Como antiga ‘Martalândia’ virou reduto de Nunes, segundo eleitores: ‘PT já não é mais um partido de esquerda’

ROTANEWS176 13/10/2024 13:35

 

Reprodução/Foto-RN176 Ednilson Santos: filiado ao PT há 24 anos, mas não vota mais no partido desde 2010

O funcionário público e comerciante Ednilson Santos, 40, é filiado ao PT há 24 anos. Mas já não vota na sigla desde 2010.

“O partido não serve mais aos interesses da sociedade”, diz ele. “Hoje voto em quem tem a melhor proposta para nós.”

Santos vive e trabalha na região de Marsilac, no extremo sul da cidade de São Paulo.

Os bairros que compõem a região têm um histórico de votar nos candidatos do PT nas eleições presidenciais e municipais – ou em Marta Suplicy, se a ex-prefeita pelo partido e atual vice de Boulos estiver na disputa.

No entanto, neste ano, não foi isso que aconteceu. Quem mais recebeu votos ali foi o prefeito e candidato à reeleição Ricardo Nunes (MDB), em quem Santos votou no primeiro turno e diz que votará novamente no segundo turno, no próximo dia 27.

“Ele conseguiu dar sequência a um trabalho que já vinha sendo feito e, além disso, fica longe de polêmicas”, afirmou.

O resultado foi um revés para a campanha de Guilherme Boulos (PSOL). Seus estrategistas se fiavam tanto em Marta como cabo eleitoral como também na força do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ali.

Em bairros da zona sul, Lula obteve cerca de um terço do eleitorado da cidade inteira, índices decisivos para sua vitória de 53,54% dos votos, contra 46,46% de Jair Bolsonaro, na cidade de São Paulo em 2022.

A zona sul foi onde Marta obteve sua maior votação quando eleita prefeita, em 2000.

Em 2016, quando ela concorreu pelo MDB e a disputa foi vencida facilmente por João Dória (PSDB), os únicos lugares em que Marta saiu vitoriosa foram no extremo da zona sul: Parelheiros e Grajaú.

Foi nessa região que ela deixou uma marca até hoje lembrada por moradores, como a construção dos primeiros Centros Educacionais Unificados (CEU) e o Bilhete Único do transporte público, que integra metrô, ônibus e trens.

“A Marta tem uma marca forte aqui, com as creches, os CEUs, os corredores de ônibus. Não há fake news capaz de derrubar isso”, afirmou Fernando José de Souza, 52, conhecido como Fernando Bike.

Ele vive em Marsilac há quase 30 anos, e já foi filiado ao PT. Hoje, milita pelo PSOL. Para ele, quem se lembra dos feitos de Marta “é um público mais velho”. “Os jovens não sabem.”

Mas é possível reviver ali esse apelo? A campanha de Boulos acredita que sim, especialmente aumentando a até agora discreta presença de Marta e também de Lula.

Analistas apontam, no entanto, os limites da estratégia para um segundo turno em que Nunes larga com grande vantagem – e enquanto nomes à esquerda dentro e fora do PT discutem como reconquistar as periferias das grandes cidades e digerem os resultados gerais das municipais.

De acordo com levantamento do Instituto Datafolha publicado na quinta-feira (10/10), Nunes tem 55% das intenções de voto, enquanto Boulos tem 33%.

A pesquisa trouxe ainda um dado preocupante para a campanha de Boulos e Marta: 31% dos que declaram ter votado em Lula em 2022 dizem preferir Nunes.

A memória de Marta ainda basta?

A figura de Marta Suplicy, que foi prefeita entre 2001 e 2004 pelo PT, é bastante consolidada na memória do paulistano.

Em uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha em março deste ano, a ex-prefeita petista pontuou mais que qualquer outro político em um levantamento sobre o melhor prefeito da cidade nos últimos 40 anos.

No total, 16% dos entrevistados mencionam a petista, seguida por Paulo Maluf, com 13%, e, empatados com 11%, Mario Covas, Luiza Erundina e Fernando Haddad.

