ROTANEWS176 E UOL 08/07/2016 09h29 Por Tiago Dias
Reprodução/Foto-RN176 A cantora, Janis Joplin encantada com o carnaval do Rio de Janeiro, assistiu aos desfiles ao lado do Rei momo, mas não foi aceito no baile de gala por não ser boa
O ano de 1970 despontou pessimista para Janis Joplin. A repercussão fraca de seu primeiro álbum solo, “I Got Dem Ol’ Kozmic Blues Again Mama!”, deixou a jovem cantora de voz rouca e potente sem rumo. Além disso, sofria com o uso cada vez mais frequente da heroína. A solução era a “rehab”, não aquela da Amy Winehouse, algo mais solar: O Brasil.
A viagem mitológica foi crucial na vida breve de Janis e tem destaque no documentário “Janis: Little Girl Blue”, que estreou nesta quinta-feira (7) nos cinemas. No olhar da diretora Amy J. Berg, o país foi responsável por lhe apresentar um novo amor (e não é o Serguei), cujas idas e vindas seriam definitivas para a recaída fatal oito meses depois. Mas o que Janis deixou em troca não está no filme. Em plena folia do Carnaval, ela foi expulsa de hotel, levou uma dura da polícia por fazer topless na areia e até cantou “Summertime” ao lado de prostitutas em um bordel em Salvador.
“Vivíamos uma situação de risco permanente”, resume o carioca Ricky Ferreira. “Onde ela entrava, criava um caso. Oscilava muito o humor, mas acordava cantando. Tive o prazer de acordar com ela no chuveiro cantando”.
Ricky Ferreira
Reprodução/Foto-RN176 A rehab de Janis Joplin: Queimadura de sol, topless na praia da macumba e Fogo Paulista no café da manhã
Foi Ricky quem a socorreu quando, recém-chegada ao Rio, foi expulsa do Copacabana Palace supostamente por nadar pelada. Fotógrafo da edição brasileira da “Rolling Stone”, alguém lhe deu um toque de uma “cantora muito louca” na praia. Correu para lá e viu Janis na areia, dando entrevista para uma repórter e tirando foto com o Rei Momo daquele ano.
“Comecei a fazer umas fotos ali.
Era carnaval, os hotéis lotados. Ela estava com uma amiga, Linda [Gravenites, figurinista da cantora], e convidei elas para ficarem na minha casa”, relembra. “Você pode imaginar como deve ter sido”.
Ele conta que Janis acordava cantando, sempre de bom humor. Para o desjejum, um cardápio típico de boteco. Começava com uma espécie de licor de ovos, bebida popular na época, e logo entornava uma garrafa de Fogo Paulista. Quando estava no clima ‘de humanas’, pegava um pequeno baú repleto de contas e linhas e passava as tardes fazendo miçangas. “Ela tinha esses dois lados. Começava a falar com voz de garotinha e de repente falava uma gíria pesada do ‘Hells Angels”.
Linda não aguentou muito. Brigou com a amiga e deixou o apartamento em poucos dias. “Ela estava em crise de abstinência, não encontrava heroína no Brasil. Então bebia muito, mas não fumava “bagulho” [maconha]. Dizia que deixava ela paranoica”, conta.
Avessa a ambientes luxuosos, ela queria conhecer o lado mais marginal da noite carioca. Numa dessas, parou no Bolero, “inferninho” na avenida Atlântica, frequentado por marinheiros e prostitutas. Naquela noite, Serguei era a atração. O roqueiro logo reconheceu aquelas plumas na cabeça e anunciou a presença “da maior cantora americana de todos os tempos”.
Sem tomar álcool e fumar “cigarros normais”, Serguei diz que naquela noite fumou maconha com Janis na praia. “Foi uma maravilha. Essa fase foi espetacular”, ele conta, ao UOL, negando a lenda de que teria tido relações sexuais com ela — pelo menos não dessa vez. Janis já era sua paixão platônica meses antes, quando foram apresentados por um amigo em comum em Nova York. O reencontro foi marcado por um baseado fumado na praia e um pulo na boate Porão 73, onde acabou dando uma palhinha.
Coletiva de bebum
A notícia da estadia de Janis no Rio já tinha se espalhado e ela voltou ao Copacabana Palace para uma coletiva aos jornalistas brasileiros. Repórter na época, Nelson Motta também apareceu correndo após Hélio Oiticica ligar “excitadíssimo” com a chegada do furacão.
Ele se lembra dela meio alterada e sempre com um copo na mão. “Era alegria de bebum. Na época, no Brasil, não tinha heroína”, relembra. “Ela teve um ‘big time’ aqui. Estava rindo, à vontade. Eu era hiper fã e olhar foi o bastante para mim”, conta.
Com apenas 20 anos, uma tímida e iniciante Ângela Roro era uma das presentes na coletiva. Deu a sorte de dar de cara com a diva na piscina. Janis apertou seu queixo e disse: ‘Pretty baby face’ [carinha linda]. Minutos depois, Ângela já não estava mais ali. “Fiquei tão assustada com a possibilidade de conhecer Janis que fugi para o Arpoador e passei o resto do dia olhando o mar das pedras e pensando porque todo grande ídolo tinha que sofrer”, relembra.
Janis aproveitou os últimos dias no Rio visitando o mirante da Estrada do Joá e a Praia da Macumba, onde chamou atenção até da polícia ao tomar sol de topless. Levou uma dura, mas voltou às areias logo depois. Bêbada, dormiu ali mesmo sob o sol escaldante do Rio. Saiu vermelha e com bolhas nas costas.
As queimaduras não a impediram de curtir a folia. Ao lado do DJ e radialista Big Boy, ela assistiu aos desfiles das escolas de samba e chegou a ser convidada para um baile de gala no Theatro Municipal. Na entrada, alguém da organização, do lado de dentro quis saber se a tal famosa era “boa”. “Não, é uma merda”, respondeu o hostess. “Bagulho no meu camarote não entra”, falou a voz por trás da porta. “Ela era tão sensível que entendeu imediatamente o que estava acontecendo. Quis jogar garrafa na janela, foi aquele caos”, garante Ricky.
Reprodução/Facebook/Lula Martins
Reprodução/Foto-RN176 Janis e Judy Spencer na casa do artista Lula Martins, em Salvador
Com as plumas, brincos e os chumaços de pêlos debaixo do braço, ela se misturou mesmo foi na rua, em uma profusão de fantasias. Queria comprar todas.
Na coletiva, segundo a “Rolling Stone” da época, ela anunciou que ia viajar para floresta com um “beatnick que parece um urso chamado David Niehaus”. Dava sinais de que realmente estava desanuviando. “Finalmente me lembrei de que não preciso passar 12 meses por ano em cima do palco. Resolvi ir curtir algumas outras ‘selvas’ por umas duas semanas”.
Ricky ainda tentou organizar um show para ela na Praça General Osório, mas após 5 dias, ela partiu rumo a Bahia, na garupa da moto de David. Ricky nunca mais a viu. “Fiquei sabendo pelo jornal da morte dela”.
“Summertime”
A empresária Judy Spencer se recorda ainda hoje de quando viu Janis e David pela primeira vez em Salvador. Loiro e alto, ele parecia o vinking. Já a cantora ainda era aquela mesma da capa do disco que tinha acabado de trazer dos Estados Unidos, embora estivesse toda ralada com as quedas durante a viagem de moto. “Eu nem sonhava que um dia isso seria possível.”
Novamente, Janis tinha acabado de ser recusada em um hotel cinco estrelas na capital baiana e estava sem saber para onde ir. Judy acabou levando o casal para a casa do amigo Lula Martins, artista plástico que hoje reside em Ibiza. Com clima de retiro de um grupo de amigos hippie, a casa “caía aos pedaços”, mas oferecia uma vista direto para a praia do Rio Vermelho. Adquiriu um ritual, tomava tequila antes de escovar os dentes e logo se jogava no mar.
Judy se recorda de uma Janis sorridente e “mais louca que todos nós juntos”. Propunha tirar fotos fingindo uma suruba, mas beijava apenas o namorado. Agarrada com uma garrafa de Pitu, revelou que estava no Brasil para se afastar da heroína. Cantarolava e se dublava enquanto o próprio disco rodava na vitrola. Judy ia para outra dimensão. “Ela cantou o disco inteiro, a gente de noite enterrado na areia, olhando para o céu vendo as estrelas passando aquela velocidade. O LSD de 1970 não era essa porcaria de hoje”, diz.
Outra noite, passeando pela Ladeira da Montanha, ouviu um som numa casa e quis entrar. Era um brega, como eram chamado os prostíbulos na capital baiana. A banda do bordel sacou quem era a visitante e puxou “Summertime”. “Foi demais, era emocionante ouvi-la. Ela se deu bem com todas as putas”.
O cineasta baiano Henrique Dantas cresceu ouvindo essa história e vendo as imagens de Janis na casa do tio. Há anos ele vem coletando depoimentos de quem conviveu com Janis para o documentário “Summertime na Bahia”. “A ideia é trazer bandas para interpretar a canção por aqui”, conta. Mas só de Salvador. Janis e David ainda iriam de moto para Arembepe, em Camaçari, a 30 km ao norte da capital. A aldeia se tornou famosa pela visita. “Mas ali já não sabe mais o que é verdade e o que é lenda”, conta.
Antes de partir de vez, Judy conta que Janis tirou um anel antigo de rubi da mão e a deu de lembrança. Ela suspira ao relembrar daquele março. “Ela me convidou para visitá-la na Califórnia, mas não deu tempo”.