Ditadura deixou como legado o consenso sobre democracia

24 DE MARÇO DE 1976

ROTANEWS176 E UOL 24/03/2016 11:34

SYLVIA COLOMBO

ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES

Cerca de 60% da população da Argentina nasceu depois de 1976, segundo dados do último censo. Portanto, não possui uma memória direta do golpe que, no dia 24 de março daquele ano, derrubou a presidente Isabelita Perón (que havia sido vice-presidente do general Juan Domingo Perón, morto em 1974) e inaugurou uma ditadura comandada por juntas que incluíam membros das três Forças Armadas.

                   Eduardo Di Baia/Associated Press

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Reprodução/Foto-RN176 A ex-presidente Isabelita Perón fala a sindicalistas em 18 de março de 1976, seis dias antes do golpe

A primeira junta era composta por Jorge Rafael Videla (Exército), Emilio Massera (Marinha) e Orlando Agosti (Aeronáutica).

Apesar de o regime, chamado pelos militares de Processo de Reorganização Nacional, ter persistido até 1983, foi nesse seu primeiro período, conhecido como o dos “anos de chumbo”, que ocorreram os principais abusos de direitos humanos.

Eduardo Di Baia/Associated Press

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Reprodução/Foto-RN176 Ladeado por Emilio Massera (esq.) e Orlando Agosti, o general Videla é empossado presidente, cinco dias após o golpe

Pouco antes de morrer, na cadeia, cumprindo pena de prisão perpétua por crimes contra a humanidade, Videla assumiu, em entrevista ao jornalista Ceferino Reato (publicada no livro “Disposición Final”, da editorial Sudamericana), que a cúpula do golpe havia concordado que “7.000 ou 8.000 pessoas deveriam morrer para que se vencesse a guerra contra a subversão”.

Na mesma ocasião, Videla admitiu haver uma política sistemática para que os bebês nascidos dos “subversivos” mortos nos centros de detenção clandestinos fossem entregues para ser criados por famílias de militares.

Associated Press

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Reprodução/Foto-RN176 Na praça de Maio, em frente à Casa Rosada, soldados leem jornal com a notícia do golpe

Estima-se que cerca de 500 crianças tenham sido distribuídas entre eles, com as identidades alteradas.Até hoje, realizando um trabalho que coteja material genético, reúne depoimentos e investiga denúncias, a associação das Avós da Praça de Maio já localizou 119 dessas pessoas, hoje na faixa dos 40 anos.

Mas por que um fato ocorrido antes do nascimento de mais da metade da população argentina ainda ecoa tanto no país vizinho?

Desde que a ditadura teve fim, em 1983, até os dias de hoje, o debate sobre a violência e o destino dos desaparecidos não saiu dos noticiários e do dia a dia dos argentinos.

Eduardo Di Baia/Associated Press

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Reprodução/Foto-RN176 Em 10.dez.1983, Raúl Alfonsín recebe a faixa presidencial do general Reynaldo Bignone, pondo fim à ditadura militar

Não apenas os parentes das vítimas da brutal repressão do Estado reclamam o esclarecimento de todas as mortes, mas também aqueles que perderam familiares ou amigos em consequência das ações da guerrilha –como explosões de bombas, tiroteios e assaltos.

“Uma das principais razões pelas quais essa ferida não se fecha na Argentina e segue atual é o fato de que o posicionamento em relação aos direitos humanos se transformou em tema indissociável da posição partidária de cada setor da sociedade argentina”, diz à Folha o jornalista e escritor norte-americano Jon Lee Anderson, especialista em coberturas na América Latina.

Isso pôde ser visto na mais recente eleição presidencial, no final do ano passado.

De um lado, o candidato apoiado pelo kirchnerismo, Daniel Scioli, prometia seguir estimulando os julgamentos de repressores.

Tanto Néstor como Cristina Kirchner, que governaram o país entre 2003 e 2015, tornaram nulos indultos e leis de anistia promulgados nos anos 80 e 90 e estimularam um amplo julgamento de agentes da repressão de todos os escalões.Ficaram de fora das investigações e processos os crimes cometidos pela guerrilha, em argumentação baseada no Estatuto de Roma.

A interpretação do governo kirchnerista era a de que crimes cometidos pelo Estado são considerados de lesa-humanidade, portanto não poderiam prescrever nunca, devendo ser julgados mesmo depois de várias décadas. Já os crimes cometidos por guerrilheiros foram considerados crimes comuns e, por conta disso, após um período de 10 a 15 anos caducariam e não poderiam mais ser julgados.

