Uma nova geração de mulheres surge entre as adolescentes que defendem a liberdade de ser e fazer o que quiserem, quebrando padrões de comportamento machistas e traçando um novo rumo do feminismo no Brasil
ROTANEWS176 E ISTOÉ 03/03/17 18h00 Fabíola Perez e Ludmilla Amaral Fotos Frederic Jean
Reprodução/Foto-RN176 “Muita gente que debate assuntos de feminismo está brigando. Não acho que seja por aí. As pessoas aprenderam que o machismo é normal, mas estamos em um momento que o importante é torná-las conscientes de que certos comportamentos precisam mudar” Anna Carolina Santos, 15 anos
Aos 16 anos, Stéphanie Gonçalves Pedroso Ribeiro já tem algumas certezas. Uma delas é que não quer casar, nem ter filhos. Sobrancelhas franzem sempre que ela comenta sua decisão, mas a adolescente está convicta. Solene, anuncia que seu principal objetivo é dedicar-se à carreira de advogada. Mesma profissão da mãe, a procuradora Margarete Pedroso, 46 anos, com quem se iniciou nas conversas sobre o papel da mulher na sociedade, o medo de andar sozinha nas ruas e o tipo de roupa que é permitido ou não usar sem julgamento. Stéphanie é uma das fundadoras do coletivo feminista Tuíra, do Colégio Bandeirantes, em São Paulo. No ano passado, ela e as colegas perceberam que muitas meninas tinham interesse em discutir o machismo na escola. Nasceu, então, a ideia de montar um grupo para resolver problemas do cotidiano. Elas se reúnem para colar cartazes pelos corredores com alertas sobre relacionamento abusivo ou com frases machistas que já escutaram. “Isso me libertou, mas, ao mesmo tempo, é angustiante perceber tudo que as mulheres enfrentam diariamente.” A jovem faz parte de uma geração que descobriu o feminismo muito cedo e encontrou novas formas de lutar por seus direitos. Meninas como ela começam a compreender no início da adolescência que o tamanho da saia não as torna responsáveis por nenhum tipo de violência machista. Essas garotas redefiniram suas prioridades baseadas em anseios pessoais e não em padrões sociais estabelecidos historicamente. “Podemos ser mães, mas podemos não ser. Antes éramos criadas com apenas uma possibilidade, mas hoje há vários caminhos”, diz a estudante.
Por que elas lutam?
Igualdade entre os sexos é a mais importante das vertentes do feminismo. Mas não é a única. Confira:
- Liberdade sexual. Viver a sexualidade sem sofrer preconceitos seja qual for a orientação
- Aceitação e amor pelo próprio corpo sem a interferência da sociedade. Entender que o padrão de beleza imposto leva mulheres e garotas comuns a recorrerem a extremos não saudáveis para alcançá-lo
- Escolher a profissão que deseja seguir sem que o mercado imponha o que é trabalho para homem e o que é para mulher
- Poder de escolha sem que a sociedade, família ou homens interfiram. Seja para ser dona de casa, trabalhar fora, sair sozinha ou usar a roupa que bem entender
- Ter a opção de formar uma família ou não ser descriminada pela sociedade por ser mulher e não querer ser mãe
“O que se vê são meninas mais cientes do direito à liberdade e à diversidade, combativas e questionadoras”, afirma a antropóloga Beatriz Accioly Lins, pesquisadora em gênero e violência contra a mulher da Universidade de São Paulo (USP). Para Beatriz, se comparado o movimento das jovens hoje ao feminismo de décadas atrás, é possível dizer que há tanto continuidade quanto novidade. “Essas meninas são herdeiras de uma luta histórica e, se elas podem demandar o fim do assédio nas ruas e a possibilidade de exercer a sexualidade sem ser condenadas, é porque muitas mulheres já lutaram para que se chegasse nesse ponto.” Além disso, essas garotas nasceram e cresceram em um momento político e social em que as mulheres possuíam – ou lutavam por possuir – mais direitos. “Em 2006, foi promulgada a Lei Maria da Penha, mas a discussão começou no final dos anos 1990 e se estendeu por mais de uma década. Esse debate na esfera pública chegou a um número muito grande de brasileiros”, afirma a advogada Marina Ganzarolli, especialista em direitos das mulheres. Outras pequenas conquistas aconteceram, como a alteração do Código Civil, em 2005, que extinguia a expressão “mulher honesta”, que só tipificava um crime se comprovada a honestidade da vítima.
