Como é ser refugiado em um país de herança escravocrata como o Brasil?

ROTANEWS176 E POR CARTACAPITAL 22/06/2018 17h18                                                                                  Por Carol Scorce

Atendida pela Missão Paz, Prudence Kalambay Libonza fantasiava com país em telenovelas, mas sofreu racismo várias vezes

Arquivo pessoal

Reprodução/Foto-RN176 Congolesa conseguiu superar o pânico e o medo frutos das perseguições sofridas

Perseguição, conflitos e violência generalizada forçaram 69 milhões de pessoas em todo o mundo a deixarem suas casas e procurem abrigo em outras nacionalidades em 2017. Os dados são da Agência da ONU para Refugiados, e apontam que mais da metade desse deslocamento (52%) forçado foi feito por menores de idade. Esta é considerada a maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra.

Do total de deslocados, 25,4 milhões eram refugiados, 40 milhões deslocados internamente, e 3,1 milhões requerentes de asilo. Na América Latina o Brasil é o pais com maior número de refugiados e solicitantes de refúgio (148.645 em 2017).  Há no país 10.264 pessoas com status de refugiados, enquanto os demais obtiveram permissão temporária de residência, e pouco mais de 85 mil pedidos de refúgio estão sendo analisados pelo Ministério da Justiça.

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Em condições extremas, eles partem deixando para trás casa, parentes, amigos, profissões e a carregam consigo dor, sofrimento e angustia. Os traumas pessoais dos refugiados e de todos aqueles que são obrigados a deixar sua terra natal, se soma a tragédia coletiva dos milhares que enfrentam a guerra, a fome e a perseguição política. Permanecer no país de destino significa enfrentar os dramas do passado para dar lugar a um presente e futuro melhor.

Atendida pela Missão Paz em São Paulo, Prudence Kalambay Libonza saiu da República do Congo em 2006, fugindo de perseguições políticas. Ela atuava na política local, e ajudava mulheres que engravidavam antes e fora do casamento a não serem excluídas socialmente. O deslocamento de Prudence foi da fantasia das telenovelas a dura realidade de um  país preconceituoso e racista.

O caminho para o Brasil incluiu uma passagem por dois anos em Angola, país vizinho do Congo, onde Prudence aprendeu a falar português. “A vida era muito dura lá, eu via as novelas brasileiras e tinha o sonho de vir para cá. Em Angola eu tinha a sensação que iriam atrás de mim a qualquer momento, então eu achei melhor me separar pelo mar. Eu estava cansada e angustiada, não dormia, comia mal, mas tinha muita esperança com a vida aqui.”

A congolesa conseguiu o status de refugiada poucos meses após desembarcar no Rio de Janeiro em 2008, época em que para ela o Brasil estava aberto a receber e acolher pessoas com problemas. Prudência tinha dificuldade para dormir e síndrome do pânico, o que se somava ao medo de não conseguir uma vida melhor no país novo. Os filhos a ajudaram a revitalizar a coragem, além da ajuda humanitária recebida no Brasil.

“Minha primeira crise aqui foi com o preconceito. Eu e meus filhos fomos chamados de macacos muitas vezes. Minha autoestima ficou totalmente abalada, mas eu tinha de fazê-los (os filhos) acreditar que poderíamos superar. Aprendi a viver no Brasil e a me cuidar, e isso faz diferença para conseguir ter uma vida boa. Conseguir documentos é o início de uma travessia muito mais profunda.”

A República Democrática do Congo é a terceira colocada no ranking do deslocamento forçado. São 4,4 milhões de congoloses deslocados internamente, 620.800 refugiados e 136.400 requerentes de asilo.

A doutora em psicologia clínica e coordenadora da ONG HabitareTereza Marques de Oliveira, parceira da Missão Paz, em São Paulo, e afirma que um dos principais desafios é fazer com que o processo de escuta os ajude a reorientar os sentimentos mais presentes, como vergonha, impotência, desamparo, humilhação e desorientação.

“Os imigrantes são fortes ,corajosos e cheios de esperança. Buscam melhores condições  de vida.Embora saibam que terão que enfrentar condições adversas para garantir minimamente a própria sobrevivência . No trabalho com eles acolhemos o sofrimento pelas perdas e também pela incerteza da vida que começa no país de acolhida. Procuramos então , resgatar os sonhos,a força de vida para começar uma nova história, sem contudo abrir mão de suas raízes”, conta.

Tereza conta ainda que é muito comum os refugiados e imigrantes apresentarem desorganização psíquica assim que chegam, e em alguns casos surtos psicóticos. “Eles perdem tantas referências que muitas vezes não sabem bem que são. Temos de fazê-los recuperar o sentimento de si. O trauma de ter visto familiares morrerem, de serem perseguidos, faz eles sentirem algo como dormir e acordar sem saber direito onde está e quem é. Eles ficam despersonalizados. E a maneira como eles são acolhidos é fundamental para que esse surto não progrida”, afirma a psicanalista.

O passado escravagista e xenofóbico brasileiro afeta de maneira decisiva em como o refugiado irá sentir e lidar com a própria dor, segundo o pesquisador da área Pedro Paulo Bicalho, do Conselho Federal de Psicologia. Bicalho afirma que a aflição não é apenas psíquica e individual, mas um sofrimento associado a falta de políticas públicas de acolhimento.

“O Brasil tem leis razoáveis para que os imigrantes e refugiados venham para cá, mas não para que permaneçam. Isso tem muito a ver com a construção subjetiva da nossa sociedade, que é escravagista e muito preconceituosa. Por isso é tão comum, como estamos vendo em Roraima – porta de entrada para venezuelanos -, um discurso fomentado pelas próprias autoridades locais de repelir o outro, alguém estranho a nós e que deve ir embora o mais rápido possível.”