Mas, ao menos no primeiro turno, a presença de Marta não foi capaz de assegurar uma distância mais folgada entre Boulos e o terceiro colocado, Pablo Marçal (PRTB). Houve entre os dois uma diferença de 56.853 votos, menos de 1% do total de votos da cidade.

O fato de ter Marta Suplicy como vice também não garantiu a maioria dos votos em bairros que historicamente votavam no PT.

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O mapa do primeiro turno na cidade de São Paulo mostrou que os bairros onde Boulos teve mais votos estão, em sua maioria, no centro e em alguns pontos da zona leste e da zona sudoeste, onde ele mora.

Ainda assim, para a dona de casa Patrícia Fernandes Luz, 33, que vive em Marsilac há 15 anos, a figura de Marta Suplicy na chapa é “muito positiva”. “Muita gente votou no Boulos por causa dela”, diz.

Mas, de acordo com um levantamento realizado pelo jornal O Globo com base no registro digital dos votos das urnas de São Paulo, 48,1 mil eleitores apertaram o 13, que é o número do PT, no primeiro turno, o que levou à anulação do voto.

De um lado, isso representaria quase o dobro dos votos que separaram Nunes de Boulos no primeiro turno.

Reprodução/Foto-RN176 Patrícia Fernandes: “O PT já não é mais um partido de esquerda”

Por outro lado, mostra o recall que Marta ainda tem, de acordo com Tathiana Chicarino, cientista política e coordenadora da graduação de sociologia e política da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESP) de São Paulo.

“Quase 50 mil eleitores votaram 13, isso mostra o quanto a Marta ainda é vista como uma presença importante”, afirma.

Outra possibilidade levantada para a grande quantidade de votos no 13 seria uma possível crença, entre muitos eleitores, de que Boulos pertence ao mesmo partido que Lula, que apoia sua candidatura.

Mas a especialista pondera que a validação da petista tem obstáculos no caminho. “Marta tem a melhor avaliação de gestão dos últimos 40 anos, no entanto, não foi reeleita”, diz Tathiana.

Ela se refere à campanha de 2004 para a prefeitura, quando a petista tinha o apoio do presidente Lula – que estava ainda em seu primeiro mandato e não havia sido afetado por escândalos de corrupção como o Mensalão e a Lava Jato – e mesmo assim, perdeu.

Depois disso, Marta ainda tentou se eleger como prefeita duas vezes e não conseguiu. “Ou seja, essa transferência do prestígio não é tão simples”, afirma Tathiana.

‘Martalândia’ e o tempo

Marta filiou-se ao PT um ano após a fundação do partido, em 1981, e ficou até 2015. Naquele ano, como senadora, ela votou a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), rompendo completamente com a sigla.

Depois disso, passou pelo MDB, onde tentou por duas vezes se eleger prefeita em São Paulo, e pelo Solidariedade, formando parte do governo de Bruno Covas (PSDB), e depois de Nunes, como secretária de Assuntos Internacionais e Federativos.

Durante a campanha, tanto Nunes quanto Boulos não comentaram a participação dela no governo do emedebista.

No início deste ano, Marta voltou ao PT, incensada em um ato político pelo presidente Lula, que já articulava a chapa com Boulos em São Paulo.

No fim de fevereiro, ainda como pré-candidatos, Marta e Boulos escolheram o bairro de Parelheiros para realizar a primeira agenda pública de pré-campanha. A região, que faz divisa com Marsilac, é apelidada de “Martalândia”, devido ao desempenho da ex-prefeita no local na eleição de 2000. Na campanha, no entanto, foi discreta. Poucas entrevistas, poucos eventos.

Neste ano, Nunes obteve pouco mais de 4 mil votos ali.

Tathiana afirma que essa diferença reflete mais o sucesso da campanha de Nunes e menos um suposto fracasso na campanha de Boulos.

“A região é reduto do Nunes, e, além disso, houve muita participação do presidente da Câmara dos Vereadores, Milton Leite (União Brasil), na campanha.”

Vereador há mais de 20 anos, Leite tem seu principal reduto na zona sul de São Paulo.

É por isso que a briga para ver quem impõe sua cor nos mapas da cidade definiram parte da estratégia de campanha para o segundo turno.

