Autor de estátua de Borba Gato defendeu sua criação: “o povo ama minha obra”

ROTANEWS176 E POR ESTADÃO 29/07/2021 11:08                                                                                          Por Carlos Eduardo Entini – Acervo Estadão

Julio Guerra disse que críticos não entendiam arte popular e que gostava da piada que estátua era corintiana

 

Reprodução/Foto-RN176 O artista plástico Julio Guerra diante da sua obra ‘Monumento a Borba Gato’ em 1995.  Foto: Denise Adams/Estadão

Centro de um debate desde que um grupo tentou incendiá-la, a estátua de Borba Gato é alvo de críticas –  tanto pela sua estética e, mais recentemente, pelo seu significado – desde a inauguração do monumento, em 27 de janeiro de 1963. A inauguração da obra do escultor Júlio Guerra com a imagem do bandeirante aconteceu com atraso, pois fora planejada para 1960 como comemoração ao quarto centenário de Santo Amaro, que foi município independente até 1935, quando se tornou um bairro da cidade de São Paulo. Borba Gato foi escolhido como tema do monumento por ter nascido na região em 1649.

Na edição de 3 de janeiro de 1972, o Jornal da Tarde abriu espaço ao artista Júlio Guerra para saber o que pensava o criador da obra diante das críticas, naquela época apenas por razões estéticas. Com o título, “Defenda-se, Júlio Guerra”, a reportagem não assinada apontava os apelidos da estátua no sobretítulo: “Acusações contra a estátua de Borba Gato: mostrumento, bonecão, boi parado, Pedre Cícero Paulista!”

Arte popular – Para o autor do monumento, “só os que se dizem intelectuais, falam mal do meu boneco. O povo ama minha obra”. Segundo Guerra os críticos não a entendiam a por causa das cores e do estilo que, para ele, se assemelhavam à arte popular. “Se elas conhecessem a arte popular dariam maior valor. Ele é muito parecido com as figuras de barro da arte popular brasileira. E ninguém viu isso, nem mesmo os críticos de arte”.

A defesa da sua estátua colorida e com linhas austeras de 40 toneladas continua: “Detesto cemitério e os monumentos que parecem túmulos em praça pública. O meu Borba Gato não é isso, porque é colorido, alegre, folclórico. Ele se harmoniza com a paisagem que o cerca. Falam que suas linhas são muito retas. Ora, um bandeirante tem que ser austero, tem que ter dignidade. O meu Borba Gato não é um bailarino”.

Reprodução/Foto-RN176 Reportagem do Jornal da Tarde de 1972 sobre a estátua de Borba Gato e seu autor Júlio Guerra. Foto: Acervo Estadão

No outro texto da página, “Apresente-se, Sr. Catedrático”, no qual o artista contava sua trajetória, Júlio Guerra fala de como as críticas tornaram a obra mais famosa e de como a estátua virou um símbolo da cidade.

“Os intelectuais que não gostam da minha obra, só me fazem um favor: de tanto criticar a o Borba Gato tornaram-na muito conhecida. Tanto que ele é o próprio símbolo de Santo Amaro e ponto de referência de muita coisa. Além de ter influenciado a publicidade e o comércio. Há lojas, farmácias e postos, tudo com o símbolo de Borba Gato. Meu boneco já foi anúncio de página inteira na jornal O Estado de S. Paulo. E até sêlo do correio êle já virou.”

Estátua corintiana – De todas as piadas e críticas sobre a obra, o artista só aceitava uma: a de que ela era corintiana, “sei que essa gente acende velas para ele quando o Corinthians joga”, explicou. A piada se sustentava pelo fato da cor da camisa da estátua ser feita de mármome branco e preto e por estar perto da casa do jogador Rivelino.

Reprodução/Foto-RN176 Júlio Guerra em sua casa com miniatura de sua estátua de Borba Gato em 2000. Foto: Celso Junior/Estadão

Julio Guerra começou a carreira de artista na década de 30, quando se formou em escultura na Escola Paulista de Belas Artes, de onde saiu professor. Sobre dar aulas, o artista declarou não gostar da tarefa. “Sou professor catedrático de escultura, mas não gosto de dar aulas. A técnica é necessária, mas atrapalha muito a criação do artista. Detesto a técnica quando domina o artista. Ele deve trabalhar sem nenhuma ligação com que sejá lá o que for”. Em 1939 ganhou um prêmio e viajou pela Europa e América do Sul. De 1942 a 1964, Guerra foi escolhido por Brecheret para ajudar na modelagem do Monumento a Duque de Caxias.