Reprodução/Foto-RN176 “Eu amo meu cabelo assim. Não dá para ficar melhor” Gabryelle Souza, 16 anos (à esq.) “Era a excluída da turma e sempre ouvia o quanto eu era gorda. Hoje, olho no espelho e me acho linda. Se eu me sentir bem comigo, isso é o que importa” Allany Cruz, 17 anos (à dir.) “Quando a mulher é negra, ela sofre em dobro. Além do gênero, também há o preconceito racial. Mas não me calo. Quando vejo algo que considero errado, sempre coloco meu ponto de vista” Giovanna Souza, 14 anos (ao centro)
CULTURA POP E INTERNET
O boom do feminismo entre as novas gerações tem muito a ver com a cultura pop, internet e redes sociais Todas as meninas entrevistadas para esta reportagem citaram alguns desses elementos como essenciais para conhecerem e se informarem sobre o movimento. Mencionam a atriz Emma Watson, a Hermione da franquia Harry Potter, e seus discursos como embaixadora da Boa Vontade da ONU Mulheres. Falam de Beyoncé e sua apresentação em uma premiação da MTV americana, em que surge no palco com a palavra “feminist” escrita em letras gigantes no telão. Pesquisadora em questões de gênero pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Gabriela Trevisan afirma ter acompanhado um aumento da discussão sobre empoderamento feminino nos últimos cinco anos. Aos 21, tem contato tanto com meninas mais novas, entrando na faculdade, quanto com professoras e pesquisadoras, já há anos envolvidas com o movimento. “Hoje é um feminismo mais midiático, tem cantoras pop e atrizes, pessoas nem sempre ligadas à esquerda, como era antigamente”, afirma. O ponto positivo é propagar as ideias, trazer o tópico à discussão. O negativo é cooptar o debate para pautas individualistas e não aprofundá-lo. A mesma crítica é feita para a internet e as redes sociais. Ao mesmo tempo em que garotas encontram informações com facilidade em pesquisas on-line e em páginas do Facebook e podem dividir suas histórias com outras mulheres, há sempre o risco de reduzir o debate à própria experiência e perder o senso da coletividade.
Reprodução/Foto-RN176 “Fiz um abaixo-assinado para poder jogar futebol porque no meu colégio só havia turma de meninos e a direção disse que não existia interesse das meninas” Caroline Gonçalves Pedroso Ribeiro, 11 anos
A maneira como as jovens tratam a sexualidade é um dos pontos em que se nota a maior transformação entre aquelas nascidas do final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Elas rejeitam estereótipos e amarras e se permitem experimentar sem julgamentos. “Eu sou bissexual, minha irmã é lésbica, e a maioria das minhas amigas é bi”, afirma Anna Carolina Santos, 15 anos. “Uma das reivindicações é permitir que sejamos mais abertas. Se a pessoa quiser ser heterossexual, tudo bem, mas é preciso que se respeite quando uma menina não quiser ser só isso.” Fã de batons vermelhos, Carol, como costuma ser chamada, frequentemente dá uns puxões de orelha na mãe, a advogada Adriana Cecilio Marco dos Santos, 39 anos. “Um dia disse que uma menina estava usando uma roupa de periguete e ela me explicou que falar desse jeito só reforça o machismo”, diz Adriana. “Ela é meu orgulho.” Carol ainda engrossa o coro das novas feministas que acreditam que é mais importante sensibilizar para a causa do que atacar. “Muita gente que debate assuntos de feminismo briga, xinga”, afirma. “Não acho que seja por aí. As pessoas aprenderam que o machismo é normal, então é natural que reproduzam, mas estamos em um momento que o importante é torná-las mais conscientes de que certos comportamentos precisam mudar.”
