Como Dr. Bumbum conseguia atuar com mentiras no currículo e sem especialização

POLÍCIA 

Denis Furtado não tinha qualquer residência médica ou curso de pós-graduação reconhecido pelo MEC

ROTANEWS176 E POR BBC NEWS BRASIL 21/07/2018 10h30                                                                            Nathalia Passarinho – Da BBC News Brasil em Londres

Denis Furtado, conhecido como Dr. Bumbum, nunca fez residência médica. Não tem título de especialista em qualquer área estabelecida da Medicina, como dermatologia e cirurgia plástica. No currículo, informou ter pós-graduações em instituições que, na verdade, não são reconhecidas pelo Ministério da Educação.

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Reprodução/Foto-RN176  Denis Furtado Definir imagem destacadasó tinha registro para atuar em Brasília e Goiás, não no Rio de Janeiro, onde ele fez o procedimento estético em Lilian Calixto, que morreu alguns horas depois. No currículo, ele dizia ter cursos de pós-graduação, mas a BBC News Brasil verificou que eles não tinham registro no MEC / Imagem: Antonio Lacerda Foto: BBC News Brasil

Mesmo assim, ele oferecia procedimentos – preenchimento de glúteo e botox – geralmente realizados por dermatologistas e cirurgiões plásticos que, para obter o título de especialistas, precisaram passar por anos de residência médica e aprovação em prova oral e escrita.

Furtado foi preso na quinta-feira junto com a mãe, Maria de Fátima Barros. Os dois estavam foragidos desde o início da semana e eram procurados pela polícia. O médico é investigado pela morte de uma de suas pacientes, a bancária Lilian Calixto, de 46 anos, após um procedimento estético de preenchimento dos glúteos.

Mas por que, afinal, Dr. Bumbum podia atuar sem especialização?

Segundo o Conselho Federal de Medicina, não há, na legislação brasileira, nada que impeça um médico formado de atuar em qualquer área da Medicina, da mais simples à mais complexa.

O que nenhum médico pode fazer é se apresentar como “especialista” em alguma modalidade reconhecida da Medicina, se ele não cumprir os requisitos das sociedades de cada especialidade.

Para ser cirurgião plástico, por exemplo, é preciso fazer três anos de residência em cirurgia geral e outros dois em cirurgia plástica, além de passar por prova escrita e oral da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Para ser dermatologista, também é preciso fazer residência ou especialização em instituição credenciada, e passar por prova.

O médico Denis Furtado se apresentava nas redes sociais como “médico pós-graduado em dermatologia pela ISBRAE, modulação hormonal pela BARM, e medicina estética pela ASIME”.

De acordo com o Ministério da Educação, das três instituições citadas, só a ISBRAE (Instituto Brasileiro de Ensino) pode oferecer cursos de pós-graduação, por ser associada a uma faculdade. Mas a ISBRAE informou à BBC News Brasil que Furtado começou o curso de dermatologia e não terminou. Portanto, ele não possui certificação de lá.

Segundo o MEC, nem a BARM (Brasil-American Academy for Integrative and Regenerative Medicine) nem a ASIME (Associação Internacional de Medicina Estética) tem registro como instituições de ensino superior – condição para oferecer curso de pós-graduação. Ao procurar contato com a ASIME, a BBC News Brasil foi informada de que essa associação não existe mais.

A BBC News Brasil tentou ligar no telefone disponibilizado no site da BARM mas o número não funciona. Também encaminhou e-mail, mas não obteve resposta.

Reprodução/Foto-RN176 O Conselho Regional de Medicina do DF cassou o registro de Furtado após a notícia da morte da paciente. Caso será submetido ao Conselho Federal de Medicina / Imagem: Reprodução Foto: BBC News Brasil

 Por que alguns médicos fogem da especialização?

O cirurgião plástico Sergio Bocardo, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, destaca que a especialização leva tempo e custos. “São quase 12 anos entre faculdade e residência para a cirurgia plástica.” Portanto, alguns médicos tentam cortar caminho fazendo cursos não licenciados pelo MEC, em áreas não reconhecidas da Medicina.

Furtado, por exemplo, se dizia especialista em “medicina estética”, que não é uma especialidade reconhecida – não há cursos de residência, nem sociedade que regule esse setor.

“No Brasil, a legislação não é categórica sobre isso. O médico, a princípio, pode fazer qualquer procedimento, mas se houver complicação pode ser considerado imperito”, disse Bocardo, que é chefe do serviço de cirurgia plástica do Hospital Ipanema, no Rio de Janeiro.

“E a fiscalização é falha. Tem muitos cursos que não são aprovados pelo MEC, nem pelas sociedades de medicina. Alguns são cursos de curta duração ou online. E tudo o que é focado em estética atrai público. Pessoas que não têm especialização às vezes vão para essa área em busca de dinheiro.”

Como fazer o ‘controle de qualidade’ dos médicos

Como não há lei que impeça um médico sem especialização de atuar, os conselhos de medicina focam em tentar evitar propaganda enganosa, para que os pacientes não sejam manipulados na hora de contratar o profissional.

Um médico não pode, por exemplo, se anunciar como especialista nem mentir aos pacientes sobre a formação acadêmica. Além disso, não pode dar garantias de resultados. Até as famosas fotos de “antes e depois” podem ser enquadrada nessas proibições, segundo o Conselho Federal de Medicina.

