BBC BRASIL E ROTANEWS176 04/09/2016 13h46
Uma vida repleta de virtudes heroicas, exemplos de fé e devoção a Deus. Some-se a isso dois milagres comprovados e estão cumpridos basicamente os requisitos mínimos para se criar um santo da Igreja Católica.
O processo, no entanto, depende de uma máquina burocrática complexa em que qualquer desvio de caráter pode custar o título ao candidato – e a certeza de que, invariavelmente, cairá no esquecimento dos fiéis.
Na Igreja Católica, a canonização normalmente leva tempo e depende de inúmeras circunstâncias legais, mas, de tão azeitada, a engrenagem foi apelidada de “fábrica de santos”.
É o que acaba de acontecer a Madre Teresa de Calcutá, a freira católica que ficou famosa por ajudar os pobres na cidade indiana, que foi canonizada pelo papa Francisco neste domingo.
Ela fundou as Missionárias da Caridade, congregação que atualmente tem mais de 3 mil freiras espalhadas pelo mundo, ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1979 e morreu aos 87 anos, em 1997.
Cinco anos depois, o papa João Paulo 2º aceitou seu primeiro milagre – a cura de uma mulher de uma tribo de Bangladesh com um tumor abdominal -, o que abriu caminho para sua beatificação em 2003.
O papa Francisco reconheceu em 2015 um segundo milagre, envolvendo um brasileiro que tinha tumores no cérebro e foi declarado curado em 2008.
Reprodução/Foto-RN176 Organização criada pela madre administra 19 centros e reúne mais de 3 mil freiras em todo o mundo Foto: EFE
‘Ministério da Santidade’
Cabe à Congregação para as Causas dos Santos a função de “regular o exercício do culto divino e de estudar as causas dos santos”. Por esse “ministério da santidade”, dirigido pelo cardeal italiano Angelo Amato, passam as “fichas” dos candidatos à canonização.
No entanto, a palavra final sempre é do papa, o único com poder para decretar, de fato, a santidade de um homem ou mulher. Nas últimas décadas, esse poder vem sendo exercido cada vez com mais assiduidade.
Durante seu papado, João Paulo 2º nomeou mais de 480 santos, mais de quatro vezes o que restante dos pontífices do século 20, juntos, canonizaram.
Apesar de o ritmo ter sido reduzido por Bento 16, que canonizou 44 santos durante seu curto papado, Francisco dá sinais claros de querer retomá-lo. Só em seu primeiro ano como pontífice, o argentino realizou mais de dez canonizações.
Em uma delas, Francisco canonizou de uma vez só 800 mártires, os chamados “mártires de Otranto”, que, por razões metodológicas, são contabilizados como uma única canonização.
Segundo especialistas, essa proliferação dos santos se deveu à reforma do processo de canonização nas últimas décadas. O próprio papa João Paulo 2º tratou de simplificá-lo em 1983.
Enquanto alguns criticam a multiplicação e o ritmo acelerado das canonizações, considerando que isso diminui o valor da santidade, a Igreja busca estabelecer “exemplos de vida” mais próximos dos cristãos contemporâneos.
Quem pode ser santo?
A santidade, como tantos outros temas relacionados com a religião, é uma questão de fé.
“Qualquer um pode ser canonizado, independentemente de sua origem, condição social ou raça… É preciso apenas que tenha tido uma vida de santidade, que tenha vivido as virtudes cristãs de um modo heroico e que haja ausência de obstáculos insuperáveis”, afirmou à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC, o bispo Santiago Blanco, juiz delegado da Congregação para as Causas dos Santos na Argentina.
No entanto, para que o processo de canonização seja iniciado, o nome do candidato deve ser proposto à diocese, geralmente do lugar onde morreu. Este é considerado o primeiro “filtro” rumo à canonização.
“Todo cristão pode propôr o nome de alguém, mas geralmente os nomes são propostos por dioceses, comunidades religiosas de homens ou mulheres ou grupos de leigos”, disse à BBC Mundo Gerardo Sanchéz, juiz supremo para as Causas dos Santos do arcebispado da Cidade do México.
Sem obstáculos
“Em primeiro lugar, a história do candidato é analisada, incluindo depoimentos de pessoas que conviveram com ele. Em seguida, o bispo pergunta às outras dioceses do país se o caso deve ser aberto. E depois disso a petição segue a Roma onde recebe o nihil obstat , uma espécie de certificado de que não há obstáculos insuperáveis que tornem impossível o início do caso”, acrescentou Blanco.
Após esta etapa, a primeira das duas etapas do processo de canonização, começa a “fase diocesana”, que, uma vez concluída, dá lugar à “fase romana”.
Na fase diocesana, o bispo do local que indicou o nome para a canonização forma um tribunal ou comissão de investigação que estuda em detalhes a história do indivíduo, de sua família e do contexto em que ele viveu.
“Se for um caso atual, de 30 anos para cá, é preciso haver citação de testemunhas. Se for um caso histórico, o processo se baseia em documentos históricos”, diz Gerardo Sánchez.
“Por fim, os documentos são transferidos a Roma para o início da fase romana. Um relator é nomeado pela Igreja para estudar a documentação e elaborar uma positio , espécie de tese de doutorado na que deve expôr argumentos que demonstrem que a pessoa viveu heroicamente as virtudes da fé.”
Milagres
Para concluir o processo de canonização, a Igreja pede a comprovação de dois milagres atribuídos ao possível santo.
No entanto, o papa pode dispensá-lo desta condição. Isso aconteceu, por exemplo, com João 23, que nomeou São Francisco com apenas um milagre reconhecido.
De acordo com Santiago Blanco, os “mártires” também estão isentos dessa premissa, uma vez que, segundo a Igreja, eles “morreram como resultado de sua fé”.
A verificação de um milagre é talvez um dos problemas mais complexos e controversos para a Igreja. Ela acontece em um processo separado, mas também em duas fases, uma na diocese que indicou o nome do candidato a santo e uma em Roma.
A fase romana inclui a revisão do caso por um tribunal médico e por outro, de peritos teólogos, antes que uma comissão de bispos e cardeais faça sua avaliação. “Se o parecer for favorável, cabe apenas ao Santo Padre assinar o decreto de canonização”, diz Blanco.
O que significa ser santo?
Ao ser canonizada, a pessoa é considerada um modelo para a Igreja em todo o mundo. Enquanto o culto dos beatos é local, o dos santos pode ser exercido em qualquer lugar.
“Teologicamente, (a canonização) significa que podemos garantir sem risco de errar que essa pessoa está nos céus”, disse à BBC Fermín Labarga, professor de Direito Canônico na Universidade de Navarra, na Espanha.
“Ao canonizar, o papa exerce a sua infalibilidade (dogma da Igreja segundo o qual o papa não se engana em questões de fé e moral). Não resta dúvida de que isto é um fato do ponto de vista da fé”, conclui Labarga.