As histórias de 1964, ainda hoje

Filme preservado nos arquivos do governo dos EUA mostra que mobilização da opinião pública foi decisiva para o golpe no Brasil

ROTANEWS176 E CARTA CAPITAL 18/03/2016 09h28                                                                              Por Fernando Santomauro

1

Reprodução/Foto-RN176  População comemora golpe de 1964 em frente ao Palácio do Guanabara, no Rio de Janeiro

O curta que passava no escurinho do cinema, antes dos melhores filmes da MGM, Columbia e Paramount, considerado como jornalístico, mostrava pessoas vindo em bondes para o comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964.

A narração comentava a desordem que se causava: “Uma claque foi trazida para engrossar a multidão e fazer com que as manifestações parecessem espontânea. Os oradores eram comunistas ou da esquerda radical, o discurso era reformista, mas seu objetivo era causar o tumulto e destruição, um velho truque comunista. Pessoas confusas são presas fáceis.”

E em seguida denunciava: “No Rio, espiões da chamada República Popular da China foram detidos. Evidências de uma conspiração para assassinar líderes democráticos do Brasil foram descobertas.”

Para esse noticiário, reproduzido nas melhores salas brasileiras e latino-americanas, o clima de caos se reproduzia também no seio das próprias Forças Armadas: “Marinheiros mais à esquerda e ligados à Associação da Marinha se trancaram no prédio da União Metalúrgica. Almirantes no Clube Naval concluíram que esse era um esforço para dividir as forças armadas em diferentes campos, outro velho truque comunista.”

Finalmente o newsreel (nome dado aos filmes jornalísticos curtos exibidos no cinema) chamado de “Vitória da Democracia”, transmitido em maio de 1964, apresentava o desfecho feliz: “As pessoas saíram na rua para celebrar o fim de uma era de incerteza e medo. Por quatro anos, eles sofreram com uma espiral inflacionária, alarmantes greves de trabalhadores, e promessas vagas e não cumpridas. Agora a nação parece tomar uma nova direção e uma nova esperança. Meio milhão de pessoas, de todos os níveis sociais, se reuniram em uma Marcha com Deus e pela Liberdade, demonstrando um solene, mas não menos apaixonado, pedido por mudança – por meio de processos democráticos”.

Com a bandeira brasileira ao fundo, no seu encerramento, o filme descrevia a festa popular e os desafios futuros: “E tinha chuva de papel picado e serpentinas nas ruas do Rio. Uma Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade, previamente agendada, se transformou em uma manifestação da vitória, outra demonstração espontânea do apoio popular à mudança, e uma volta ao curso natural da Nação. Mas ainda há muito a ser feito. O Congresso elegeu Umberto [sic] de Castelo Branco, para cumprir o mandato restante e liderar a nação nos desafios que se impõem a seguir. O povo está determinado que esse deve ser um grande ponto de mutação na sua história.”

O roteiro desse filme, assim como sua versão em espanhol, foram encontrados por mim depois de 50 anos de sua exibição, nos arquivos do governo norte-americano em College Park, em Maryland, entre as produções do departamento de filmes da Agência de Informação dos Estados Unidos (USIA), em sua divisão para América Latina. Particularmente, foi o primeiro filme confeccionado pela USIA para narrar o que teria sido uma revolução democrática no Brasil.

O governo americano, mais fortemente a partir de 1953 com a criação da USIA, sabia que a opinião pública e a aliança com os meios de comunicação de massa brasileiros eram decisivos como complementos das ações políticas que poderiam definir os rumos do País. Muito além do respaldo político, militar e jurídico, foi decisiva a mobilização da opinião pública brasileira.

Os fatos políticos e argumentos jurídicos se complementavam com a cobertura dos grandes meios de comunicação brasileiros em favor da deposição do presidente João Goulart (1961-1964) e a tudo o que ele representava. Os americanos já sabiam isso pelo menos desde a década de 50.

Atualmente, o juiz responsável pela Operação Lava-Jato, Sérgio Moro, também compreendeu muito bem isso. É o que ele faz questão de declarar em eventos públicos, seja os organizados pelo grupo Lide, pelas organizações Globo ou em sua rasa análise sobre as estratégias e desdobramentos da Operações Mãos Limpas na Itália. Sem a opinião pública a seu favor, seu trabalho não seria tão eficiente.

A partir dos acontecimentos do 13 de março de 1964 e do golpe consolidado em 1º de abril, o Dia da Mentira do Brasil, a cobertura da grande imprensa brasileira justificava a “revolução” civil-militar como uma vitória da “democracia brasileira”.