A pena para quem infringe as chamadas “regras de publicidade médica” vai de advertência até a cassação do registro profissional, que significa o fim da carreira, já que o profissional fica para sempre impedido de exercer a medicina.

O Conselho Federal de Medicina também informou que, para atuar em qualquer Estado, o médico precisa pedir registro no Conselho Regional de Medicina daquela localidade. Um dos objetivos é permitir que o paciente possa prestar queixa em caso de complicações ou problemas.

Reprodução/Foto-RN176 Denis Furtado cita três pós-graduações no currículo, mas ele não concluiu o curso em uma das instituições mencionadas e as outras duas não têm registro no MEC / Imagem: Polícia Militar do Rio de Janeiro Foto: BBC News Brasil

Furtado tinha registro para atuar como médico em Brasília e Goiás, mas não no Rio de Janeiro, onde o procedimento de Lilian Calixto foi feito. O cirurgião Sérgio Bocardo recomenda que, ao fazer preenchimentos ou procedimentos estéticos mais invasivos, o paciente cheque se o médico fez residência em dermatologia ou cirurgia plástica, ou verificar se fez cursos em instituições reconhecidas pelo MEC.

“Muitas vezes esses médicos têm formação de final de semana, não têm formação de anatomia. E todo procedimento, por mais simples que seja, oferece riscos.” Ele diz que já recebeu dezenas de pacientes com deformidades causadas por procedimentos mal feitos.

“É comum observar deformidade e até necrose de nariz e lábil. Tem preenchimento na área dos olhos que se não for feito direito pode levar à cegueira”, alerta.

Riscos do preenchimento de glúteo com PMMA

No caso de Lilian Calixto, a suspeita é de que ela tenha tido uma embolia pulmonar por conta do uso excessivo de PMMA (polimetilmetacrilato), no procedimento de preenchimento de glúteo. A substância, composta por microesferas de um material parecido com plástico, é aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas é indicada somente para uso em pequenas quantidades.

Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, o PMMA não deve ser usado em áreas extensas do corpo, como glúteos.

“Era uma substância pensada para usar em pequenas quantidades, normalmente na face. Mas começaram a aplicar no bumbum. Para ter efeito, injetam no músculo, e o músculo tem vasos sanguíneos mais calibroso. Se injetar dentro do vaso, a substância pode ir para a corrente sanguínea e você pode ter AVC ou embolia pulmonar”, explicou o médico Sergio Bocardo.

Reprodução/Foto-RN176 A bancária Lilian Calixto viajou de Cuiabá até o Rio para fazer preenchimento de glúteo com Denis Furtado / Imagem: Reprodução/Facebook Foto: BBC News Brasil

Além de aparentemente ter usado uma substância considerada inadequada para o procedimento, Furtado fez a bioplastia em Lilian Calixto no apartamento dele, na Barra da Tijuca. A paciente teria passado mal algumas horas depois e foi levada ao hospital Barra D’Or pelo próprio Furtado, no sábado à noite. No domingo, ela morreu.

Em vídeo postado no seu perfil de Instagram, que tem mais de 650 mil seguidores, Denis Furtado diz ter feito mais de 9 mil bioplastias – intervenções à base de injeções para remodelar o corpo.

Bocardo afirma que, em tese, preenchimentos mais simples, como Botox facial, deveriam ser feitos por dermatologistas. Preenchimento de glúteo só deveria ser feito por cirurgião plástico, por ser mais delicado e envolver uma área maior do corpo.

Ele também diz que a injeção no glúteo só deveria ser feita em ambiente hospitalar. “Todo procedimento tem risco, qualquer que seja. Portanto, tem que ser feito num local adequado. No caso do glúteo, por causa do volume do preenchimento, tem ser feito num hospital, no centro-cirúrgico”, afirmou o integrante da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.

“Injustiça”, diz Dr. Bumbum em vídeo

Num vídeo postado nas redes sociais antes de ser preso, Denis Furtado se diz alvo de “injustiça”. “É um mistério a causa da morte, mas é uma injustiça o que estão falando de mim. É uma injustiça falarem que eu não sou médico, eu tenho CRM ativo. É uma injustiça dizerem que é um procedimento que não é habilitado”, afirmou.

Furtado afirmou também que Lilian Calixto estava “muito bem” depois da bioplastia.

“Aconteceu uma fatalidade, mas uma fatalidade que acontece com qualquer médico. Uma paciente após procedimento de glúteo, que eu já realizei 9 mil, ela saiu do consultório muito bem. Umas seis horas após eu a levei para o hospital e ela chegou ao óbito.”

Segundo o médico, a paciente estava lúcida ao chegar ao Hospital Barra D’Or. “Ela terminou o procedimento por volta de 19h20. Ela desceu escada, conversou, riu, conversou com todo mundo e se sentindo muito bem. Passou oito, nove horas, dez horas, onze horas. Às 23h30 ela sentiu-se mal, sentiu uma queda de pressão”, detalhou.

“Eu falei, vamos ao hospital. Chegando lá, ela estava andando e lúcida. E depois ela veio a falecer horas após, dentro do hospital. Eu quero saber o que é isso”.

O médico ainda afirma que fugiu da polícia porque se assustou ao ser abordado por “homens armados”. “A minha demora nesse pronunciamento, quatro dias depois, é porque sofri um atentado com perseguição de carros, fuzil e tiros. Não sabia se era bandido ou represália da família da vítima. Mas estou sendo culpado de um crime que eu não cometi.”

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