Reprodução/Foto-RN176 “Podemos ser mães,mas podemos não ser.Antes éramos criadas com apenas uma possibilidade mas, hoje, há vários caminhos” Stéphanie Gonçalves Pedroso Ribeiro, 16 anos
Outra questão bastante discutida entre as jovens é a aceitação do próprio corpo. Desde muito novas, as mulheres são bombardeadas por imagens e estereótipos do que é ser atraente para um homem. No caso de Allany Cruz, 17 anos, a pressão veio por meio de bullying. Aos 11 anos, ela já era atacada por não ser magra. “Era a excluída da turma e sempre ouvia o quanto eu era gorda.”. Além disso, alguns homens da família repetiam o discurso de que “mulher não pode trabalhar fora de casa” e que “mulher não pode sair à noite sozinha.” Aos poucos, a ideia de aceitação foi entrando na vida de Allany. “Hoje, olho no espelho e me acho linda. Se me sentir bem comigo, é o que importa”, diz. Allany quer cursar psicologia para ajudar outras pessoas a se aceitarem e a encontrarem o amor próprio.
FEMINISMO NEGRO
A aceitação das características físicas são ainda mais marcantes na vida das jovens negras. A cor da pele, o cabelo crespo, os traços. Tudo pode ser motivo para opressão e preconceito. Mas também pode ser símbolo de resistência e amor por si mesmas. As irmãs Gabryelle e Giovanna Souza, 16 e 14 anos, nasceram com cabelos crespos, mas desde pequenas alisavam. Há dois anos, entenderam que os cachos faziam parte de quem elas eram e passaram a usar o cabelo armado. “Eu amo meu cabelo assim. Não dá para ficar melhor”, diz Gabryelle. “Hoje consigo, finalmente, me enxergar. Essa sou eu”, diz Giovanna. No colégio, a mais nova ainda escuta que o cabelo era mais bonito liso, mas deixa claro seu ponto de vista. “Se ouço algo que considero errado, não me calo.” Giovanna propaga com mais ênfase uma importante vertente do feminismo: o da mulher negra. “Só pelo fato de ser mulher, a gente já sofre por algumas questões da sociedade. Mas quando a mulher é negra, ela sofre em dobro. Além do gênero, também há o preconceito racial.” A filósofa e militante negra Djamila Ribeiro explica que no passado, o feminismo era composto por mulheres brancas, de classes sociais privilegiadas, que tinham tempo de se manifestar. “As negras estavam ocupadas em sobreviver.” Depois de um tempo restrito ao ambiente acadêmico, o debate sobre direitos das mulheres passou a ter uma preocupação popular, de chegar a outros grupos sociais. “Foi um movimento muito forte que formou a geração que está aí hoje.”
