemente, teve um aborto espontâneo pouco depois.
Mãe de coelhos
“Hoje parece algo descabido, mas temos que entender que naquela época existiam muitas dúvidas sobre a concepção. Havia gente estudada que acreditava que mulheres podiam afetar o desenvolvimento dos ossos do bebê apenas com a força do pensamento”, explica Karen Harvey, professora da Universidade de Sheffield e autora de um livro sobre Mary Toft que será publicado nos próximos meses.
Foi depois de perder o bebê que Mary começou a dizer que estava dando à luz a partes de coelhos. Apesar de que saíam mortos de seu ventre, e nunca inteiros, eles pareciam estar saltando em sua barriga, segundo o depoimento de outro médico que a examinou, Richard Manningham.
“Definitivamente havia movimento em uma parte do lado direito de seu estômago”, escreveu.
Os médicos pareciam acreditar nessa versão. O próprio St. Andre disse ter visto “nascer o 15º coelho”, mas outro médico real, Cyriacus Ahlers, não estava muito convencido.
“Fiz algumas perguntas ao paciente que ela não foi capaz de responder. Observei-a com atenção, pois ela caminhava pela casa com os joelhos juntos, como se tivesse medo de que algo caísse”.
Ahlers também testemunhou um “nascimento”.
“Tinha sérias suspeitas, mas simulei grande compaixão e ajudei a cuidar da mulher, o que me deu a oportunidade de conversar com o médico sobre tudo pelo qual a mulher tinha passado. Disse que o rei lhe daria uma pensão…”
Segundo alguns historiadores, o dinheiro era a motivação de Toft.
O princípio do fim
Mas a verdade começou a vir à tona quando Ahlers examinou os restos mortais dos coelhos “nascidos” e encontrou detalhes suspeitos: havia pelotas em seus estômagos, o que indicava que tinham comido feno, e algumas de suas partes pareciam ter sido cortadas com facas.
“Tecnicamente, Mary Toft deu à luz coelhos. Durante meses, partes dissecadas foram introduzidas em seu corpo e ela as expeliu horas depois. Era um processo incômodo e muito realista”.
Toft foi levada a Londres, onde esperou o nascimento de seu “18º coelho”. O caso já tinha ganho destaque na imprensa, não apenas positivamente: o satirista William Hogarth fez uma caricatura ironizando a situação.
“Até a mentira ser revelada, ninguém comeu coelho”, disse um relato da época.
“Foi incrível que tenham seguido com a fraude em Londres, observados de tão perto. Era óbvio que seriam desmascarados”, conta Harvey.
A história começou a mudar quando um dos empregados da casa em que Toft estava hospedada relatou que ela havia pedido que ele lhe trouxesse o “menor coelho que encontrasse”.
Richard Manningham, um dos médicos que a tinham examinado antes, foi uma das vozes mais indignadas com as novas revelações.
“Insisti que confessasse a verdade. Disse-lhe que era uma impostora e que por isso faria um experimento bastante doloroso”, escreveu.
Foi quando a mulher confessou. Em uma série de depoimentos cheios de contradições, Toft finalmente deu sua versão dos fatos.
“Tive um parto horroroso. Algo monstruoso saiu de dentro de mim, logo depois de ter visto coelhos. Meu corpo estava aberto, como se um bebê tivesse saído. Tive uma dor imensa, como se meus ossos estivessem se quebrando dentro de mim”.
Suas confissões, porém, tinham três finais distintos. Em uma versão, nega a fraude. Nas outras, implicou a mulher de um afiador de facas e mesmo a própria sogra. O doutor St. Andre, que a princípio havia acreditado na história, retratou-se.
“Estou completamente convencido de que isso é uma fraude abominável”, escreveu ele.
Toft foi presa, mas como simulação de gravidez não era crime, foi solta logo depois. Morreu em 1763, anos depois, e nunca se livrou da má fama: em seu atestado de óbito, ela consta como “Mary Toft, viúva e impostora dos coelhos”.
O caso teve grande repercussão no meio médico britânico, que se viu alvo de zombaria pública. Foi citado até por filósofos: Voltaire, no ensaio Singularidades da Natureza, mencionou a história de Mary Toft para criticar a Inglaterra pelo que classificou como influência da ignorância da religião.