Como o desmate ajuda vírus mortais a saltar de animais para humanos

ROTANEWS176 E POR PLANETA 25/06/2020 13:01                                                                                                      Por Amy Y. Vittor & Gabriel Zorello Laporta & Maria Anice Mureb Sallum* | The Conversation**

A história do novo coronavírus lembra a de outros microrganismos causadores de doenças como febre amarela, malária e ebola e está ligada à redução do habitat de animais selvagens

Reprodução/Foto-RN176 Comércio ilegal de pangolins em Myanmar: o animal, caçado por sua carne, pele e escamas, teria participação no salto do novo coronavírus para os seres humanos. Crédito: Dan Bennett/Wikimedia

 

A pandemia de coronavírus, supostamente originária de morcegos e pangolins, pôs o risco de vírus que saltam da vida selvagem para os seres humanos em um foco persistente.

Esses saltos geralmente acontecem nas bordas das florestas tropicais do mundo, onde o desmatamento está cada vez mais colocando as pessoas em contato com os habitats naturais dos animais. Febre amarela, malária, encefalite equina venezuelana, ebola – todos esses patógenos se espalharam de uma espécie para outra nas margens das florestas.

Como médicos e biólogos especializados em doenças infecciosas, estudamos essas e outras zoonoses à medida que elas se espalham pela África, Ásia e Américas. Descobrimos que o desmatamento tem sido um tema comum.

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Mais da metade do desmatamento tropical do mundo é impulsionado por quatro commodities: carne bovina, soja, óleo de palma e produtos de madeira. Eles substituem florestas tropicais maduras e com biodiversidade por monoculturas e pastagens. Como a floresta é degradada aos poucos, os animais que ainda vivem em fragmentos isolados da vegetação natural lutam para existir. Quando os assentamentos humanos invadem essas florestas, o contato humano-vida selvagem pode aumentar e novos animais oportunistas também podem migrar.

A propagação resultante da doença mostra a interconectividade dos habitats naturais, dos animais que neles habitam e dos seres humanos.

Febre amarela: macacos, humanos e mosquitos famintos

A febre amarela, uma infecção viral transmitida por mosquitos, interrompeu o progresso no Canal do Panamá em 1900 e moldou a história das cidades da costa do Atlântico, da Filadélfia ao Rio de Janeiro. Embora uma vacina contra a febre amarela esteja disponível desde a década de 1930, a doença continua a atingir 200 mil pessoas por ano, um terço das quais morre, principalmente na África Ocidental.

O vírus que a causa vive em primatas. Ele é transmitido por mosquitos que tendem a habitar no alto da copa das árvores onde esses primatas vivem.

Reprodução/Foto-RN176 Ambulância puxada a cavalo em Nova Orleans (EUA), em ação durante surto de febre amarela na cidade: a doença faz parte da história das cidades do litoral do Oceano Atlântico. Crédito: Wikimedia

No início dos anos 1990, um surto de febre amarela foi relatado pela primeira vez no vale de Kerio, no Quênia, onde o desmatamento havia fragmentado a floresta. Entre 2016 e 2018, a América do Sul registrou seu maior número de casos de febre amarela em décadas. Ele resultou em cerca de 2 mil casos e centenas de mortes. O impacto foi grave na extremamente vulnerável Mata Atlântica do Brasil – um hotspot da biodiversidade que encolheu para 7% de sua cobertura florestal original.

Demonstrou-se que o encolhimento do habitat concentra bugios – um dos principais hospedeiros da febre amarela na América do Sul. Um estudo sobre a densidade de primatas no Quênia demonstrou ainda que a fragmentação florestal levou a uma densidade maior de primatas, o que, por sua vez, levou os patógenos a se tornarem mais prevalentes.

O desmatamento resultou em manchas de floresta que concentraram os primatas hospedeiros e favoreceram os mosquitos que poderiam transmitir o vírus aos seres humanos.

Malária: humanos também podem infectar a vida selvagem

Assim como os patógenos da natureza podem pular para os seres humanos, estes podem infectar a vida selvagem.

A malária falciparum mata centenas de milhares de pessoas anualmente, especialmente na África. Mas na Mata Atlântica do Brasil também encontramos uma taxa surpreendentemente alta de Plasmodium falciparum (o parasita da malária responsável pela malária grave) circulando na ausência de humanos. Isso levanta a possibilidade de que esse parasita esteja infectando macacos do Novo Mundo. Em outras partes da Amazônia, as espécies de macacos foram naturalmente infectadas. Nos dois casos, o desmatamento poderia ter facilitado a infecção cruzada.

Reprodução/Foto-RN176 Mosquito transmissor da malária: fortemente ligado ao habitat desmatado. Crédito: 41330/Pixabay

Nós e outros cientistas documentamos extensivamente as associações entre desmatamento e malária na Amazônia e mostramos como os mosquitos portadores de malária e os casos de malária humana estão fortemente ligados ao habitat desmatado.

Outro tipo de protozoário causador de malária, o Plasmodium knowlesi, conhecido por circular entre macacos, tornou-se uma preocupação para a saúde humana há mais de uma década no sudeste da Ásia. Vários estudos mostraram que as áreas que sustentam taxas mais altas de perda de florestas também apresentaram taxas mais altas de infecções humanas. Eles revelaram também que os vetores de mosquitos e macacos hospedeiros abrangem uma ampla gama de habitats, incluindo florestas em desequilíbrio.