Mãe Preta – O artista plástico, nascido e falecido no bairro de Santo Amaro (1912-2001), tem dez obras, entre estátuas e paineis, na cidade de São Paulo segundo O inventário de Obras de Arte em Logradouros da Cidade de São Paulo. Outro trabalho famoso de Guerra é o Monumento à Mãe Preta, localizado no Largo do Paiçandu. A estátua, inaugurada em 25 de janeiro de 1955, é uma homenagem às amas-de-leite escravizadas que amamamentavam os filhos das famílias a que serviam.

Reprodução/Foto-RN176 Foto da estátua de Borba Gato com marcas da diagramação do jornal em 1980.  Foto: Acervo Estadão

Leia abaixo a íntegra da reportagem publicada no Jornal da Tarde em 3 de janeiro de 1972.

Defenda-se, Júlio Guerra

“O povo ama a minha obra”; meu Borba Gato não é bailarino”; “mas concordo: Borba é corintiano”.

Julio Guerra conhece todos os nomes e todas as piadas que fazem com sua obra mais famosa O Borba Gato que em Santo Amaro, perto da rua da Paz e da Casa de Rivelino.

– Só os que se dizem intelectuais, falam mal do meu boneco. O povo ama minha obra. Fico até comovido quando alguém acende velas diante das minhas obras: o Borba Gato, a Mãe Preta, o São Paulo (esta diante do túnel da avenida 9 de julho), São Pedro (perto da Sears Paraíso) ou o Monumento aos Romeiros, ainda inacabado.

Se falam mal da escultura de Julio, há os que levam a sério sua obra, como os estudantes que vão estudar a maneira como ele foi feito, os materiais empregados, etc.

O Borba Gato aceita todas as críticas. Êle só fica vermelho de raiva quando dizem que foi feito de pastilhas e não de pedra cortada e polida, uma a uma.

A ideia de construir o Borba Gato começou há quase quinze anos, quando Santo Amaro pretendia homenagear “um de seus filhos ilustres (Borba nasceu lá) no quarto centenário da cidade, em 1960.

– O terreno onde estava o Borba Gato era grande; agora foi reduzido e a estatua-monumento está num triângulo. O maior incentivador da ideia foi Scalamandré Sobrinho, ex-deputado e Secretário da Saúde, com muito prestigio politico em Santo Amaro.

Julio faz questão de esclarecer:

– O boneco foi feito por mim, por um carpinteiro e um ajudante de pedreiro. Levamos seis meses, trabalhando diáriamente. As pessoas diziam que ele ia cair. Está la há dez anos. (O Borba Gato foi inaugurado dia 28 de janeiro de 1962.)

Para construí-lo, Julio gastou 20 toneladas de gesso (modelagem), um trilho de bonde que segura os braços e várias toneladas de pedra colorida que vieram de São Carlos. A figura tem 10 metros de altura, além dos dois da base. Pesa quarenta toneladas. O gibão (espécie de paleto) é feito com pedras vermelhas; o culote, com amarelas; as mãos e o rosto são de mármore rosa (veio de Portugal), e a camisa branca e preta (marmore do Paraná).

– Por causa das cores da camisa e por estar perto da casa do Rivelino é que muita gente. diz que tambem o Borba Gato é corintiano. Eu acho graça, concordo. Sei que essa gente acende velas para ele quando o Corintians ganha um jôgo.

Para construir o Borba Gato, Julio Guerra levou cinco anos desde os estudos e modelagem, até a inauguração, feita dois anos depois do prazo previsto.

– Não sei porque há gente que detesta minha obra. Se elas conhecessem a arte popular dariam maior valor. Ele é muito parecido com as figuras de barro da arte popular brasileira. E ninguém viu isso, nem mesmo os críticos de arte. Meu Borba Gato parece um boneco inflado, você não acha?