Os jornalistas, historiadores de dia seguinte, reproduziram essas histórias, seja por convicção política própria, ou incorporando a linha editorial determinada pelas famílias que dominavam e dominam as grandes corporações de comunicação do Brasil: a Folha, o Estado, o Globo e, naquela época, os Diários Associados.

Esses grandes grupos e as histórias contadas imediatamente por eles para justificar o golpe de então também amplificavam uma agenda política clara, por detrás de sua histórias. Iam contra a incorporação das defendidas por Jango, como a reforma urbana, reforma agrária e a manutenção da Petrobrás como patrimônio público brasileiro (demandas que poderiam ser incorporadas pela nossa presidenta, por sinal).

Hoje em dia, a agenda oculta também deixa alguns sinais. Nas primeiras marolas de instabilidade política do governo, especuladores causam oscilações nas bolsas de valores brasileiras, e congressistas propõem reformas para a exploração privada do pré-sal.

Além disso, a parceria entre os grandes grupos de comunicação do Brasil e USIA se dava também de maneira direta, por meio de contratos secretos, como o que pagava mensalmente pessoalmente a Assis Chateaubriand (chefe dos Diários Associados) pelo menos 12 mil dólares mensais, para reprodução dos filmes, programas de rádio e notícias de jornal (na sua maioria, apócrifas), ao longo dos anos 50, como mostra o documento exibido.

Nas ocasiões em que o pagamento atrasava, Chateaubriand deixava claro ao governo americano que ele continuaria a noticiar os conteúdos indicados, “por sua própria conta, se necessário, porque considera[va] a eficiência do programa, de suma importância”.

1

Reprodução/Foto-RN Lista dos Jornais e Revistas que não eram considerado não-comunistas no Brasil

Classificação de jornais e revistas não-comunistas no Brasil em documento norte-americano de 1958. Crédito: Nara II, RG 306, Declassified NND 988085, Records of the United States Information Agency, Office of Research and Analysis; Research Notes; 1958-1962, 1958: RN-1 THRU 1958: RN-58, Stack area 230, Row 046, compartment 36, Shelf 02 – , Entry A1-1029, Box 1, ARC# 1074117, "RN-6-58, Selected List of Important Non-Communist Newspapers and Magazines in Latin America, January 27, 1958".

O próprio governo norte-americano identificava as orientações políticas dos grandes grupos: O Globo era “pró-americano, anticomunista, conservador, influente”, O Estado de S. Paulo e a então Folha da Manhã eram “pró-EUA, anticomunista e conservador”. Por isso, mesmo sem o possível apoio da USIA, eles provavelmente continuariam a impor suas linhas editoriais à opinião pública brasileira. Como fazem até hoje.

Os motivos dessa cobertura conservadora, pró-americana e anticomunista, segundo uma própria pesquisa encomendada pela USIA em abril de 1964, intitulada Como os profissionais da mídia de massa afetam o processo político e porque eles agem dessa maneira para alcançar o efeito desejado era simples, e ainda extremamente atual: “Os jornais politicamente importantes do Brasil não são instituições impessoais. A maioria reflete suas opiniões gerais de acordo com a posição de seu dono, que circula entre os círculos sociais mais altos. O resultado disso é que as ideias são normalmente as clássicas liberais, ao invés das marxistas, e os seus interesses normalmente são conservadores, ao invés de revolucionários. Os jornalistas são independentes até onde o diretor permitir”.

Ainda dominantes no oligopólio dos meios de comunicação até hoje, os mesmos grupos e suas histórias são combatidos desigualmente por jornais, blogs e revistas, que tentando equilibrar as visões da grande imprensa, por seu lado muitas vezes desequilibram suas análises, também parciais.

O importante é notar que as histórias cotidianas dos jornais somente foram devidamente confrontadas pelo tempo e pela análise histórica mais distanciada, após duros anos de ditadura, infinitas violações de direitos humanos e sociais e depredação dos patrimônios nacionais pelos donos de poder nacionais e internacionais.

O poder político imediato da imprensa e de suas grandes corporações ainda continua no Brasil, refletindo grandes interesses e valores pequenos das famílias que dominam os meios de comunicações e influenciam a opinião pública brasileira. Essa é uma discussão chave que não pode ser mais ignorada pelos grupos políticos que pretendem revolucionar o país. Morou?

*Fernando Santomauro é membro do GR-RI, doutor em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (PUC-SP, Unesp e Unicamp), Coordenador de Relações Internacionais da Prefeitura de Guarulhos, e autor do livro A Atuação Política da Agência de Informação dos Estados Unidos no Brasil (1953-1964), a ser lançado pela Editora Unesp em 2016.