ROTANEWS176 E BBC BRASIL.COM 12/02/2018 14:57
Depois de milhões de anos de evolução, animal teria conquistado um poder de regeneração impressionante e não morreria de causas naturais – só quando atacado por predadores.
O ser humano sempre desejou a imortalidade, buscando a fonte da juventude, o elixir da vida eterna. Também povoou suas mitologias, religiões e histórias com seres, deuses e heróis que nunca morrem. Mas, na vida real, quem conseguiu esse feito foi uma pequena água-viva de não mais do que dois centímetros de diâmetro.
Reprodução/Foto-RN176 A pequena água-viva Turritopsis nutricula pode viver para sempre | Foto: Alvaro Migotto/Cebimar/USP Foto: BBCBrasil.com
Depois de milhões de anos de evolução, esse bicho conquistou um poder de regeneração fantástico e não morre de causas naturais – só quando atacado por predadores. Por isso, em tese, pode viver para sempre.
Batizada de Turritopsis nutricula , é uma das cerca de 4 mil espécies de águas-vivas conhecidas no planeta. Foi descoberta em 1843 pelo zoólogo francês René-Primevère Lesson. Mas só mais recentemente sua capacidade de viver para sempre foi reconhecida.
Há duas versões sobre o achado dessa característica inusitada. De acordo com uma delas, a imortalidade da Turritopsis nutricula foi encontrada por acaso, em 1988, pelo então estudante alemão de biologia marinha Christian Sommer.
Ele passava férias de verão na Riviera Italiana, no Mar Mediterrâneo, e aproveitava para coletar espécies de hidrozoários para uma pesquisa. Nessa empreitada, acabou capturando a pequena e intrigante água-viva.
Sommer levou o animal para o laboratório e o observou por vários dias. Ficou espantado com o que viu. O animal simplesmente não morria. Pelo contrário, parecia que estava seguindo caminho inverso do envelhecimento e da morte, tornando-se cada vez mais “jovem”.
A água-viva chegou até a regredir a sua primeira fase de desenvolvimento, reiniciando seu ciclo de vida novamente. E assim continuou sucessivamente, envelhecendo e rejuvenescendo, para voltar a envelhecer e rejuvenescer.
A outra versão diz que a descoberta da imortalidade da Turritopsis nutricula foi feita pelo pesquisador japonês Shin Kubota, hoje um dos maiores especialistas do mundo nesse animal.
Kubota descobriu o poder de rejuvenescimento ou regeneração dessa água-viva quando encontrou, no mar do sul do seu país, uma delas cheia de espinhos em seu corpo.
Ao arrancá-los, percebeu que as feridas se curavam. e o bicho rejuvenescia. Entre 2009 e 2011, o pesquisador repetiu a experiência 12 vezes, ferindo as águas-vivas. Em todas elas, aconteceu a mesma coisa: elas se regeneravam e voltavam ao estágio inicial do seu ciclo de vida.
Reprodução/Foto-RN176 A água-viva tem a capacidade ‘rejuvenescer’, voltando a suas formas iniciais de vida | Foto: Alvaro Migotto/Cebimar/USP Foto: BBCBrasil.com
‘Benjamin Button’ do mundo animal
De acordo com o professor de zoologia Antonio Carlos Marques, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), a Turritopsis nutricula é imortal “no sentido de que seus tecidos rejuvenescem e fases de vida regridem, no melhor estilo Benjamin Button”.
Marques se refere ao filme O curioso caso de Benjamin Button , de 2008, no qual o personagem principal, interpretado pelo ator Brad Pitt, nasce com aparência de idoso e vai ficando cada vez mais jovem à medida que o tempo passa.
Essa capacidade de se regenerar continuamente não significa que a água-viva nunca morra. O animal pode ser comido por um predador, por exemplo. “É algo como os highlanders: são imortais até que sua cabeça seja cortada”, compara Marques, agora em referência a outro filme,Highlander – O guerreiro imortal , de 1986.
