Coreia do Sul tem onda de programas em que norte-coreanas arrumadas falam sobre rotina de “agonia” antes da fuga para o país vizinho; atrações invertem a imagem típica dos refugiados, mas, na avaliação de especialistas, retratam as mulheres de forma estereotipada.
BBC BRASIL.COM 16/10/2017 16:47
Na Coreia do Norte, o entretenimento é produzido exclusivamente pelo Estado e usado principalmente para alimentar o antiamericanismo, exaltar a nação e o governo da família Kim.
Reprodução/Foto-RN176 Norte-coreanas na TV Foto: BBCBrasil.com
Nos espetáculos, cantoras de ópera e acrobatas se movimentam em uma precisa harmonia socialista.
Não se poderia imaginar um ambiente mais inadequado para produzir estrelas para a indústria dos meios de comunicação da Coreia do Sul, um dos complexos de entretenimento mais chamativos e deslumbrantes da Ásia.
Ainda assim, é exatamente isso que está acontecendo. Na indústria do entretenimento sul-coreano, permeado por modismos que vão e vêm, um tema tem sido relativamente perene: as celebridades desertoras da Coreia do Norte.
Nos últimos anos, os norte-coreanos criaram uma onda de programas de televisão que prometem aos espectadores uma visão emocionante da vida na região militarizada.
Reprodução/Foto-RN176 Norte-coreanas na TV Foto: BBCBrasil.com
Frequentemente esclarecedores, às vezes distorcidos (ocasionalmente os dois), esses programas têm ficado cada vez mais populares.
São uma tendência midiática sem paralelo, que se apoia muitas vezes nas histórias daqueles que conseguiram escapar do “regime mais tirânico do mundo” e que inverte a imagem típica dos refugiados com um novo estereótipo: as celebridades desertoras são quase invariavelmente mulheres, jovens e bonitas.
A fuga de Kim
Kim Ah-ra, de 25 anos, é uma dessas estrelas em ascensão.
As polainas e as unhas dos pés pintadas não denunciam que ela chegou a passar fome e teve de se alimentar à base de sopa de capim para sobreviver.
“Antes, quando se falava sobre a Coreia do Norte na Coreia do Sul, tudo era sério e mortal. Agora temos espetáculos que nos colocam de maneira mais leve, mais humana”, afirma Kim.
Durante décadas, diz, os desertores eram considerados no sul como pessoas tristes, atrasados e vítimas de lavagem cerebral. Isso agora está mudando.
“Veja agora nossa audiência. As pessoas nos amam!” ressalta.
Kim tinha apenas 12 anos quando fugiu de sua cidade natal, em uma região montanhosa da Coreia do Norte, para o interior da China.
Depois de um longo período no interior chinês, ela finalmente desertou para a Coreia do Sul em 2009.
Kim e sua mãe foram ajudadas por operários que trabalhavam na construção de um metrô, uma ousada rede de tráfico ilegal que levava norte-coreanos para a Coreia do Sul a partir da China.
Muitas das suas lembranças de infância giram em torno da comida, ou a falta dela.
“Quando tínhamos comida, comíamos imediatamente. Acrescentávamos um pouco de capim a duas ou três colheres de arroz e cobríamos com bastante água, até que tívessemos um mingau escuro. Isso dava para alimentar quatro pessoas.”
Economia stalinista
Desde o fim dos anos 1950 até o começo dos anos 1990, a economia da Coreia do Norte funcionou sob o modo stalinista.
O Estado era praticamente o único empregador, o único provedor de alimentos, roupas e ferramentas.
Reprodução/Foto-RN176 Cédulas de dinheiro norte-coreano Foto: BBCBrasil.com
Os norte-coreanos chegavam a passar semanas sem ver dinheiro em cédulas.
Quando o bloco soviético se desintegrou e os principais parceiros comerciais do país se debilitaram, o sistema de distribuição estatal também passou a enfrentar dificuldades. O fluxo de alimentos foi interrompido e milhares de pessoas começaram a passar fome, inclusive os pais de Kim.
Nessas condições, eles venderam a casa que possuíam por pouco menos de dez quilos de milho.
A família se mudou para uma cabana cheia de buracos e infestada de insetos. Foi quando sua mãe começou a falar abertamente em arriscar a vida para escapar para a China.
Reprodução/Foto-RN176 Fronteira entre Coreia do Norte e China Foto: BBCBrasil.com
“Lembro de ter passado por um povoado olhando atentamente para o chão, na esperança de encontrar macarrão ou uma cabeça de galinha. Meu pai cozinhava ratos e dizia que era carne de coelho.”
