Assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes joga luz sobre vínculos entre milícias e o governo brasileiro
ROTANEWS176 E POR ESTADÃO CONTEÚDO 27/04/2019 09h00 Por Vanessa Barbara
SÃO PAULO – Há pouco mais de um ano, Marielle Franco (PSOL), da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, foi assassinada com quatro tiros na cabeça e no pescoço ao voltar para casa depois de um evento, quando um carro parou à frente do seu e alguém abriu fogo, matando a vereadora e o seu motorista, Anderson Gomes. Foi um trabalho de profissional. Marielle era negra, feminista, ativista de movimentos sociais, defensora dos direitos humanos. Não tinha medo de abordar temas sensíveis: o uso da violência do Estado nas favelas ou o envolvimento da polícia e dos políticos em grupos paramilitares do Rio.
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Reprodução/Foto-RN176 Imagem de Marielle Franco, no mesmo local em que vereadora foi morta a tiros no Rio de Janeiro Foto: Ricardo Moraes / Reuters
Em março, a polícia prendeu dois suspeitos, ambos ex-policiais militares. O suposto autor dos disparos, Ronnie Lessa, tinha se aposentado depois de ficar ferido no ataque de um carro bomba; os investigadores afirmam que, então, ele passou a trabalhar como matador de aluguel e traficante de armas para uma das milícias mais poderosas do Rio de Janeiro, o Escritório do Crime. O outro suspeito, Élcio Vieira de Queiroz, havia sido expulso da força por suspeita de fazer a segurança de uma casa de jogos ilegal. Ambos negaram qualquer envolvimento nos crimes.
Mas quem ordenou o assassinato? É aí que a coisa fica confusa. Tão confusa que, no ano passado, a polícia federal decidiu apurar a investigação do assassinato, depois das acusações de que havia sido sistematicamente obstruída por membros da milícia, funcionários do governo e políticos. Em novembro, o então ministro da Segurança Pública afirmou que existia “mais do que uma certeza” de que gente poderosa esta envolvida no crime.
A força tarefa federal vasculhou as residências de um ex-deputado estadual e de um oficial da polícia federal da ativa. Até o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, foi investigado por seus vínculos com ambos os suspeitos dos assassinatos. Ele e Lessa eram vizinhos em um condomínio de luxo à beira-mar no Rio de Janeiro, e o seu filho mais jovem certa ocasião namorou a filha de Lessa. Há também uma fotografia de Bolsonaro ao lado de Queiroz. Ele negou conhecer os homens. Mas o que mais preocupa é a aberta simpatia do presidente e de sua família pelos paramilitares.
Milícias
As milícias estabeleceram-se nas favelas do Rio de Janeiro no fim dos anos 90 e início de 2000, sob o pretexto de proteger os moradores dos traficantes de drogas. Elas são constituídas em geral por policiais da ativa e da reserva que assumem o controle das comunidades e extorquem dinheiro de cidadãos e comerciantes. Um relatório acadêmico de 2013 concluiu que, das cerca de mil favelas da cidade, 45% são controladas por grupos de milícias e 37%, por gangues do tráfico.
Nos 27 anos durante os quais foi deputado federal, Bolsonaro apoiou repetidas vezes os esquadrões da morte e as milícias. “Enquanto o Estado não tiver a coragem de adotar a pena de morte, os esquadrões da morte, na minha opinião, são muito bem-vindos”, afirmou em 2003 o hoje presidente. Em uma entrevista de 2008, ele declarou que o governo deveria apoiar as milícias e possivelmente legalizá-las, porque elas “oferecem segurança e dessa maneira podem manter a ordem e a disciplina em suas comunidades”.
O filho mais velho de Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro, revelou recentemente que mantém contatos com um ex-capitão da polícia militar, Adriano Magalhães da Nóbrega, suposto chefe do Escritório do Crime. A mulher e a mãe de Nóbrega trabalharam durante anos no escritório de Flávio Bolsonaro quando ele foi deputado estadual do Rio de Janeiro.
O senador declarou que as duas mulheres foram contratadas por outras pessoas e que ele estava sendo vítima de uma campanha de difamação. Mas também elogiou por duas vezes Nóbrega na Assembleia Legislativa do Rio por seu trabalho como policial, concedendo-lhe a mais alta honraria da Assembleia — a Medalha de Tiradentes — embora ele continuasse na cadeia, acusado de homicídio. A vitima do crime era morador de uma favela que acabara de denunciar crimes de tortura e extorsão supostamente cometidos pelo seu esquadrão policial. Quando Nóbrega foi considerado culpado e condenado a 19 anos de prisão, Jair Bolsonaro o defendeu no Congresso, afirmando que ele era um “policial brilhante” e exigiu uma revisão da condenação. Nóbrega foi solto graças a um recurso.
Em 2015, Flávio Bolsonaro foi o único legislador que votou contra a criação de uma comissão de inquérito para investigar fraudes em “autos de resistência” — mortes pela polícia relatadas como atos em legítima defesa. Ele afirmou que o inquérito colocaria uma “faca na garganta” da polícia. Em 2008, ele falou da “felicidade” das pessoas “que vivem nestas comunidades, supostamente dominadas pelas milícias”. Por fim, no ano passado, ele foi o único legislador que votou contra a concessão da Medalha Tiradentes a Marielle Franco.
Registros bancários mostram um depósito em dinheiro de 100.000 reais na conta do suposto assassino de Marielle. Quem ordenou o crime? E por quê? Até onde vai a influência das gangues paramilitares na polícia e na política brasileiras? Estas perguntas caem no silêncio enquanto o país continua sendo um dos lugares mais mortais do mundo para os defensores dos direitos humanos? A situação só poderá piorar (em um tweet de 2016, ele os comparou a “estrume”) e aplaudiu as ações dos esquadrões da morte. Aparentemente, afinal de contas, não há necessidade de legalizar as milícias no Brasil. Hoje, tem-se a impressão de que os grupos paramilitares não estão agindo apenas como um Estado paralelo — eles são o Estado. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA