ESTADOS UNIDOS
Michelle Lyons viu quase todos os prisioneiros condenados à morte entre 2000 e 2012 no Estado americano serem executados com injeção letal; ela acaba de lançar livro de memórias.
ROTANEWS176 E BBC BRASIL.COM 07/05/2018 17:39
Há 18 anos, Michelle Lyons viu Ricky McGinn morrer. Essa recordação ainda a faz chorar.
Quando ela menos espera, rememora a cena da mãe de McGinn com suas mãos colocadas no vidro da câmara da morte. Ela está bem-vestida para ver o filho ser executado.
Por 12 anos — primeiro como repórter de jornal, depois como porta-voz do Departamento de Justiça Criminal do Texas (TDCJ) — fazia parte do trabalho de Lyons testemunhar toda execução realizada no estado americano. O Texas é o estado que mais executa prisioneiros no país.
Reprodução/Foto-RN176 A jornalista assistiu a quase todas execuções do corredor da morte no Texas entre 2000 e 2012 Foto: BBC News / BBCBrasil.com
Entre 2000 e 2012, Lyons viu quase 300 homens e mulheres morrerem sobre uma maca, com injeções letais.
Ela testemunhou sua primeira execução quando tinha 22 anos. Depois de ver Javier Cruz morrer, escreveu em seu diário: “Eu fiquei completamente bem com isso. Eu deveria estar chateada?”.
Ela achava que sua compaixão estava reservada para causas mais nobres como, por exemplo, a dos dois idosos assassinados a marteladas por Cruz.
“Testemunhar execuções era apenas uma parte do meu trabalho”, diz Lyons, que acaba de lançar um catártico livro de memórias chamadoDeath Row: The Final Minutes (Corredor da Morte: Os Últimos Minutos,em tradução livre ) .
“Eu era a favor da morte, achava que era o castigo mais apropriado para certos crimes. E porque eu era jovem e corajosa, tudo era preto no branco”, diz. “Se eu tivesse começado a explorar como as execuções faziam me sentir enquanto as presenciava, dado mais atenção às minhas emoções ali, como eu poderia ter sido capaz de voltar àquela sala mês após mês, ano após ano?”
Desde 1924, todas as execuções no Texas ocorreram na pequena cidade de Huntsville, no leste do estado. Há sete prisões em Huntsville, incluindo a Unidade Walls, um imponente prédio vitoriano que abriga a câmara da morte.
Em 1972, a Suprema Corte americana suspendeu a pena de morte no país alegando que era uma punição cruel e incomum, mas, poucos meses depois, alguns estados começavam a alterar suas leis para derrubar o argumento e restabelecê-la.
O Texas conseguiu voltar a executar presos dois anos depois, adotando a injeção letal. Em 1982, Charlie Brooks foi o primeiro preso a ser morto dessa maneira. Logo, Huntsville passou a ser conhecida como a “capital mundial da punição”.
Huntsville é uma cidade pequena situada entre os belos bosques de pinheiros no chamado Cinturão da Bíblia. Há igrejas em todos os lugares, os moradores são educados e você pode passar alguns dias na cidade sem saber que ali é onde muitos criminosos encontram a morte.
Não é o que parece
Seja qual for sua ideia sobre uma testemunha de execução, Lyons não se enquadra nela. Ela fala de assuntos diversos — de cerveja a documentários. É inteligente, culta e muito rápida nas ironias.
Mas quando a conversa recai sobre o que ela presenciou na câmara da morte, sua audácia dá lugar à vulnerabilidade e não é difícil ver o preço que ela paga por ter visto tantas execuções.
Em 2000, o Texas matou 40 prisioneiros, um recorde para um único estado americano. Lyons, enquanto era repórter de polícia do jornalHuntsville Item , testemunhou 38 delas. Mas sua aparente indiferença, que se manifestava em alegres comentários em seu diário, era apenas um mecanismo de defesa.