Julio Guerra fala de outros escultores, talvez para justificar o valor e importância de sua obra:

– Gosto dos escultores que viveram sete séculos antes de Cristo, na Grécia. Eles foram os precursores dos gregos clássicos; eram espontâneos e não tinham nenhum compromisso com a civilização. O artista daquêle tempo fazia arte para si e não para agradar um grupo ou os poderosos da época. Depois dêles, só gosto dos etruscos que foram os precursores dos romanos.

E a frase final, vem quase como um apêlo para que quem odeia passe a gostar de Borba Gato:

– Detesto cemitério e os monumentos que parecem túmulos em praça pública. O meu Borba Gato não é isso, porque é colorido, alegre, folclórico. Ele se harmoniza com a paisagem que o cerca. Falam que suas linhas são muito retas. Ora, um bandeirante tem que ser austero, tem que ter dignidade. O meu Borba Gato não é um bailarino.

Reprodução/Foto-RN176 O artista plástico Julio Guerra em seu ateliê no bairro de Santo Amaro em 1971.  Foto: Acervo Estadão

Apresente-se, Sr. Catedrático

Debaixo da televisão, um presépio confuso: as figuras não têm proporção, os carneiros são maiores que as pessoas ou as casinhas. Nas paredes, algumas pinturas ingênuas, cenas antigas da cidade de Santo Amaro antigo. E o cheiro de môfo, misturado com avencas, uma mesa de madeira rústica onde estão, lado a lado, uma máquina de escrever antiquíssima (Urania) e um volume azul da Summa Artis de José Pijoan, velho livro de História da Arte, editado em Madrid. Nas paredes, um mural Ingênuo. Júlio Guerra serve o café, abre uma portinhola e o cheiro de mofo começa a sair da sala. Olha o presépio, e se desculpa:

– Não tenho jelto para pequenas peças. Não fui eu quem fêz ésse presépio. Só sei fazer grandes figuras.

O interesse de Júlio pelas artes visuais começou muito cedo e “por acaso”. Ele frequentava, no começo do século (Julio tem 60 anos) o “Bar e Bilhares Benedito Miranda” e lia a coleção da revista “O Malho”, uma coleção de 1907 até 1915.

– Aprendi muito com o bar e com a revista. No bar eu via um grupo humano maravilhoso que ia jogar no bicho; um jogo honesto, naquela época. Até as mulheres participavam. Enquanto ouvia os comentários políticos eu lia, também, a revista O Malho. Gostava dos poemas de Olegário Mariano e das Ilustrações de Luiz Peixoto. Depois desse primeiro aprendizado com o desenho de Peixoto, Júlio fol estudar escultura na Escola Paulista de Belas Artes, que naquele tempo se chamava Academia de Belas Artes de São Paulo e funcionava na rua Rêgo Freitas.

Reprodução/Foto-RN176 Anúncio de loja de carro com Borba Gato no jornal em 16/9/1971.  Foto: Acervo Estadão

– Em 1939 ganhei meu primeiro grande prêmio, uma viagem à Europa e América do Sul. Sou professor catedrático de escultura, mas não gosto de dar aulas. A técnica é necessária, mas atrapalha multo a criação do artista. Detesto a técnica quando domina o artista. Ele deve trabalhar sem nenhuma ligação com seja lá o que for, esquecido das questões técnicas.

Depois da viagem, Júlio foi escolhido, por Brecheret, para ajudá-lo na modelagem do mo numento a Caxias, hoje colocado perto da rodoviária, na Praça Princesa Isabel. Brecheret e Júlio trabalharam juntas de 1942 a 1946, tempo que durou a modelagem em barro, depois em gêsso e finalmente o bronze.

– Os intelectuais que não gostam da minha obra, só me fazem um favor: de tanto criticar a o Borba Gato tornaram-na muito conhecida. Tanto que ele é o próprio símbolo de Santo Amaro e ponto de referência de muita coisa. Além de ter influenciado a publicidade e o comércio. Há lojas, farmácias e postos, tudo com o símbolo de Borba Gato. Meu boneco já foi anúncio de página inteira na jornal O Estado de S. Paulo. E até sêlo do correio êle já virou.”