Kim recorda o dia em que encontrou uma semente de abóbora no meio do barro e a devorou instantaneamente.
De camponesa a atriz
Na Coreia do Norte, os camponeses quase não têm oportunidades de entrar no mundo das artes, dominado pelo Estado. O caminho, em geral, parte da capital, Pyongyang, ou de outros centros urbanos – dificilmente do interior.
“Em um mundo capitalista, seus sonhos e desejos têm importância. Na zona rural da Coreia do Norte, não se pensa nisso. Seu destino está totalmente determinado”, afirma a jovem.
Reprodução/Foto-RN176 Atriz norte-coreana Foto: BBCBrasil.com
Praticamente ninguém decide se tornar atriz na Coreia do Norte. Isso é trabalho do Estado – os estudantes são selecionados um a um e submetidos a uma rigorosa rotina de ensaios.
Os agentes do governo procuram nas salas de aulas moças com o rosto arredondado, voz aguda e traços delicados.
Reprodução/Foto-RN176 Desfile na Coreia do Norte Foto: BBCBrasil.com
Uma escolhida
“Fui selecionada quando tinha 8 anos”, diz Han Seo-hee, de 35 anos, cantora e instrumentista norte-coreana.
“Estavam procurando meninas com o rosto arredondado, olhos grandes e vozes claras. Foi uma grande honra.”
Han desertou para a Coreia do Sul em 2006.
Assim como em sua terra natal, foram seus traços e o equilíbrio de sua voz que chamaram atenção dos produtores de TV sul-coreanos.
Reprodução/Foto-RN176 Teatro na Coreia do Sul Foto: BBCBrasil.com
Han fez parte da primeira onda de programas de televisão com desertores, que surgiu há mais ou menos cinco anos.
Na Coreia do Norte, ela vivia uma vida de relativo luxo. Em vez de trabalhar nas fábricas, como é comum a praticamente todos os jovens no país, Han passou a adolescência em salas de ensaio, cantando em coro com outras meninas.
Os professores eram amáveis, porém implacáveis, diz.
Apesar de duro, o treinamento rendeu frutos. Enquanto Kim comia insetos e raízes nas montanhas do norte, Han conseguiu desfrutar de regalias da nobreza em Pyongyang.
Mais tarde, ela se juntou à orquestra nacional, o que lhe deu acesso a artigos que só faziam parte da vida da elite norte-coreana, de cosméticos a frutas como o abacaxi.
Reprodução/Foto-RN176 Desfile Foto: BBCBrasil.com
“Nós tínhamos bananas. Isso era bem raro na Coreia do Norte.”
Sua carreira alcançou o ponto máximo no começo dos anos 2000, quando foi escolhida para fazer parte de um grupo secreto que fazia apresentações para Kim Jong-il, pai do atual líder norte-coreano.
Além de cantar, ela também tocava “oungum”, um instrumento de cordas supostamente inventado pelo “querido líder”.
“Antes da apresentação, estava extremamente nervosa. Meus amigos diziam: ‘Se você olhar apenas para o rosto do nosso querido líder, suas preocupações desaparecerão. Mas não consegui fazê-lo. Fiquei olhando a parede atrás dele. Na segunda vez, contudo, pensei ‘oh, é só um ser humano'”, diz.
Reprodução/Foto-RN176 Programa de TV Foto: BBCBrasil.com
Sem precedentes
Não há programas parecidos nos meios de comunicação das Américas.
O espetáculo é protagonizado por um elenco de desertoras que fazem rodízio entre si. Essas “belezas do norte”, como são chamadas, são questionadas pelos apresentadores sobre a vida fronteira acima e sobre temas que vão de peculiaridades da moda norte-coreana a música e cultura.
Trata-se de um gênero televisivo que trabalha com uma visão bastante estereotipada da mulher, pondera Park Hyun-sun, professor da Universidade de Seul.
“Existem regras para esses espetáculos. As desertoras devem ser puras, naturalmente belas e muito subservientes. Esse é um perfil muito diferente da mulher sul-coreana, mas os meios as usam para atiçar nossa curiosidade”, afirma.
“Muitos jovens sul-coreanos anseiam por uma mulher tradicional e pura que os faça felizes. Por isso assistem a tantas mulheres norte-coreanas na televisão. Elas estão sendo usadas para satisfazer fantasias”, critica.
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