“Quando olho para minhas anotações, vejo que as coisas me incomodaram. Mas qualquer desconfiança que eu tive, eu coloquei em uma mala na minha mente e a chutei para um canto. Foi essa apatia que me preservou e me manteve indo em frente.”
Lendo suas primeiras anotações, chama a atenção a maneira aparentemente trivial como ela relata o que testemunhou.
Por exemplo: Carl Heiselbetz Jr., que assassinou uma mãe e sua filha, ainda usava os óculos na hora de morrer.
Já Betty Lou Beets, que enterrava maridos em seu jardim como se fossem animais de estimação mortos, tinha pés minúsculos. E Thomas Mason, que assassinou a mãe e a avó de sua mulher, parecia o avô de Lyons.
“Assistir aos momentos finais da vida de alguém e a alma delas deixando o corpo nunca se torna mundano ou normal. Mas o Texas estava executando criminosos com tanta frequência que tirou todo o teatro em torno disso.”
Quando Lyons entrou para o escritório de informações públicas da TDCJ, em 2001, seus deveres se tornaram mais onerosos. Ela não mais relatava o que via na câmara da morte do Texas apenas ao povo de Huntsville — agora, era para todos os Estados Unidos e para o resto do mundo.
Lyons descreveu o procedimento da execução no Texas como sendo o de “observar alguém indo dormir”. Para alguns entes queridos de vítimas dos presos, a injeção letal chegou a ser decepcionante, já que eles achavam mais teatral a cadeira elétrica na qual 361 condenados foram mortos entre 1924 e 1964.
Reprodução/Foto-RN176 A sala onde as injeções letais são aplicadas nos presos condenados à morte Foto: Getty Images / BBCBrasil.com
Lyons também teve que reportar os apelos desesperados por perdão, as desculpas angustiadas e as alegações desesperadas de inocência, bem como passagens bíblicas, citações de canções de rock e até mesmo piadas ocasionais — em 2000, Billy Hughes disse: “Se eu estou pagando a minha dívida para com a sociedade, tenho direito a um desconto e a um reembolso”. Raramente Lyons escutava algo raivoso, e só uma vez ela ouviu um preso soluçando.
Ela ouviu últimos sons emitidos pelos criminosos — uma tosse, um suspiro ou um “chocalho” — enquanto as drogas faziam seu trabalho e os pulmões eram destruídos. Depois que os presos morriam, ela os via ficarem roxos.
Lyons recebeu cartas e e-mails de todo o mundo, de pessoas que a condenavam por participar de “assassinatos patrocinados pelo Estado”. Às vezes, ela respondia com raiva dizendo-lhes para não se meterem nos assuntos do Texas.
“Quase todo mundo de fora dos Estados Unidos achava estranho que ainda matássemos pessoas. Jornalistas europeus costumavam usar a palavra ‘matar’ em vez de ‘executar’. Eles pensavam que estávamos assassinando pessoas.”
Protestos
Lyons também testemunhou algumas execuções teatrais.
Em 2000, quando Gary Graham foi executado, jornalistas do mundo todo desembarcaram em Huntsville junto com testemunhas famosas como o reverendo Jesse Jackson e Bianca Jagger (ex-mulher do roqueiro Mick Jagger e uma militante da Anistia Internacional) e membros dos Novos Panteras Negras.
Graham era um negro acusado de um homicídio sobre o qual pairavam várias dúvidas — a principal era sobre a bala com a qual a vítima foi morta, que não correspondia à arma que o acusado tinha. Ele tentou por 19 anos provar sua inocência, alegava racismo e o caso ganhou repercussão internacional.
Graham roubou 13 vítimas diferentes em menos de uma semana, espancou duas delas, atirou no pescoço de uma e bateu em outra com o carro que estava roubando A vítima final em sua ficha corrida foi sequestrada, roubada e estuprada. Nada disso foi contestado, porque ele se declarou culpado das acusações. No entanto, ele negava ter cometido um assassinato no início de sua fúria.
Lyons achava que havia garotos-propaganda mais merecedores do movimento contra a pena de morte do que Graham.
