ROTANEWS176 E POR AGÊNCIA O GLOBO 26/10/2021 19:12
Casada por 26 anos com Huber Rodrigues, que foi vítima de complicações da Covid-19, ela conta que recorreu à Justiça para atender a desejo do marido que, em carta de 2008, escreveu que voltaria à vida depois de três dias de velório
Reprodução/Foto-RN176 Ana Maria e Huber: marido, morto pela Covid-19, tinha expectativa de ressuscitar no terceiro dia – Arquivo pessoal
“Deus tem a forma Dele de ressuscitar. Ressuscitar, para Deus, pode ser levar um espírito para o céu”. A frase é de Ana Maria Oliveira Rodrigues, de 56 anos. De filha de lavrador que plantava milho e soja em Joviânia, no interior de Goiás, ela se tornou celebridade, da noite para o dia, em Goiatuba, cidade vizinha de sua terra natal, onde passou a morar. Na segunda-feira à noite, o tempo parou no local de pouco mais de 35 mil habitantes. Centenas de pessoas foram para a porta da funerária Paz Universal esperar o momento em que o marido de Ana Maria, o pastor Huber Rodrigues, de 49 anos, ressuscitaria . Não aconteceu. Por volta de meia-noite, o estabelecimento, que existe há 44 anos na região, deu início à cerimônia de despedida que, pela primeira vez, aconteceria de madrugada. A pedidos.
Com o coração na mão e dividida até o último minuto, porque temia que a profecia que o próprio marido fez constar em documento em 2008 não se cumprisse, Ana Maria não se envergonha, apesar de algumas pessoas terem transformado o caso em piada. Os cristãos queriam um milagre, que consistiria em Huber sair do caixão com as próprias pernas . Os céticos, por sua vez, só assistiam à distância por pura diversão. Uma “live” acompanhava os acontecimentos em tempo real.
“Não me importo com as brincadeiras, eu entendo. Mas muita gente que estava do lado de fora da capela viu um clarão no céu na hora em que o Huber tinha pedido para ser feito o sepultamento. Ele foi muito claro quanto ao horário. Ele tinha muito medo de ser enterrado vivo”, conta Ana Maria, lembrando que, além da luz repentina, começou a chover. “Deus sabe o que faz, a minha fé não ficou abalada, muito pelo contrário, foi avivada. Eu estou com a minha consciência tranquila de que atendi a um pedido do meu marido, que tanto bem fez para esta comunidade”.
Quando os dois se conheceram, Ana Maria era solteira e tinha 30 anos, e Huber, mais novo, 23. Os dois nunca puderam ter filhos e saíram de Joviânia para tentar uma vida melhor em Goiatuba. Lá, enfrentaram “atribulações”. Criada numa família religiosa — “minha mãe era católica de verdade” —, ela passou a dormir mal à noite, e o marido a ter episódios de desmaios que acabavam nas emergências da região. Formada técnica em contabilidade, ela acredita que a situação foi superada à medida que os dois foram cada vez mais mergulhando na religiosidade. Convidada por amigos, ela passou a frequentar um templo evangélico. “Vivíamos um para o outro e para o ministério”, diz, acrescentando que, sem filhos, sentia até então um vazio no peito que só o coração da mulher entende.
“Só quem não pôde ter filhos sabe o que é isso. Logo que casamos, o médico me examinou e disse que eu não podia ter um bebê, sem explicar a razão. E eu não procurei saber. Acho que ele falou assim para evitar mais sofrimento”, recorda-se Ana Maria, que tem sete irmãos que se revezam no apoio emocional a ela desde que o marido adoeceu.
O casal teve Covid-19 junto. Ana Maria se recuperou em casa, Huber um dia após os primeiros sintomas foi internado e intubado. Em 26 anos de união, foi a primeira vez que ela passou mais de um mês sem vê-lo.
“Mas ele começou a melhorar e melhorar. Pela graça de Deus porque ele ficou muito grave, a ponto de fazer hemodiálise, dia sim, dia não. Os médicos falavam que ele estava se recuperando, retiraram do tubo e só o deixaram na UTI para ter um suporte de oxigênio. Eu avisava todos os dias à família dele, dava notícias, estávamos esperando a alta. Passamos a nos ver pela câmera do celular porque, devido à pandemia, ninguém pode entrar no hospital (Itumbiara, a cerca de 50km de Goiatuba). Na quinta-feira, foi a última vez que nos vimos. Eu estava no nosso ministério e outros missionários também viram como ele estava pela câmera do celular. No sábado, entretanto, houve uma piora e ele partiu após ter uma parada cardiorrespiratória”.
