Covid-19: na ‘sobrevivência do mais apto’, sistema imunológico é a chave

ENQUANTO NÃO TEM VACINA –  

ROTANEWS176 E POR PLANETA 02/06/2020  22:00                                                                                                    Por Prakash Nagarkatti e Mitzi Nagarkatti* | The Conversation**

Enquanto não surgirem opções de tratamento eficazes, o combate ao coronavírus é protagonizado por nosso sistema imunológico

O que Darwin consideraria a melhor adaptação para se proteger contra o coronavírus? Crédito: Julia Margareth Cameron/Royal Photographic Society/Wikimedia

Charles Darwin popularizou o conceito de sobrevivência do mais apto como um mecanismo subjacente à seleção natural que impulsiona a evolução da vida. Organismos com genes mais adequados ao meio ambiente são selecionados para sobrevivência e os passam para a próxima geração.

Assim, quando uma infecção que o mundo nunca viu antes irrompe, o processo de seleção natural começa de novo.

No contexto da pandemia de coronavírus, quem é o “mais apto”?

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Essa é uma pergunta desafiadora. Mas, como pesquisadores de imunologia da Universidade da Carolina do Sul, podemos dizer que uma coisa é clara: sem opções de tratamento eficazes, a sobrevivência contra a infecção por coronavírus depende completamente da resposta imune do paciente.

Temos trabalhado em como a resposta imune é uma faca de dois gumes – por um lado, ajudando o hospedeiro a combater infecções, enquanto, por outro lado, causa danos significativos na forma de doenças autoimunes.

As duas fases da resposta imune

A resposta imune é como um carro. Para chegar a um destino com segurança, você precisa de um acelerador (fase 1) e um freio (fase 2) que estejam funcionando bem. Uma falha em qualquer uma das fases pode ter consequências significativas.

Uma resposta imune eficaz contra um agente infeccioso repousa no delicado equilíbrio de duas fases de ação. Quando um agente infeccioso ataca, o corpo inicia a fase 1, que promove a inflamação – um estado no qual uma variedade de células imunológicas se reúne no local da infecção para destruir o patógeno.

Isso é seguido pela fase 2, durante a qual as células imunes chamadas células T reguladoras suprimem a inflamação para que os tecidos infectados possam se recuperar completamente. Uma deficiência na primeira fase pode permitir o crescimento descontrolado do agente infeccioso, como vírus ou bactérias. Um defeito na segunda fase pode desencadear inflamação maciça, danos aos tecidos e morte.

Sistema comprometido

O coronavírus infecta as células ao se ligar a um receptor chamado enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), presente em muitos tecidos do corpo, incluindo o trato respiratório e o sistema cardiovascular. Essa infecção desencadeia uma resposta imune de fase 1, na qual as células B produtoras de anticorpos bombeiam anticorpos neutralizantes que podem se ligar ao vírus e impedir que ele se ligue ao receptor ACE2. Isso inibe o vírus de infectar mais células.

Durante a fase 1, as células imunológicas também produzem citocinas, um grupo de proteínas que recrutam outras células imunológicas e combatem infecções. Também se juntam à luta as células T assassinas que destroem as células infectadas pelo vírus, impedindo sua replicação.

Se o sistema imunológico estiver comprometido e funcionar mal durante a fase 1, o vírus poderá se replicar rapidamente. Pessoas com sistema imunológico comprometido incluem idosos, receptores de transplante de órgãos, pacientes com doenças autoimunes, pacientes com câncer em quimioterapia e indivíduos que nascem com doenças de imunodeficiência. Muitos desses indivíduos podem não produzir anticorpos suficientes ou células T assassinas para combater o vírus, o que permite que ele se multiplique sem controle e cause uma infecção grave.

Reprodução/Foto-RN176 Coronavírus ataca células humanas: defender-se da investida significa ter uma resposta imune apropriada nas duas fases de ação. Crédito: Niaid/Flickr

Lesão por inflamação

O aumento da replicação do vírus SARS-CoV-2 desencadeia complicações adicionais nos pulmões e outros órgãos.