Reprodução/Foto-RN176 “Escolhi uma carreira e disseram ser um mercado muito masculino, que eu teria que lutar pelo meu espaço. Mas é exatamente isso que quero. Quanto mais mulheres alcançarem cargos altos,os homens também vão se beneficiar,pois terão menos peso de que precisam sustentar uma família” Ana Luisa Gomes de Oliveira, 17 anos
BATALHAS COTIDIANAS
Ainda que se fale muito em feminismo, nem todas as garotas se identificam como militantes. Mesmo assim, se envolvem com as pautas, por se reconhecerem nas situações de desigualdade comumente vividas pelas mulheres. Com apenas 11 anos, Caroline Gonçalves Pedroso Ribeiro é um exemplo disso. Por não poder praticar futebol em sua escola, porque o colégio oferece treinos só para meninos, ela e as colegas reivindicaram à direção aulas para meninas. Mas as coordenadoras disseram que não havia procura. Ela, então, teve a iniciativa de reunir, pelo Whatsapp, garotas que tinham o mesmo interesse pelo esporte e fez um abaixo-assinado. “Entregamos papeis em todas as salas para colher assinaturas.” Juntas, as meninas reuniram 35 assinaturas e superaram as 28 necessárias. As aulas ainda não começaram, mas o pedido foi feito. Em outros esportes, Caroline também sente a desigualdade de gêneros. “Os meninos só escolhem meninos para formar um time, mesmo em jogos mistos. Isso me incomodava, preferia que escolhessem por habilidade.” Na escola em que Caroline estuda algumas atividades incentivam o debate sobre o que é o machismo. No ano passado, a turma dela teve de escrever sobre discriminação entre gêneros. “Fiz um texto sobre rapazes que querem dançar balé e não podem”, diz. “E a redação que mais me impressionou foi a de um menino sobre uma garota que queria ser youtuber de games e todos diziam que ela deveria falar sobre maquiagem.”
“Da paz”. É assim que se define a estudante Ana Luisa Gomes de Oliveira, 17 anos, feminista e criadora de um coletivo de garotas em um colégio de padres em São Paulo. Ana vê como uma responsabilidade não somente explicar a importância do feminismo para as meninas mais novas, mas também ajudar os meninos a se aceitarem como são, sem a pressão de seguir um padrão do que é ser homem. A jovem ainda não decidiu qual carreira quer seguir, mas entre as opções está o curso de administração com desenvolvimento em produtos. “O diretor me disse que é um mercado muito masculino e que eu teria que lutar pelo meu espaço. Mas é exatamente isso que quero. Quanto mais mulheres alcançarem cargos altos, os homens também vão se beneficiar, pois terão menos peso para sustentar uma família”, afirma. “Todo mundo tem que ser livre para fazer as próprias escolhas.” A convicção de Ana, e de todas as garotas desta reportagem, mostra que uma nova maneira de ser mulher vem surgindo. Mesmo porque elas já estão criando novas formas de serem meninas. “Elas estão em um caminho de desestigmatização do feminismo e aproximação do tema dos direitos das mulheres. E o melhor é que isso está sendo absorvido pela grande mídia, deixou de ser contracultura”, afirma a advogada Marina Ganzarolli. Para a socióloga Fátima Pacheco Jordão, fundadora do Instituto Patrícia Galvão, essas garotas chegaram a um novo patamar cultural. “É um passo. Não termina aqui, porque a mudança é constante. Mas não tem mais volta.”
Breve cronologia do novo feminismo
Junho de 2011
Mulheres vão às ruas para protestar contra a violência sexual e a culpabilização da vítima em casos de estupro e assédio. No Brasil, a manifestação ganha o nome de Marcha das Vadias. Todos os anos, ela é realizada em diferentes países do mundo
Outubro de 2014
Denúncias de casos de estupro na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) movimenta a criação de uma CPI em São Paulo e fomenta o surgimento de coletivos feministas nas universidades brasileiras para coibir assédios e casos de violência contra a mulher
Outubro de 2015
A campanha #primeiroassédio, em que mulheres contam a primeira vez que sofreram abusos, tem repercussão nas redes sociais e incita a discussão sobre as situações de machismo vividas cotidianamente. Na mesma época, coletivos feministas se formam também em escolas
Novembro de 2015
Mulheres vão novamente às ruas para uma manifestação contra um projeto de lei do então deputado Eduardo Cunha que limitava o acesso da mulher estuprada ao aborto, hoje garantido legalmente. O projeto de Cunha não vinga
Outubro de 2016
Manifestações em países da América Latina, inclusive no Brasil, protestam pelo assassinato de uma jovem de 16 anos, que foi empalada e violentada até a morte na Argentina