ROTANEWS176 E BBC BRASIL 11/01/2016 11h01
Há dois séculos, Sarah Baartman morreu após passar anos sendo exibida em feiras europeias de “fenômenos bizarros humanos”. Agora, rumores de que sua vida poderia ser transformada em um filme de Hollywood estão causando polêmica.
Reprodução/Foto-RN176 Em outubro de 1810, Sarah Baartman foi levada da África do Sul à Grã-Bretanha para aparecer em espetáculos. (Foto SPL) Foto: Divulgação/BBC Brasil / BBCBrasil.com
Sarah Baartman morreu em 29 de dezembro de 1815, mas o show, sob uma perspectiva ainda mais macabra, continuou.
Seu cérebro, esqueleto e órgãos sexuais continuaram sendo exibidos em um museu de Paris até 1974. Seus restos mortais só retornaram à África em 2002, após a França concordar com um pedido feito por Nelson Mandela.
Ela foi levada para a Europa, aparentemente, sob promessas falsas por um médico britânico. Recebeu o nome artístico de “A Vênus Hotentote” e foi transformada em uma atração de circo em Londres e Paris, onde multidões observavam seu traseiro.
Hoje em dia, ela é considerada por muitos como símbolo da exploração e do racismo colonial, bem como da ridicularização das pessoas negras muitas vezes representadas como objetos.
Boatos
Recentemente, começou a correr um rumor de que a cantora Beyoncé estaria planejando escrever e protagonizar um filme sobre Baartman.
Os representantes da artista negaram essa informação, mas o burburinho foi suficiente para provocar preocupação.
Jean Burgess, chefe do grupo khoikhoi- a etnia de Baartman – disse que Beyoncé não conta com “a dignidade humana básica para ser digna de escrever a história de Sarah, menos ainda para interpretá-la”. Ela justificou que via com “arrogância” a suposta ideia de Beyoncé de “contar uma história que não pertence a ela” e sugeriu que a atriz fizesse um filme sobre indígenas americanos.
Já Jack Devnarain, presidente do Sindicato de Atores da África do Sul, disse que os cineastas têm “direito de contar a história de pessoas que as fascinam e não devemos nos opor a isso”.
Ao negar qualquer vínculo com o filme, o representante de Beyoncé ponderou que “esta é uma história importante que deve ser contada”.
História
A vida de Baartman foi marcada por penúrias.
Acredita-se que ela tenha nascido na Província Oriental do Cabo da África do Sul em 1789.
Sua mãe morreu quando ela tinha dois anos e seu pai, um criador de gado, morreu quando ela era adolescente.
Ela começou a trabalhar como empregada doméstica na Cidade do Cabo quando um colono holandês assassinou seu companheiro, com quem havia tido um bebê que também morreu.
Em outubro de 1810, apesar de ser analfabeta, ela supostamente assinou um contrato com o cirurgião inglês William Dunlop e o empresário Hendrik Cesars, dona da casa em que ela trabalhava, que disse que ela viajaria para a Inglaterra para aparecer em espetáculos.
Atração
Quando ela foi exibida em um estabelecimento em Piccadilly Circus, em Londres, causou fascinação.
“É preciso lembrar que, nesta época, nádegas grandes estavam na moda, e por isso muitas pessoas invejavam o que ela tinha naturalmente”, diz Rachel Holmes, autora de A Vênus Hotentote: vida e morte de Saartjle Baartman .
O motivo para isso é que Baartman, também conhecida como Sara ou Saartjie, tinha esteatopigia, uma condição genética que faz com que a pessoa tenha nádegas protuberantes devido à acumulação de gordura. Essa condição é mais frequente em mulheres e principalmente entre aquelas de origem africana.
Reprodução/Foto-RN176 A Venus de nádegas “belas” e as curvas de uma mulher ‘esteatopígica’ Foto: Divulgação/BBC Brasil / BBCBrasil.com
Mas a própria palavra é motivo de debate, porque, para muitos, seria racista o fato de ela sugerir que se uma mulher tem nádegas grandes e é negra, sofre de uma doença.
Já para as nádegas pequenas a palavra é ‘calipigia”, em referência à famosa estátua romana Vênus Calipigia – que significa ‘a Vênus das nádegas belas”.
Toda uma Vênus
No espetáculo, Baartman usava roupa justa e da cor da sua pele, contas e plumas, e fumava um cachimbo.
Clientes mais abastados podiam pagar por demonstrações privadas em suas casas, em que era permitido que os convidados a tocassem.
Os “empresários” de Baartman a apelidaram de “Vênus Hotentote” porque, nesta época, esse era o termo que os holandeses usavam para descrever os khoikhois e aos san, os principais membros de um importante grupo populacional africano, os khoisans.
Atualmente, o termo ‘hotentote’ é considerado pejorativo.