Juan Mabromata – 9.dez.2015/AFP

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Reprodução/Foto-RN176 Cristina Kirchner, ao lado de busto de Néstor Kirchner, em seu último dia na Presidência

Ao prometer seguir essa linha, Scioli conquistou apoio das principais entidades de direitos humanos, que fizeram campanha por sua eleição.

De outro lado, o então opositor Mauricio Macri criticava o aparelhamento dessas mesmas organizações –a quem chamou de “currais”– e seu alinhamento à base política dos Kirchner. Macri prometia não interromper julgamentos em curso, mas acenou de maneira simpática a grupos de vítimas da guerrilha e aceitou apoio de advogados que apoiam uma anistia aos mais de 600 repressores que hoje cumprem pena em prisões comuns, na Argentina.

A vitória de Macri, em 22 de novembro último, deixou as organizações de direitos humanos assustadas. Uma de suas principais lideranças, Estela de Carlotto, presidente das Avós da Praça de Maio, via na vitória de Macri um retrocesso nessa área e declarou temer que ele promovesse uma anistia aos condenados durante o kirchnerismo.

Natacha Pisarenko – 23.fev.2016/Associated Press

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Reprodução/Foto-RN176 A líder da organização Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, após encontro com Macri

A associação H.I.J.O.S. –formada por filhos de desaparecidos– passou a promover atos de repúdio aberto ao presidente.

Enquanto isso, de outro lado, organizações ligadas aos militares –como a Associação Justiça e Concórdia– e de vítimas da guerrilha –como a CELTYV (Centro de Estudos Legais Sobre o Terrorismo e Suas Vítimas)– saíram a público para reivindicar o fim de uma política de Estado que consideravam persecutória.

Pediam, no caso dos militares, anistia aos repressores em idade muito avançada que se encontram atrás das grades e, no caso das vítimas da guerrilha, indenização do Estado pela morte de seus familiares.

A voz dos que acreditam que a política kirchnerista era persecutória se fez ouvir num polêmico editorial do jornal conservador “La Nación”, no dia seguinte à vitória de Macri, que pedia anistia a repressores e o fim de uma Justiça que descreviam como vingativa.

Houve forte reação da própria equipe de jornalistas do diário, que se declarou contra o texto e tirou fotos com cartazes de repúdio que viralizaram nas redes sociais.

Reprodução

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Reprodução/Foto-RN176 Jornalistas do “La Nación” protestam contra o editorial que defendia a anistia

Macri, percebendo a tensão política que o tema ainda causa, resolveu adotar uma posição mais contemporizadora. Em seu discurso de abertura do Congresso, no dia 1º de março, disse “aproveitemos esse aniversário para dizer ‘nunca mais’ à violência institucional e política”.

O presidente também tentou colocar um ponto final numa disputa com relação ao número oficial de vítimas da ditadura militar, sobre o qual também não há consenso. Também aí reside uma disputa política.

De um modo geral, a direita atual, antiperonista, puxa o número para baixo, enquanto o peronismo e a esquerda o jogam para o alto.

A primeira contagem confiável de desaparecidos surgiu com os trabalhos da Conadep (Comissão Nacional de Desaparecidos), instituída pela democracia, no governo de Raúl Alfonsín (1983-1989), cuja principal porta-voz é a ativista Graciela Fernández Meijide.

Fernando de la Orden – 16.mai.2012/”Clarín”

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Reprodução/Foto-RN176 Graciela Fernández Meijide, integrante da Comissão Nacional de Desaparecidos

Miejide é mãe de um rapaz, Pablo, arrancado de casa aos 17 anos na presença dos familiares e que nunca mais foi devolvido.

A Conadep contabilizou, nos anos 1980, com a ajuda de outras instituições de direitos humanos, 7.954 casos de pessoas desaparecidas, com nome, sobrenome e circunstância do desaparecimento.

Essa lista, com o tempo, foi sendo aumentada com a revelação de casos que vinham sendo denunciados de várias partes do país por familiares, associações e por parte da militância que sobreviveu. Logo, o número já superava os 10 mil, e há quem acredite que muitos sumiços nem sequer chegaram a ser relatados, por medo de retaliação militar ou porque, em muitos casos, eliminou-se toda a família e não sobrou quem pudesse fazer a denúncia.

Os defensores de uma suposta “ditabranda” argentina reforçam que o número amplamente veiculado nos anos 70 e 80, o dos 30 mil, é uma ficção total, algo criado pelos exilados argentinos no exterior para angariar apoio à sua causa.

