Tradicionalmente, país sempre celebrou e tolerou, mesmo sob comando de governantes muçulmanos, a sexualidade e o erotismo – até a chegada dos britânicos.
ROTANEWS176 E BBC BRASIL.COM 03/11/2017 08:30
A celebração do Dia dos Namorados (ou Dia de São Valentim) causa tumultos todos os anos na Índia. De um lado, os namorados que não veem nada de mal em demonstrações públicas de afeto como trocar rosas e andar de mãos dadas. De outro, patrulhas formadas por hindus radicais que creem se tratar de uma falha moral grave, e que se dedicam a intimidar os casais.
Reprodução/Foto-RN176 Detalhe de um templo erótico em Khajuraho, na Índia central. Foto: BBCBrasil.com
A ação desses autoproclamados patrulheiros da moral contrasta com a ideia que muitos têm da Índia fora do país. Basta pensar que se trata do berço do Kama Sutra e lar de uma rica tradição em esculturas eróticas.
Reprodução/Foto-RN176 Uma mulher de burca admira esculturas eróticas em um templo Foto: BBCBrasil.com
“Na cosmovisão indiana, o universo foi criado pelo desejo cósmico. A sensualidade é parte do sagrado”, diz à BBC a historiadora da religião Madhu Khanna.
O prazer como um sentido da vida
Ela explica que o prazer é cultivado e parte do propósito da vida humana e de sua transcendência. “A sensualidade não é algo para se envergonhar, muito pelo contrário. Tem um papel muito importante para os indianos. Não apenas no sexo, mas como uma estética da vida”, diz Khanna.
Foi neste contexto que surgiram na Índia expressões de sensualidade que seriam impensáveis em outras culturas, inclusive para os ocidentais de hoje em dia.
Reprodução/Foto-RN176 Esculturas eróticas nos templos de Khahurajo, na Índia. Foto: BBCBrasil.com
O Kama Sutra, manual de práticas eróticas, foi compilado no século 3. E fala de práticas ainda mais antigas. “Kama, em sânscrito, não significa sexo, e sim prazer, desejo”, diz Nybdi Aditya Haksar, autor de uma tradução do livro.
O livro se concentra na busca por prazer em cada aspecto da existência. Haksar contextualiza: “Esta busca (pelo prazer) é apenas um dos três princípios da vida humana. Os outros são a busca da bondade e da virtude, e a busca da prosperidade e da riqueza”, diz ele.
Relevante até hoje
Dos sete capítulos que compõem o Kama Sutra, somente o segundo trata de sexo, propriamente. “É muito gráfico, explica com grande detalhe as posições que podem ser usadas na relação sexual”, diz Haksar à BBC Mundo (serviço em língua espanhola da BBC).
Sandhya Mulchandani, autora do livro O Kama Sutra para Mulheres , diz que apesar de algumas das posições parecem estranhas, muitos dos princípios do livro continuam válidos em nossos dias. “É um livro muito moderno em vários aspectos. Por exemplo, reconhece o desejo da mulher e o fato de que elas podem tomar o controle em uma relação sexual”, explica.
Reprodução/Foto-RN176 templos eróticos de Khajuraho, na Índia central. Foto: BBCBrasil.com
“O Kama Sutra é como uma revista que ensina os rapazes a ir a um encontro. Diz como comportar-se, recomenda que tomem banho, ponham roupas limpas, cortem as unhas, e mais importante, a escutar a mulher e não ser egoísta”, diz ela.
Mulchandani diz que o Kama Sutra só poderia ter surgido em uma cultura muito madura e tolerante, em que “se celebra a vida em toda a sua glória”.
Templos eróticos
Outra evidência desta abertura sexual no passado da Índia são os templos de Khajuraho.
As impressionantes esculturas em pedra de Khajuraho continuam espantando – e encantando – os visitantes nesta cidade na região central da Índia. Algumas representam ninfas voluptuosas em poses sugestivas. No entanto, outras mostram casais em posições sexuais incríveis e acrobáticas.
