O ornitólogo Dalgas Frisch denuncia que os pica-paus que vivem em São Paulo correm risco de extinção. Tudo porque a prefeitura joga veneno contra cupins nas árvores que eles perfuram com o bico
ROTANEWS176 E POR ISTOÉ 18/01/2019 09:00 Germano Oliveira
Reprodução/Foto-RN176 PERIGO Veneno jogado nas árvores para matar cupins põe em risco a sobrevivência dos pica-paus em São Paulo (Crédito: Divulgação)
Primeiro foram as ararinhas-azuis. Agora são os pica-paus que estão ameaçados de extinção no Brasil, sobretudo na cidade de São Paulo, uma selva de pedra que destina cada vez menos espaço para essas aves. Elas têm como habitat as frondosas árvores, com troncos circundados por grossas camadas de cascas, como os jacarandás, que estão desaparecendo da cena urbana. O ornitólogo Dalgas Frisch, com 88 anos, 81 deles dedicados aos pássaros brasileiros, está empenhado em salvar os pica-paus desse lento e gradual processo de desaparecimento em São Paulo. Como Dalgas mora ao lado da Reserva Ecológica do Morumbi, uma mata com 24 hectares no coração de São Paulo, ao lado do Palácio dos Bandeirantes, ele percebeu que os pica-paus, antes abundantes na região, estão rareando. Por isso, há dois anos começou a estudar o fenômeno, acompanhando o dia a dia desses pássaros, com fotografias e filmagens. Afinal, no México os pica-paus já estão praticamente extintos, tanto em função do desmatamento como pelo fato de que os moradores acreditavam que suas penas tinham propriedades medicinais (a fumaça com a queima das plumagens ajudava mulheres a suportar as dores do parto). Mas, em São Paulo, a ameaça maior vem da Prefeitura, segundo ele. Os funcionários de parques e jardins vêm dedetizando com inseticidas as árvores para matar cupins e esse veneno é letal para esse tipo de pássaro, que têm por hábito perfurar as árvores com o bico para encontrar insetos que os alimentam ou até mesmo a fazer seus ninhos nos buracos “cavados” por eles nos troncos. Além disso, a Prefeitura vem substituindo os Jacarandás por plantas de textura lisa, onde os pássaros não conseguem se “segurar” para poder furar as árvores. Ele garante que vai procurar o prefeito Bruno Covas para expor o problema.
Reprodução/Foto-RN176 “Quem não sonha, não voa e conhece apenas um andar” Dalgas Frisch, ornitólogo (Crédito:Divulgação)
Mas Dalgas acabou descobrindo uma coisa também importante para a sobrevida dos pica-paus. “Como esses pássaros fixam as patinhas nas árvores para fazer os furos com os potentes bicos, eles usam as asas e caudas, chamadas tecnicamente de remiges e retrizes, para se apoiar nas árvores. Mas as asas e caudas acabam ficando grudadas pela resina absorvida das plantas. Se elas não se livram das resinas, não conseguem apoio para a fixação às plantas em novas operações, e podem morrer”, diz o ornitólogo. Dalgas percebeu que esses pássaros necessitam banhar-se para retirar a resina das asas com bastante frequência. Recomenda que moradores em áreas habitadas pelos pica-paus implantem recipientes com água para permitir o acesso dos pássaros ao banho diário, hábito que já adota em sua casa no Morumbi. Um estudo completo sobre essa constatação está sendo preparado para publicação na revista Nature, no Reino Unido. “Ainda podemos salvar o pica-pau paulistano da extinção”, resume Dalgas. A dedicação a esse estudo foi tamanha que Dalgas caiu, em junho último, de uma enorme escada que ele instalou para fotografar de perto os pica-paus que observa no Morumbi. Resultado: fraturou o crânio e ficou dois meses internado no Hospital Albert Einstein, entre a vida e a morte.
A ajuda de Getúlio
Dalgas é uma referência mundial para a ornitologia brasileira. Nascido em São Paulo, embora filho de dinamarquês, ele acaba de receber o título de cidadão da Dinamarca pelos relevantes serviços em prol da preservação da fauna e flora, inclusive da Amazônia, principalmente por ter contribuído para a demarcação do Parque do Tumucumaque, com 10 milhões de hectares, encravado entre as florestas amazônicas do Brasil, Suriname e Guiana Francesa, uma área maior do que o território de Portugal (9,2 milhões de hectares). Foi nessas florestas, inclusive, no Acre, que o ornitólogo fotografou e gravou o som dos sete cantos do Uirapuru, um pássaro que só vive na Amazônia (ver box em anexo). Só ele, em todo o mundo, conseguiu essa façanha. Mas quem acha que o velho Dalgas aposentou-se e que só vive das glórias do passado, não imagina do que ele é capaz para manter o sangue de pássaros correndo em suas veias. Ele é praticamente um homem pássaro.
Reprodução/Foto-RN176 A PARAFERNÁLIA Dalgas usou um gravador potente e uma
parabólica desenvolvida por ele para gravar o som do raro Uirapuru (Crédito:Divulgação)
Aos sete anos, ele caçava passarinhos nas matas da Represa Billings, em São Paulo, e o pai Svend Frisch, um engenheiro dinamarquês com curso de pintura na Academia de Artes de Paris, desenhava as aves. Svend havia acabado de dar de presente ao filho um livro sobre os 1.800 pássaros brasileiros do ornitólogo Eurico Santos. Mas a publicação só trazia a ilustração de 200 aves. Faltava 1.600. Foi então que Svend e Dalgas Frisch, o menino que se encantava com os pássaros, resolveram fazer a ilustração das aves que Santos não havia conseguido retratar. Com essa missão, o pequeno Dalgas usava seu estilingue para caçar os passarinhos, que o pai empalhava e desenhava com primor. Certa vez, a polícia prendeu o garoto com seu instrumento de caça e alguns passarinhos abatidos. O caso foi parar com Eugênio do Couto Magalhães, diretor do Instituto de Caça e Pesca, da Secretaria de Agricultura de São Paulo, que chamou pai e filho para explicar-lhes que abater passarinhos era crime ambiental. Depois que revelaram que o objetivo era catalogar todos os pássaros brasileiros, Dalgas foi autorizado a continuar a caça.
Em 1945, já com 15 anos, o então presidente Getúlio Vargas viu os desenhos e chamou o menino ao Palácio do Catete, no Rio. “Os olhos de Getúlio brilhavam. Ele adorava pássaros. Mandou que eu e meu pai expuséssemos nossas aves empalhadas no Museu de Zoologia e que eu tivesse lá aulas de ornitologia”, lembra-se Dalgas, o maior ornitólogo brasileiro. Com o empurrãozinho de Getúlio, em 1964, já formado engenheiro, Dalgas publicou seu primeiro livro sobre as “Aves brasileiras” (é autor de seis livros editados sobre o tema), com desenhos e fotografias de 1.650 pássaros não contemplados por Eurico Santos.
O mágico canto do Uirapuru
Reprodução/Foto-RN176 Divulgação
Em suas viagens à Amazônia, Dalgas Frisch soube que no Acre vivia o Uirapuru, um passarinho pequeno e marron, o mais raro do Brasil, único no mundo a emitir sete cânticos exóticos, cujo som ninguém havia reproduzido. Os índios diziam que o portador de uma de suas penas ficava irresistível. Num almoço que realizou com o então presidente da Transbrasil, Omar Fontana, em 1972, Dalgas foi desafiado a gravar o Uirapuru. Dalgas já era um ornitólogo conhecido. autor de vários livros sobre as aves brasileiras. Munido de um gravador potente que comprou na Escócia e com as passagens de avião da Transbrasil que Fontana lhe forneceu, Dalgas foi para o Acre. Lá, o governador lhe cedeu barcos e os serviços de um indígena como guia para ir ao encontro do Uirapuru. O raro pássaro só cantava entre a última semana de outubro e a primeira semana de novembro. No meio da mata fechada, instalou uma antena parabólica que ele mesmo construiu para captar o som com mais precisão e acampou na floresta à espera do pássaro cantar. Em uma certa manhã, um passarinho posou sobre sua aparelhagem e ele, achando tratar-se de um pássaro qualquer, espantou o bichinho. O índio, contudo, lhe advertiu que aquele era o Uirapuru. O passarinho voou para o galho de uma árvore ali perto e começou a cantar. Tudo captado por ele.