Um indício mais recente de que o número era superior ao da contagem inicial, porém menor que os 30 mil propagados pela resistência, surgiu de documentos que tiveram o sigilo derrubado por Washington nos últimos dez anos.

Tratava-se de uma correspondência entre militares argentinos e chilenos, conversando no âmbito da Operação Condor, em que os primeiros relatavam aos colegas do país vizinho que já haviam “eliminado 22 mil pessoas ligadas à subversão”, entre os anos de 1975 e 1978.

Em janeiro, a polêmica voltou a pegar fogo quando Darío Lopérfido, ministro da Cultura de Buenos Aires e partidário de Macri, deu declarações dizendo que o número usado hoje pelas organizações de direitos humanos (os tais 30 mil) era inflado e que a contagem carecia de evidências, provocando grande rejeição por parte da oposição.

Macri tentou colocar panos quentes à discussão: “Tem gente que investigou e diz que são de 7.000 a 9.000 desaparecidos. Outros dizem que são 30 mil, mas o que me interessa é que esse tipo de coisa não volte mais a acontecer”.

ATUAIS JULGAMENTOS

Enquanto o debate segue no plano político, no jurídico cinco grandes julgamentos chegam a sua fase final.

Os dois que vêm criando mais expectativas são o do chamado “megacaso” (por envolver muitas acusações) Condor e o do “megacaso” Esma, que investigam os crimes de tortura e morte na Escola Superior de Mecânica da Armada, principal centro clandestino da ditadura.

“Estamos abrindo precedentes nesse tipo de investigação, pois usamos depoimentos dados em diferentes casos e unificando-os numa só narrativa. A ideia é chegar mais rapidamente a um esclarecimento e não justapor julgamentos, uma vez que há repressores ligados a diversas contravenções”, conta à Folha o promotor Pablo Ouviña, responsável pelo julgamento da Condor.

Marcos Brindicci/Reuters

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Reprodução/Foto-RN176 Fachada do prédio da Esma, maior centro de tortura na ditadura, que virou o Museu da Memória

Estão acusados 18 repressores, não apenas na Argentina –há também indiciados chilenos e uruguaios.

A Condor foi uma ação conjunta entre forças militares de países do Cone Sul durante os anos 1970.

“O esforço argentino nesse caso é louvável, mas ainda há muito a ser feito. Por enquanto, os principais documentos usados são os que foram abertos nos EUA. Ainda é preciso vasculhar a documentação das forças militares dos países envolvidos. Tenho certeza de que revelarão coisas mais importantes sobre desaparecidos e sobre as estratégias usadas pelas forças em conjunto. E é preciso fazer isso logo, pois os acusados estão morrendo”, diz à Folha o historiador e investigador John Dinges.

Já no caso da Esma, há 59 repressores acusados de 789 crimes, sendo que muitos deles já estão presos por outras condenações.

Quanto a isso, a associação de advogados Justiça e Concórdia se opõe. “É uma coisa desumana sobrepor julgamentos sobre pessoas já condenadas, fazendo com que nunca tenham a oportunidade de terminar uma pena e serem libertados. Estes são homens que lutaram contra o terrorismo e contra o comunismo que ameaçava o Estado. Na verdade, não são repressores, são heróis”, disse à FolhaGerardo Palacios Hardy, vice-presidente da associação, cujos integrantes são advogados que defendem repressores condenados ou que estão atualmente respondendo a processos.

OS EUA

Os atos em memória dos 40 anos do golpe militar ocorrem ao mesmo tempo da visita do presidente norte-americano, Barack Obama, à Argentina. A coincidência de datas inflamou ânimos de defensores dos direitos humanos que consideram que os EUA devem pedir desculpas pelo apoio brindado aos generais argentinos, no período inicial do regime.

Documentos dos quais os EUA retiraram o sigilo mostram que, de fato, durante a administração de Gerald Ford, o então secretário de Estado, Henry Kissinger, deu um “ok” para o então ministro das Relações Exteriores argentino, César Guzzetti, quando este pediu “a compreensão e o apoio dos EUA para derrotar o terrorismo”.

Eitan Abramovich/AFP

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Reprodução/Foto-RN176 Papel colado em árvore em frente à Esma no qual se lê: “EUA também foi a ditadura/ Obama fora da Esma”

Segundo esses papéis, em um encontro que tiveram no Chile, Kissinger teria dito ao ministro: “Se há coisas que precisam ser feitas, vocês devem fazê-las rapidamente. Mas devem voltar logo aos procedimentos normais”.