A participação da família Tatto, políticos históricos do PT em São Paulo, com forte presença na zona sul, faz parte do plano do partido para impor sua cor.

“Vamos dar ênfase maior nas realizações dos governos do PT na cidade, em especial o da Marta”, afirmou à BBC News Brasil o deputado federal Nilto Tatto (PT).

O resgate do legado do PT na cidade, especialmente o da Marta, esbarra, no entanto, no tempo. Seu governo ocorreu há mais de 20 anos. Muitos dos eleitores jovens – a grande base de Pablo Marçal – não se lembram desses feitos.

“Desde quando a Marta saiu da prefeitura houve uma mudança do eleitorado”, lembra Tathiana. “Cabe à campanha agora identificar quem são esses eleitores possíveis de serem convertidos.”

A batalha da “reconquista” da periferia não se dá só em São Paulo.

Em Fortaleza, o candidato apoiado por Bolsonaro, André Fernandes (PL), venceu o petista Evandro Leitão (PT) em boa parte das zonas periféricas, redutos consolidados do PT ou aliados desde os anos 2000.

Nesta semana, Lara Mesquita, pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getulio Vargas (FGV Cepesp), avaliou em entrevista à BBC News Brasil que os resultados das eleições municipais nas grandes cidades, onde o PL de Bolsonaro foi bem, podem estar desenhando “uma mudança de prioridades dos eleitores mais pobres”.

Formação da zona sul e esquerda

Reprodução/Foto-RN176 Fernando Bike, morador de Marsilac e liderança política do bairro

Fernando Bike, morador de Marsilac e liderança política do bairro, diz que a história da região com a esquerda começa em 1988, quando Luiza Erundina, hoje no PSOL, é eleita prefeita pelo PT. “A Erundina atendia à necessidade das pessoas”, diz ele.

Em 1992, Paulo Maluf (PP) é eleito e dá início a uma série de obras na cidade. Muitas delas, feitas após a remoção de moradores dos terrenos.

“Essas pessoas removidas acabaram vindo para a franja da cidade, ou seja, o extremo sul, fortalecendo os movimentos de moradia e criando um ranço com a direita”, diz Fernando. Para ele, é por isso que a região sempre foi um reduto histórico do PT.

Com o passar do tempo, no entanto, Fernando acredita que o partido se distanciou das suas bases, abrindo espaço para que outras forças disputassem o eleitorado. “O PT virou uma máquina de eleição e se esqueceu da formação política. Por isso foi perdendo a base”, diz.

“Por outro lado, Nunes tem influência aqui devido às creches que ele inaugurou e pelas pavimentações que ele, estrategicamente, fez em todo o bairro”, diz. “O sonho de consumo aqui era ter asfalto na rua.”

Patrícia é um exemplo dessa distância que Fernando diz existir entre o PT e seus eleitores. “Eu voto no PT, mas não é mais um partido de esquerda. Eu não vejo diferença com o governo Lula, a conta de luz não baixou, a comida não está mais barata”, afirma.

A presença de Lula na campanha, que no primeiro turno se limitou a uma caminhada na avenida Paulista na véspera da eleição, além de programas na TV, tem sido medida na balança.

“O Lula pode ajudar a puxar mais o voto da esquerda para o Boulos, mas, por outro lado, pode também repelir o eleitor que votou na Tábata Amaral (PSB) ou no Marçal”, afirma o cientista político Rafael Cortez.

A disputa pelo eleitor de Marçal também está na estratégia de ambas as campanhas. O PT utilizará o sentimento de indignação para atrair esse voto.

“Os eleitores do Marçal estão indignados e quem está indignado quer mudança”, afirmou à BBC News Brasil a vereadora reeleita Luna Zarattini (PT).

Patrícia explica esse sentimento vivido na pele. Para ela, quem votou em Marçal é movido pelo “sentimento de revolta”. “Ele diz que as pessoas vão ficar ricas. Nós estamos na periferia, todo mundo quer ficar rico. É claro que vão votar nele.”

FONTE: BBC NEWS BRASIL