“São poucos os templos que têm essas esculturas eróticas. Representam posições sexuais como outras obras, de outras culturas, mostram homens em guerra”, explica Haksar.
Reprodução/Foto-RN176 Vista geral dos templos de Khajuraho. Foto: BBCBrasil.com
Assim como outros especialistas, Haksar diz que é errada a crença popular de que a repressão sexual na Índia começou quando ela esteve sob o domínio muçulmano, que perdurou por quase 300 anos. “O Império Mogol (do início do século 16 a meados do século 19), apesar de não ser tão aberto, permitiu o florescimento cultural da Índia e avalizou um grande refinamento nas artes”, diz a historiadora Khanna.
Ness período, os governantes eram islâmicos, mas isso não interferiu na vida diária dos habitantes da Índia. “A cultura islâmica teve momentos de maior abertura. Na Índia, a poesia persa produzida durante o período mogol, apesar de falar sobre a divindade, possui uma carga homoerótica”, diz Saleem Kidwai, especialista em história medieval e coautor do livro Amor Homossexual na Índia .
Reprodução/Foto-RN176 Hinduistas fundamentalistas queimando corações de tecido no dia dos namorados Foto: BBCBrasil.com
Imposição da Coroa britânica
A mudança na Índia, de celebrar o sexo a transformá-lo em tabu, é “um processo complexo, não muito fácil de explicar”, diz Kidwai. “Mas em linhas gerais, podemos dizer que é uma mudança da metade do século 19. Um ponto de referência é a revolta de 1857 contra a East British Company, que dominava a Índia”, diz.
A revolta foi reprimida violentamente e a Índia passou ao controle direto da Coroa britânica que passou a criar leis de acordo com os próprios valores, baseados à época na moralidade vitoriana. Este conjunto de normas, consolidado durante o reinado da rainha Vitória (1837-1901), “se caracterizava por uma moral muito puritana, com regras sobre a família e sobre como homens e mulheres deveriam conduzir-se”, diz Kidwai.
Reprodução/Foto-RN176 Um casal se abraça na orla da cidade de Bombai, na Índia Foto: BBCBrasil.com
Revisão cultural
“Uma parte da sociedade indiana, ao sentir-se fracassada e escravizada, começou a reexaminar a própria cultura e a imaginar quais mudanças deveriam ser feitas. Alguns, especialmente aqueles educados pelos britânicos, chegaram à conclusão de que a atitude indulgente em relação ao sexo era uma coisa ruim”, diz o historiador Kidwai.
“O colonialismo prejudicou muito nossa liberdade de pensamento”, afirma Khanna. “Não só na Índia, mas em todas as partes; quando as pessoas se sentiram mais ‘racionais’, começam a questionar suas tradições e mitos”, diz Mulchandani.
Reprodução/Foto-RN176 Representação dos deuses Krishna e Radha. Foto: BBCBrasil.com
Além das visões estrangeiras, há também algumas correntes mais estritas do hinduísmo que consideram o sexo um tabu. Entre estas correntes, está a que inspira o partido BJP, que hoje governa o país. As patrulhas de fundamentalistas que caçam namorados do dia de São Valentim são mais ativas nos Estados governados pelo partido.
“O hinduísmo é tradicionalmente aberto, mas alguns setores políticos de direita têm uma visão menos tolerante à sexualidade”, diz Kidwai.
Mulchandani diz que, apesar da celebração da sexualidade ser parte da cultura indiana, ela acabou sendo mais apreciada na esfera privada. “Posso ser um ser muito sexual, mas não posso demonstrá-lo publicamente”, diz ela.
A sensualidade, porém, é algo mais difícil de ocultar. “É da natureza da sociedade e do povo. Se expressa a todo momento na Índia”, diz Mulchandani.
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