Esse comportamento de apoio dos EUA aos generais geralmente é o mais lembrado pelas associações de direitos humanos argentinas. Não por acaso, nas últimas semanas, alguns muros de Buenos Aires amanheceram com pichações de “Fora, Obama”, enquanto líderes de associações de direitos humanos, como o Nobel Adolfo Pérez Ezquivel, pediram abertamente que o atual presidente reconhecesse o papel dos EUA na repressão.

A história, porém, é um pouco mais complexa, e mostra que os EUA não tiveram sempre um papel de suporte dos generais sul-americanos.

Quando Jimmy Carter assumiu a Presidência, em 1977, a política externa norte-americana tomou um novo rumo.

Em relação à Argentina, por exemplo, Carter primeiro enviou um representante para advertir a junta militar que os EUA não aprovavam as torturas que lhes vinham sendo reportadas. Logo depois, Carter recebeu o general Videla na Casa Branca e foi o primeiro dirigente estrangeiro a fazer-lhe cobranças, cara a cara, sobre o destino dos desaparecidos.

Historiadores apontam essa intervenção de Carter como crucial para uma certa desaceleração da matança, que de fato diminuiria no fim dos anos 1970, embora a ditadura continuasse até 1983.

Ivan Fernandez/Associated Press

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Reprodução/Foto-RN176 Manifestantes protestam contra a presença de Obama perto da Embaixada dos EUA

O QUE FALTA?

Para analistas, estudiosos e defensores dos direitos humanos ouvidos pela Folha, faltam algumas ações para sanar a ferida aberta nos anos 70.

Além da necessidade de despolitizar a discussão, como propõe Jon Lee Anderson, eles chamam a atenção para a necessidade de aprofundar as investigações, independentemente da realização ou não de julgamentos.

“É preciso encontrar os restos de todos os desaparecidos ou ao menos saber onde foram vistos pela última vez. E com isso compor uma lista exaustiva de vítimas, com as circunstâncias de seu desaparecimento. Essa lista teria sido possível se os militares não tivessem destruído seus arquivos. Por outro lado, as organizações de direitos humanos deveriam estar de acordo com esse esforço, em vez de apenas repetir o número de 30 mil como se fosse uma bandeira política que não pudesse ser desmentida. Também é preciso encontrar todos os bebês roubados, e nisso o Estado precisa apoiar as Avós da Praça de Maio”, diz Ceferino Reato.

Autor de livros que tratam dos embates da época, como “Operación Primícia” e “Viva La Sangre”, Reato também considera que as organizações deveriam superar diferenças e investigar também os crimes cometidos pelos que se opunham ao regime. “Os mortos pela guerrilha também são vítimas da violência política e merecem reconhecimento simbólico do Estado.”

Já Fernández Meijide considera que se deva baixar o tom da tensão em torno desse trauma coletivo, pois há coisas positivas, ao final de tanto sangue derramado, que devem ser celebradas.

“Vivemos uma imensa tragédia, mas que nos serviu para duas coisas. Hoje, a democracia e os direitos humanos são temas amplamente aceitos e importantes para a sociedade, à esquerda e à direita. Antes, não havia um consenso sobre isso”, diz.

E acrescenta que o fato de os militares terem protagonizado uma derrota tão calamitosa na Guerra das Malvinas, em 1982, não apenas causou o fim da ditadura como abriu os olhos dos argentinos.

19.mar.1991/Reuters

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Reprodução/Foto-RN176 Parentes de soldados argentinos mortos nas Malvinas visitam o cemitério Darwin, no arquipélago

“Antes da guerra, havia gente que não se convencia do fato de que os militares pudessem estar fazendo pessoas desaparecerem. Era algo que se dizia, havia rumores, mas muitos simplesmente não acreditavam. Quando tivemos a notícia da derrota, do tamanho do vexame e da quantidade de mentiras que nos haviam contado sobre nossas possibilidades de ganhar a guerra, a sociedade como um todo passou a ficar contra os militares. E aqueles que não tinham querido acreditar antes se convenceram de que, sim, se os generais foram capazes de mandar os soldados argentinos para uma guerra em que seriam massacrados, era sim possível que estivessem matando gente nos porões”, diz à Folha.

 

Fabian Gredillas/6.dez.2001/AFP

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Reprodução/Foto-RN176 Bandeira da Associação Mães da Praça de Maio durante a Marcha da Resistência em

Para Meijide, outro fato positivo a ser lembrado nesse aniversário de 40 anos é que a democracia não está em risco na Argentina.”Conseguimos algo. Antes, uma situação de instabilidade era resolvida com uma intervenção militar. Agora, ninguém nem sequer imagina ou defende isso como uma opção.”