O tom de realismo fantástico, descambando para o deboche, que parte da população local deu ao velório prolongado de Huber não a incomoda. Ana Maria se manteve firme no propósito de velar o corpo do marido por três dias. Numa carta escrita há 13 anos, ele dizia que era o tempo necessário para ser agraciado pelo “Mistério de Deus”. Na previsão, o pastor afirmava: “minha integridade física tem que ser totalmente preservada, pois ficarei por três dias morto, sendo que no terceiro dia eu ressuscitarei. Meu corpo durante os três dias não terá mau cheiro nem se decomporá, pois o próprio Deus terá preparado minha carne e meu cérebro para passar por essa experiência”.
Pelas instruções deixadas pelo marido, que morreu no sábado de manhã, o enterro só poderia acontecer na segunda-feira às 23h30. Ana Maria ainda esperou mais dez minutos. Quando finalmente o caixão começou a baixar na cova, parte da multidão gritava: “abre! abre! abre!”. Queriam ter a prova de que a premonição, soprada pelo Espírito Santo nos ouvidos de Huber, não se completara.
“Na hora, você pensa: ‘Deus, não vai acontecer?’ Não foi fácil para mim, fiz tudo com toda a minha alma e minha fé. De fato, eu sou testemunha de que ele não exalava qualquer mau cheiro. A pele dele era íntegra, mesmo sem ter passado pelos procedimentos de conservação do corpo. Isso nunca aconteceria, numa situação normal, com uma pessoa que estivesse morta há tanto tempo, porque o odor seria muito forte. Fui todos os dias à capela vê-lo, estava intacto. Acho que só Deus sabe os motivos de as coisas terem acontecido desse jeito. As pessoas que não são tão espirituais não acreditam, eu entendo a reação”, diz Ana Maria, que não espera ter problemas com a Justiça, embora a Vigilância Sanitária da Prefeitura de Goiatuba tenha autuado a funerária e aberto um processo administrativo por infração sanitária porque o corpo não foi submetido à tanatopraxia, quando é embalsamado para suportar um período maior de tempo até o sepultamento.
“A funerária e a família me procuraram para pedir autorização. Mas eu não poderia dar. As regras da Anvisa não permitem. O corpo, dependendo das condições, exala mau cheiro e elimina substâncias que podem ser prejudiciais à saúde das pessoas”, explica o farmacêutico Luciano Borges Chaves, fiscal da Vigilância.
O casal faz parte de uma comunidade que já representa cerca de 30% dos praticantes de alguma religião no país, segundo pesquisa do DataFolha divulgada no ano passado. Pelos números, 50% dos brasileiros são católicos, 31% evangélicos e 10% não têm religião. Uma proporção que cresceu em relação ao último Censo de 2010, quando havia 42.275.440 evangélicos no Brasil, 22,2% da população à época. O professor Valdemar Figueiredo, doutor em Ciência Política, pastor e membro do Instituto Mosaico, afirma que a situação causa um assombro por acontecer em pleno século XXI:
“Mesmo quem é religioso leva um susto quando se depara com pessoas que acreditam dessa forma. Remete a um tempo bíblico em que Lázaro estava morto e Jesus o chama à vida. Mas estamos falando de um tempo em que não havia laudo médico, atestado de óbito, além de ser uma narrativa muito mais poética do que um texto objetivo”, observa.
Homem de fé e também evangélico, o gerente da funerária Paz Universal, José Dourado, explica que estranhou o pedido, mas acredita em milagres. Ele lembra que a Bíblia — “em outros tempos, é claro” — mostra que é possível. Além disso, ressalta que o objetivo do serviço funerário é amparar a família do morto da melhor forma.
“Como cristão, acreditei que pudesse acontecer um milagre. A gente vive e está todo dia aprendendo. Não aconteceu com Lázaro?”, indaga ele que acompanhou toda a cerimônia até a descida do caixão excepcionalmente na madrugada de segunda para terça-feira.
A Igreja Assembleia de Deus Maranata (Catedral dos Milagres), que o casal mantinha em parceria, vai continuar de portas abertas, de acordo com Ana Maria, que foi auxiliar administrativa quando mais jovem enquanto Huber foi motorista de ônibus:
“Eu era a mulher do pastor, agora eu tocarei a obra do Senhor”.