O pesquisador Sérgio Stampar, do Laboratório de Evolução e Diversidade Aquática do campus de Assis da Universidade Estadual Paulista (Unesp) explica que essa espécie de água-viva tem a capacidade de passar por um processo de reestruturação de tecidos (um tipo de regeneração) e voltar ao estágio inicial de vida, mesmo depois de atingir a maturidade sexual.
“Fazendo uma analogia, seria como se nós adultos pudéssemos voltar ao estágio de bebê”, explica.
Em tese, esse processo de regeneração da água-viva poderia acontecer para sempre.
Células adultas voltam a ser células-tronco
Para entender o processo contínuo de regeneração da Turritopsis nutricula é preciso conhecer um pouco do ciclo de vida os hidrozoários – a classe animal a que essa água-viva pertence.
Tudo começa com um ovo fecundado, do qual eclode uma larva minúscula e ciliada. Essa larva se fixa num substrato no mar – algo sólido, como uma rocha ou o casco de um navio naufragado. Em seguida, se transforma em um pólipo, que é sua segunda fase de desenvolvimento.
Desse pólipo brotam medusas (águas-vivas) nadadoras, machos ou fêmeas. Essa é a fase adulta dos hidrozoários. Nesse período de vida, eles produzem gametas, ou seja, óvulos ou espermatozoides – dependo do sexo do animal – que são liberados no mar, onde ocorre a fecundação. Os gametas fecundados formam um ovo e tudo recomeça.
Já com a Turritopsis nutricula , o processo é um pouco diferente. Depois de liberar seus gametas, ela retorna a sua forma juvenil. “O ciclo dela pode ser invertido”, explica Marques. “Depois de ir a pólipo a medusa, vai de medusa a pólipo.”
Ainda não se entende direito como a Turritopsis nutricula consegue realizar essa mágica. O que se sabe é que a capacidade da criatura rejuvenescer envolve um processo conhecido como transdiferenciação celular, ou seja, a transformação de um tipo de célula em outro, como ocorre com as células-tronco humanas.
Isso significa que as células adultas dessa água-viva, já especializadas em determinada função, são capazes de voltar a ser células-tronco, que, por sua vez, podem se transformar em qualquer outra.
Reprodução/Foto-RN176 A água-viva tem a capacidade de se regenerar continuamente | Foto: Alvaro Migotto/Cebimar/USP Foto: BBCBrasil.com
Das águas-vivas para os seres humanos
Originária do Caribe, hoje a Turritopsis nutricula é encontrada em mares de praticamente todo o mundo – acredita-se que tenha sido transportada pela água de lastro de navios. Não há risco de vir a se transformar em uma praga: nas fases iniciais de seu ciclo de vida, essa água-viva é bastante vulnerável e alvo de muitos predadores.
Mas o que o ser humano tem a aprender ou que benefício pode obter da imortalidade da Turritopsis nutricula ? Por enquanto, nada, mas talvez no futuro.
“O mecanismo talvez possa ser repetido em outros organismos, quem sabe até nos seres humanos, mas demanda um profundo conhecimento genético/molecular que ainda não temos”, diz Stampar.
“Ainda estamos muito distantes de conseguirmos aplicar isso em qualquer outro sistema biológico, pois não entendemos totalmente o processo nas águas-vivas, especialmente a parte molecular.”
Marques tem opinião semelhante. Segundo ele, processos genéticos únicos e inesperados como o apresentado pela Turritopsis nutricula são de interesse do conhecimento do ser humano.
“Terapias e reconstruções gênicas, indução à regeneração e diferenciação de tecidos são áreas que estão nos foco do conhecimento biológico atual”, afirma. “Então, potencialmente, um fenômeno desses, se compreendido e reproduzido geneticamente, daria possibilidade de regeneração de tecidos e eventualmente órgãos, o que é impossível hoje.”
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