Reprodução/Foto-RN176 Em 2000, Huntsville foi palco de protestos contra a pena de morte por conta da execução de Gary Graham Foto: Getty Images / BBCBrasil.com
Um condenado ou condenada podia estar no corredor da morte havia décadas, então, Lyons conheceu bem alguns deles, incluindo serial killers, assassinos de crianças e estupradores. Nem todos eles eram monstros, diz, e ela passou a gostar de alguns deles. Chegou até a pensar que poderiam ter sido amigos se eles tivessem se encontrado no mundo fora da prisão.
Depois que Napoleon Beazley, que tinha apenas 17 anos quando assassinou o pai de um juiz federal, foi executado em 2002, Lyons chorou durante todo o caminho de volta para casa.
“Não só tive a sensação de que Beazley não teria mais se metido em problemas, eu pensei que ele poderia ter sido um membro produtivo da sociedade”, lembra. “Eu estava torcendo para que ele conseguisse ganhar seus recursos (na Justiça), mas me sentia culpada por pensar assim. Foi um crime hediondo. E se eu fosse da família da vítima, iria desejar muito que ele fosse executado. Eu tinha o direito de sentir compaixão por Beazley quando ele não tirou nada de mim?”
Mas foi quando Lyons ficou grávida, em 2004, que esses sentimentos ambíguos começaram a tomar conta dela.
“As execuções deixaram de ser um conceito abstrato e tornaram-se profundamente pessoais. Comecei a me preocupar que meu bebê pudesse ouvir as últimas palavras dos detentos, suas desculpas lamentáveis, suas desesperadas alegações de inocência”, diz.
Após o nascimento da filha, a angústia continuou a se agravar. “Eu tinha um bebê em casa e faria qualquer coisa por ele, e essas mulheres estavam vendo seus bebês morrerem. Eu ouvia as mães soluçando, gritando, batendo no vidro, chutando a parede. Eu estava na sala de testemunhas pensando: ‘Não há vencedores, todo mundo está sendo enganado’. As execuções eram apenas situações tristes em todos os lugares. E eu tive que testemunhar toda aquela tristeza, uma vez após a outra.”
Lyons seguiu em frente por mais sete anos, observando presos caminharem para sua morte com uma inquietante docilidade, até que ela deixou a TDCJ em um amargo processo judicial por discriminação de gênero — ela conseguiu vencer a ação.
“Eu pensei que estar longe do sistema prisional me faria pensar menos sobre as coisas que eu tinha visto, mas era exatamente o contrário. Eu pensava sobre isso o tempo todo. Era como se eu tivesse tirado a tampa da caixa de Pandora e não conseguisse mais fechá-la.”
Apoio popular
Há sinais de que o Texas está perdendo seu apetite pela execução de condenados.
A última grande pesquisa sobre o tema no Estado, em 2013, revelou que 74% dos texanos apoiavam a pena de morte – então, é improvável que a câmara da morte seja desmantelada tão cedo.
No entanto, sete execuções ocorreram em Huntsville no ano passado, o mesmo número que em 2016 – muito menos do que o recorde de 40 em 2000.
Lyons acredita que o Texas empregou a pena de morte mais do que o necessário, mas continua sendo uma apoiadora dessa punição nos piores casos. E o estado, como Lyons admite, continua sendo o local dos maiores e mais loucos crimes nos EUA.
No Cemitério Joe Byrd, um belo terreno onde prisioneiros cujos corpos não foram reclamados por familiares foram enterrados por mais de 150 anos, Lyons está entre as fileiras de cruzes e se pergunta quantos desses homens ela viu morrer. Mas não são as execuções das quais ela se lembra que mais a incomodam: são as que ela esqueceu.
“Você não vê muitas flores nas sepulturas aqui”, diz Lyons. “E o que isso diz sobre mim, que não consigo me lembrar de alguns daqueles homens que vi executados? Talvez eles mereçam ser deixados em paz e esquecidos. Ou talvez seja o meu trabalho lembrar.”
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