Encefalite equina venezuelana: roedores em movimento

A encefalite equina venezuelana é outro vírus transmitido por mosquitos que, segundo estimativas, leva dezenas a centenas de milhares de seres humanos a desenvolver doenças febris todos os anos. Infecções graves podem levar à encefalite e até à morte.

Na província de Darién, no Panamá, descobrimos que duas espécies de roedores apresentavam taxas particularmente altas de infecção pelo vírus da encefalite equina venezuelana, levando-nos a suspeitar que essas espécies possam ser os hospedeiros na natureza.

Uma das espécies, o roedor Proechimys semispinosus (rato-espinhoso-centro-americano), também foi implicada em outros estudos. A outra, Zygodontomys brevicauda (rato-da-cana), também está envolvida na transmissão de doenças zoonóticas, como o hantavírus e, possivelmente, o vírus Madariaga, um vírus de encefalite emergente.

Embora o rato-espinhoso-centro-americano seja amplamente encontrado nas florestas tropicais das Américas, ele ocupa rapidamente fragmentos florestais e onde os vegetais voltam a crescer. O rato-da-cana prefere o habitat às margens das florestas e nos limites dos pastos.

À medida que o desmatamento nessa região progride, esses dois roedores podem ocupar fragmentos florestais, pastagens de gado e o rebrotamento que surge quando os campos ficam em repouso. Os mosquitos também ocupam essas áreas e podem levar o vírus aos seres humanos e aos animais.

Ebola: doença à beira da floresta

As doenças transmitidas por vetores não são as únicas zoonoses sensíveis ao desmatamento. O ebola foi descrito pela primeira vez em 1976, mas os surtos se tornaram mais comuns. O surto de 2014-2016 matou mais de 11 mil pessoas na África Ocidental e chamou a atenção para doenças que podem se espalhar da vida selvagem para o homem.

O ciclo natural de transmissão do vírus ebola permanece indescritível. Os morcegos foram implicados, com possíveis animais adicionais no solo mantendo a transmissão “silenciosa” entre surtos humanos.

Reprodução/Foto-RN176 Evacuação de paciente de ebola na República Democrática do Congo: surtos vêm se tornando mais comuns. Crédito:Joel G. Breman, M.D., D.T.P.H., Dr. Lyle Conrad, USCDCP/Pixnio

Embora a natureza exata da transmissão ainda não seja conhecida, vários estudos mostraram que o desmatamento e a fragmentação florestal foram associados a surtos entre 2004 e 2014. Além de possivelmente concentrar os hospedeiros do ebola na natureza, a fragmentação pode servir como um corredor para que os animais portadores de patógenos espalhem o vírus por grandes áreas e pode aumentar o contato humano com esses animais ao longo da borda da floresta.

E o coronavírus?

Embora a origem do surto do vírus SARS-CoV-2 não tenha sido comprovada, um vírus geneticamente semelhante foi detectado em morcegos Rhinolophus affinis e pangolins-malaios.

A variedade do pangolim-malaio – que está criticamente ameaçada – se sobrepõe ao morcego Rhinolophus affinis nas florestas do sudeste da Ásia, onde ele vive em cavidades maduras de árvores. À medida que o habitat da floresta diminui, os pangolins também podem experimentar aumento da densidade e suscetibilidade a patógenos?

De fato, em pequenos fragmentos de floresta urbana na Malásia, o pangolim-malaio foi detectado, embora a diversidade geral de mamíferos fosse muito menor do que um trecho de comparação de florestas contíguas. Isso mostra que esse animal é capaz de persistir em florestas fragmentadas, onde pode aumentar o contato com humanos ou outros animais que podem abrigar vírus potencialmente zoonóticos, como morcegos. O pangolim-malaio é caçado clandestinamente por sua carne, pele e escamas e importado ilegalmente da Malásia e do Vietnã para a China. Um úmido mercado em Wuhan que vende esses animais é considerado uma possível fonte da atual pandemia.

Prevenção de transbordamento zoonótico

Ainda existe muito que não sabemos sobre como os vírus saltam da vida selvagem para os seres humanos e o que pode levar a esse contato.

Fragmentos florestais e suas paisagens associadas que abrangem a borda da floresta, campos agrícolas e pastagens têm sido um tema repetido nas zoonoses tropicais. Enquanto muitas espécies desaparecem quando as florestas são derrubadas, outras conseguiram se adaptar. Aquelas que se adaptam podem se tornar mais concentradas, aumentando a taxa de infecções.

Dadas as evidências, fica claro que os humanos precisam equilibrar a produção de alimentos, commodities florestais e outros bens com a proteção das florestas tropicais. A conservação da vida selvagem pode manter seus patógenos sob controle, impedindo a propagação de zoonoses e, em última instância, beneficiando os seres humanos.

 

* Amy Y. Vittor é professora assistente de medicina da Universidade da Flórida (EUA); Gabriel Zorello Laporta é professor de biologia e doenças infecciosas da Faculdade de Medicina do ABC (Brasil); Maria Anice Mureb Sallum é professora de epidemiologia da Universidade de São Paulo (Brasil)

** Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.