Livre ou assustada?
Nesta época, o império britânico já havia abolido o tráfico de escravos (em 1807), mas não a escravidão.
Mesmo assim, ativistas ficaram horrorizados com a forma como os empresários de Baartman a tratavam em Londres.
Eles foram processados judicialmente por deter Baartman contra sua vontade, mas foram declarados inocentes. A própria Baartman testemunhou a favor deles.
“Ainda não se sabe se Baartman foi forçada, como os defensores da abolição e os ativistas humanitários alegavam, ou se atuou por livre arbítrio”, diz o historiador Christer Petley, da Universidade de Southampton, na Inglaterra.
“Se eles a estavam obrigando a trabalhar, é possível que tenha se sentido intimidada demais para dizer a verdade no tribunal. Nunca saberemos.”
“O caso é complexo e a relação entre Baartman e seus chefes definitivamente não era igualitária.”
A caminho de Paris
Holmes destaca que o show de Baartman incluía dança e interpretação de vários instrumentos musicais, e diz que um público “sofisticado” em Londres – uma cidade em que as minorias étnicas não eram raras – não teriam se encantado por muito tempo com ela apenas pela sua cor.
De qualquer forma, com o tempo, o show da Vênus foi perdendo seu caráter de novidade e popularidade entre o público da capital, e por isso ela saiu em tour pela Grã-Bretanha e Irlanda.
Em 1814, foi para Paris com seu empresário, Cesars, e outra vez virou uma celebridade, que tomava coquetéis no Café de Paris e ia às festas da alta sociedade.
Cesars voltou para a África do Sul e Baartman caiu nas mãos de um “exibidor de animais” cujo nome artístico era Reaux.
Reprodução/Foto-RN176 Baartman conquistou fama novamente em Paris Foto: Getty / BBCBrasil.com
Ela bebia e fumava sem parar e, segundo Holmes, “provavelmente foi prostituída por ele”.
‘Grotesco’
Eventualmente, Baartman aceitou ser estudada e retratada por um grupo de cientistas e artistas, mas se recusou a aparecer completamente nua na frente deles.
Ela argumentava que isso estava além de sua dignidade: nunca havia feito isso em seus espetáculos.
Foi neste período que teve início o estudo que chegou a ser chamado de “ciência da raça”, diz Holmes.
Baartman morreu aos 26 anos de idade.
A causa foi descrita como “uma doença inflamatória e eruptiva”. Desde então, cogita-se que tenha sido resultado de uma pneumonia, sífilis ou alcoolismo.
O naturalista Georges Cuvier, que dançou com Baartman em um das festas de Reaux, fez um modelo de gesso de seu corpo antes de dissecá-lo.
Além disso, preservou seu esqueleto, pôs seu cérebro e seus órgãos genitais em frascos, que permaneceram expostos no Museu do Homem de Paris até 1974, algo que Holmes descreve como “grotesco”.
De volta para casa
“A dominação dos africanos foi explicada com ajuda da ciência, estabelecendo que os khoisan eram um grupo menos nobre no progresso da humanidade”, escreveu Natasha Gordon-Chipembere, editora de “Representação e feminilidade negra: o legado de Sarah Baartman”.
Após sua eleição em 1994 como presidente da África do Sul, Nelson Mandela solicitou a repatriação dos restos mortais de Baartman e o modelo de gesso feito por Cuvier.
O governo francês acabou aceitando o pedido e fez a devolução, em 2002.
Em agosto do mesmo ano, seus restos mortais foram enterrado em Hankey, província onde Baartman nasceu, 192 anos após ela sair com destino à Europa.
Vários livros já foram publicados sobre a maneira como ela foi tratada e sua transcendência cultural.
“Ela acabou se tornando um molde sobre a qual se desenvolvem múltiplas narrativas de exploração e sofrimento da mulher negra”, escreveu Gordon-Chipembere, que acha que, me meio à tudo isso, Baartman, “a mulher, permanece invisível”.
Em 2010, o filme Black Venus e o documentário The Life and Times of Sara Baartman contaram a história dela. Em 2014, a revista Paper botou na capa uma foto da celebridade americana Kim Kardashian balançando um copo de champanhe sobre suas nádegas avantajadas. Vários críticos reclamaram que a imagem lembrava desenhos retratando Baartman.
No ano passado, uma placa no local em que ela está enterrada em Hankey foi vandalizado com tinta branca. Isso ocorreu na mesma semana em que a Universidade da Cidade do Cabo retirou, após protestos, a estátua de Cecil Rhodes, um empresário e político do século 19, que declarou notoriamente que os britânicos seriam “a primeira raça no mundo”.
“As pessoas estão resolvendo sobre como querem lidar com essas questões”, diz Petley. “Muitas vezes elas foram ocultadas e chegou a hora de reavaliá-las”.