BBC BRASILCOM E ROTANEWS176 13/08/2016 14:20 Marcia Carmo
Reprodução/Foto-RN176 Atletas dos dois países defenderam que disputa disputa ficasse restrita às quadras
Não é novidade que a rivalidade entre Brasil e Argentina aflore toda vez que os dois países disputem partidas de futebol. Mas na Rio 2016, as diferenças entre seus torcedores têm ido além – e chegado às arquibancadas de outros esportes.
Na segunda-feira, a animosidade envolveu até uma troca de socos entre dois homens durante uma partida de tênis entre um argentino e um… português (ou seja, nem se tratava de um jogo entre os dois países).
Dois dias depois, atletas brasileiros e argentinos de rúgbi tentaram aliviar a tensão: com suas respectivas camisetas oficiais, tiraram uma foto juntos. “Eles tiveram a iniciativa porque aqui, quando estão brasileiros e argentinos, surge aquele clima de Copa do Mundo, mas em vários esportes. Ou seja, (a rivalidade) passou a ser em várias frentes ao mesmo tempo”, disse uma fonte ligada à organização dos Jogos.
Neste sábado, havia o temor de confronto durante o jogo de basquete entre Brasil e Argentina – o que, felizmente, não havia se confirmado até a publicação desta reportagem.
As equipes se empenharam na busca pela paz: além de as bandeiras dos dois países entrarem juntas em quadra, os capitães dos dois times, Marcelinho Huertas e o argentino Scola, fizeram um apelo às torcidas. “Somos irmãos sul-americanos e pedimos que todos torçam civilizadamente e tenham espírito olímpico”, afirmou o brasileiro.
Reprodução/Foto-RN176 Nas arquibancadas, rivalidade entre Brasil e Argentina atinge grau máximo
Mas de onde vem essa rivalidade? A BBC Brasil ouviu historiadores, cientistas políticos e jornalistas de esporte dos dois países, que apresentaram quatro teses sobre a origem dessa disputa.
1) Animosidade política
Coautor de Brasil e Argentina: Um Ensaio de História Comparada (1850-2002), escrito em parceria com o argentino Fernando Devoto, o historiador e cientista político brasileiro Boris Fausto conta que essa rivalidade nasceu no campo político.
“Começou no século 19, quando os dois países foram se configurando como os dois mais importantes do Cone Sul, com pretensões à hegemonia, à superioridade. E isso se cristalizou”, explicou.
Para Fausto, essa rivalidade política acabou sendo assimilada pela sociedade – e, com isso, se descolando de fatos históricos e invadindo outros setores, como o futebol.
Reprodução/Foto-RN176 Disputa, antes atribuída, chegou a outros esportes na Olimpíada
O historiador define como “simplesmente boçal” esse grau de oposição no futebol. Lembra que muitas das provocações incluem, do lado brasileiro, piadas sobre um suposto “orgulho impressionante” dos argentinos – “coisa de outra época”, diz – e, do lado argentino, um racismo que “volta e meia aparece”.
“Na Copa do Mundo de 1978 (sediada pela Argentina), a eliminação do Brasil foi saudada como a derrota dos negros, dos macacos”, lembrou.
Mas torcedores argentinos mais jovens costumam ignorar aquelas expressões de 40 anos atrás.
2) Reedição de Portugal x Espanha
Para o cientista político argentino Rosendo Fraga, os dois países “herdaram a disputa entre Portugal e Espanha pelo controle do Rio da Prata” – o que, na história brasileira, culminou na Guerra da Cisplatina (1825-1828).
A exemplo de Fausto, ele cita a disputa política do século 19 como um momento determinante para a gestação desse clima de animosidade. “A Argentina foi se projetando como o único país da América do Sul com possibilidade de competir com o Brasil pela liderança regional.”
Fraga explicou que a tensão chegou ao ponto mais alto na primeira década do século passado, quando as relações diplomáticas entre os dois países foram interrompidas.
Embaixadores brasileiros que já serviram em Buenos Aires costumam lembrar que o nível de desconfiança era tal que existia até a preocupação com o tipo de bitola das linhas férreas para impedir que um país “invadisse” o outro – e por trem.
Reprodução/Foto-RN176 Rivalidade com brasileiros levou a briga durante jogo de argentino com português
Ao longo da história, os temores e desconfianças incluíram a área nuclear. Mas no fim os governos oficializaram o acordo de cooperação que acabou de completar 25 anos.
Como Fausto, Fraga acredita que o futebol, o esporte mais popular nos dois países, é uma espécie de “prolongamento” daquela disputa pela hegemonia na região.
3) Fruto das diferenças
O cientista político e escritor argentino Vicente Palermo, autor de La alegria y la pasión – relatos brasileños y argentinos en perspectiva comparada (“A alegria e a paixão – relatos brasileiros e argentinos em perspectiva comparada”), afirma que “historicamente era comum que argentinos olhassem para os brasileiros com olhar superior”.
A explicação estava nas diferenças entre as histórias do países – incluindo seu processo de colonização. A Argentina costumava ser definida como “mais homogênea e igualitária”; o Brasil, “mais diverso e desigual”.
Mas Palermo avalia que tudo mudou nos anos da ditadura argentina (1976-1983), quando o país, antes pujante e de classe média, passou a encarar problemas como a pobreza similares ao do Brasil, então culturalmente visto por lá como uma nação de “pobres e negros”.
Reprodução/Foto-RN176 Para escritor, ditadura argentina mudou olhar de sua população sobre o Brasil
Hoje, diz, os argentinos olham para o vizinho de outra maneira, como um ator global de peso.
“A Argentina mudou completamente sua visão sobre o Brasil. E o Brasil mesmo processou seu complexo de vira-lata e deixou de se ver como pequeno”, disse o cientista político, que já morou no Brasil, citando frase de Nelson Rodrigues.
Para Palermo, o prolema é que os “clichês” se mantiveram – e acabam contribuindo para alimentar a rivalidade.
“No geral, a percepção dos brasileiros é que os argentinos são soberbos, politizados e aguerridos. Os argentinos, por sua vez, acham que os brasileiros são sinônimo de mulatas bonitas, natureza e futebol – sim, porque apesar da rivalidade em campo, aqui admiram muito o futebol brasileiro.”
4) Coisa de futebol
O jornalista esportivo Bruno Sturari, do esportivo argentino Olé, prefere deixar a história oficial à parte e diz acreditar que a disputa entre Brasil e Argentina está “restrita ao mundo do esporte”.
E lembrou, ao citar o centenário da Copa América, que os protagonistas dessa rivalidade mudaram ao longo do tempo.
“Há cem anos a Argentina disputava com o Uruguai. E a rivalidade então era entre argentinos e uruguaios. E essa rivalidade com o Brasil foi surgindo paulatinamente à medida que os dois cresciam mais e mais no futebol. Mas é isso, no terreno do futebol.”