Normalmente, existe uma grande variedade de microrganismos prejudiciais e benignos que vivem em harmonia nos pulmões. No entanto, à medida que o coronavírus se espalha, é provável que a infecção e a inflamação que se segue atrapalhem esse equilíbrio, permitindo que as bactérias nocivas presentes nos pulmões dominem. Isso leva ao desenvolvimento de pneumonia, na qual os sacos de ar dos pulmões, chamados alvéolos, ficam cheios de líquido ou pus, dificultando a respiração.

Isso desencadeia uma inflamação adicional nos pulmões, levando à síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), que é vista em um terço dos pacientes com covid-19. O sistema imunológico, incapaz de controlar a infecção viral e outros patógenos emergentes nos pulmões, monta uma resposta inflamatória ainda mais forte ao liberar mais citocinas, uma condição conhecida como “tempestade de citocinas”.

Nesse estágio, também é provável que a resposta imune da fase 2, destinada a suprimir a inflamação, falhe e não consiga controlar a tempestade de citocinas. Essas tempestades de citocinas podem desencadear fogo amigo – substâncias químicas destrutivas e corrosivas destinadas a destruir as células infectadas que são liberadas pelas células imunológicas do corpo, o que pode levar a graves danos aos pulmões e outros órgãos.

Além disso, como a ACE2 está presente em todo o corpo, as células T assassinas da fase 1 podem destruir as células infectadas por vírus em vários órgãos, causando uma destruição mais generalizada. Assim, pacientes que produzem citocinas e células T em excesso podem morrer devido a lesões, não apenas nos pulmões, mas também em outros órgãos, como coração e rins.

Equilíbrio do sistema imunológico

O cenário acima levanta várias questões sobre prevenção e tratamento da covid-19. Como a maioria das pessoas se recupera da infecção por coronavírus, é provável que uma vacina que desencadeie anticorpos neutralizadores e células T para impedir que o vírus entre nas células e se replique seja bem-sucedida. A chave para uma vacina eficaz é que ela não provoque inflamação excessiva.

Além disso, em pacientes que fazem a transição para uma forma mais grave, como SDRA e tempestade de citocinas, que geralmente é letal, há uma necessidade urgente de novos medicamentos anti-inflamatórios. Esses medicamentos podem suprimir amplamente a tempestade de citocinas sem causar supressão excessiva da resposta imune, permitindo assim que os pacientes eliminem o coronavírus sem danificar o pulmão e outros tecidos.

Pode haver apenas uma estreita janela de oportunidade durante a qual esses agentes imunossupressores podem ser efetivamente usados. Esses agentes não devem ser acionados em um estágio inicial da infecção, quando o paciente precisa do sistema imunológico para combatê-la, mas não podem demorar muito tempo após o desenvolvimento da SDRA, quando a inflamação maciça é incontrolável. Essa janela de tratamento anti-inflamatório pode ser determinada pelo monitoramento dos níveis de anticorpos e citocinas nos pacientes.

Equilíbrio delicado

Com a covid-19, os “mais aptos” são indivíduos que apresentam uma resposta imune normal das fases 1 e 2. Isso significa uma forte resposta imune na fase 1 para eliminar a infecção primária por coronavírus e inibir sua disseminação nos pulmões. Em seguida, deve ocorrer uma resposta ótima da fase 2 para evitar inflamação excessiva na forma de “tempestade de citocinas”.

Vacinas e tratamentos anti-inflamatórios precisam gerenciar cuidadosamente esse delicado ato de equilíbrio para obter sucesso.

Com esse coronavírus, não é fácil saber quem são os indivíduos mais aptos. Não são necessariamente os indivíduos mais jovens, mais fortes ou mais atléticos que têm a garantia de sobreviver a esse coronavírus. Os mais aptos são aqueles com a resposta imune “certa” que podem eliminar a infecção rapidamente sem aumentar a inflamação excessiva, o que pode ser fatal.

* Prakash Nagarkatti é vice-presidente de pesquisa e professor da Universidade da Carolina do Sul (EUA); Mitzi Nagarkatti é professora e presidente do Departamento de Patologia, Microbiologia e Imunologia da Universidade da Carolina do Sul.

**  Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.