ROTANEWS176 E POR BYTE 14/05/2023 17h00 Por Anna Bentes
Discurso de ódio faz parte do cotidiano das redes sociais hoje, mas o que muitos estudos vêm apontando é que grupos minoritários sofrem mais.
Reprodução/Foto-RN176 Mulher, assédio, agressão, masculinista, Lei Maria da Penha, machismo Foto: Anete Lusina / Pexels
Foi, no mínimo, irônico que, no mês de comemoração do Dia Internacional da Mulher, as manchetes e as redes sociais tenham sido tomadas por discussões sobre grupos misóginos e seus ataques às mulheres.
O debate foi disparado pelas ameaças do coach de masculinidade Thiago Schutz para a atriz Livia La Gatto, que havia ironizado nas redes sociais o preconceito e o ódio proferido por ele e outros que aderem aos movimentos masculinistas como red pills.
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Fazendo referência ao filme “Matrix”, a ideia dos red pills é a de que, ao optarem pela pílula vermelha, eles estariam abrindo mão das ilusões sociais e, assim, estariam acordando para a verdadeira realidade que vê as mulheres como grandes vilãs da sociedade.
Reforçando estereótipos misóginos, segundo essa visão masculinista, as mulheres são interesseiras, aproveitadoras e, por isso, deveriam se manter em seu lugar de sujeição aos homens.
Sabemos que o discurso de ódio é algo que faz parte do cotidiano das redes sociais hoje, mas o que muitos estudos vêm apontando é que grupos minoritários sofrem mais do que outros.
De acordo com as denúncias recebidas pela ONG Safernet, 67% das vítimas de discurso de ódio em ambientes digitais são mulheres e 59% são pessoas negras. Quais são os fatores do ecossistema digital brasileiro que nos ajudam a compreender a amplificação desse ódio direcionado às mulheres online?
Brasil é uma sociedade historicamente machista
Em 2021, o Brasil ocupou o 5º lugar no ranking mundial de Feminicídio de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), o que revela um traço profundamente machista da nossa sociedade que também se reflete na dinâmica das mídias sociais no país.
Segundo dados da Safernet, no ano eleitoral de 2022, crimes de ódio tiveram crescimento de até 650% apenas no primeiro semestre em sua Central Nacional de Denúncias. Neste crescimento, o crime mais denunciado foi o de misoginia, com 7096 casos.
O crescimento da extrema-direita no Brasil e dos ataques misóginos
Como aponta a pesquisadora do tema Bruna Camilo da PUC-MG, o crescimento desses grupos masculinistas não pode ser dissociado da ascensão da extrema-direita em um contexto global e local.
No Brasil, a extrema-direita bolsonarista incorpora perspectivas machistas, misóginas e patriarcais, que já existem no país há bastante tempo, mas que foram continuamente autorizadas por declarações do próprio ex-presidente.
Antes e durante seu mandato, Bolsonaro fez diversas manifestações menosprezando as mulheres, como os casos envolvendo ataques à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) e à jornalista Vera Magalhães durante o debate nas eleições de 2022.
Com a corrosão da democracia, não surpreende que aumente a violência contra mulheres que representam pilares importantes da democracia, como é o caso das mulheres no jornalismo e na política, que tendem a ser alvo ainda mais evidente para o discurso de ódio online.
Recentemente saiu a pesquisa Mapa da Violência Política de Gênero em Plataformas Digitais, conduzida pelo Laboratório de Pesquisa em Comunicação, Culturas Políticas e Economia da Colaboração (coLAB), da Universidade Federal Fluminense (UFF), apresentando uma análise multiplataforma sobre a violência política de gênero no Brasil.
Segundo o estudo, dos conteúdos analisados ao longo de seis meses de parlamentares mulheres com mandato ativo, 9% apresentava indício de violência discursiva, sendo 41% dos ataques são insultos, 26,6 % são invalidação e 24,5% são críticas.
De acordo com o projeto MonitorA, da AzMina e do Internetlab, “louca, doida e maluca” são a principal forma de se dirigir às candidatas a cargos do Executivo e do Legislativo na eleição de 2022.
Já uma pesquisa conduzida pelo Repórteres Sem Fronteiras e pelo Instituto para Tecnologia & Sociedade (ITS Rio) mostrou que mulheres jornalistas foram 13 vezes mais mencionadas em posts do Twitter que continham hashtags contra a imprensa.
Em uma outra análise de diferentes organizações do terceiro setor sobre ataques ao jornalismo com dados do Twitter, foi evidenciado que os ataques às jornalistas mulheres levam em consideração seus corpos e intelectualidade e costumam insinuar que mulheres não são capazes de exercer sua profissão.
Modelo de negócios baseado no engajamento e as bolhas algorítmicas
Esses dados assustam, mas infelizmente não surpreendem, uma vez que a própria arquitetura das plataformas favorece a circulação deste tipo de ataque.
Embora o discurso de ódio seja proibido em diversas políticas das grandes plataformas de redes sociais, o modelo de negócios dessas big techs baseado no engajamento de usuários é inevitavelmente beneficiado por polêmicas e ataques.
Além disso, as complexas nuances discursivas das ofensas online muitas vezes passam batidas das formas automatizadas de moderação de conteúdo. Outra evidência do Mapa da Violência Política de Gênero em Plataformas Digitais, por exemplo, é que a sátira e o humor provocativo estão presentes em cerca de 30% das mensagens ofensivas, o que sugere como humor pode ser usado para camuflar o ódio com um tom jocoso e irônico, dificultando ainda mais a moderação de conteúdo.
O efeito das bolhas algorítmicas contribui para amplificação do ódio não apenas porque segmenta conteúdos para grupos por perfis parecidos, mas também favorece o fortalecimento do laço social a partir do ódio ao outro. Assim, usuários homens tendem a consumir mais conteúdos machistas e também se identificam e se articulam em grupos e comunidades que pensam parecido.
Influenciadores digitais machistas e a monetização do masculinismo
As declarações machistas de autoridades não apenas autorizavam discursos preconceituosos e misóginos de seus apoiadores como também favoreceram a consolidação de comunidades online em torno desses mesmos discursos.
Autoridades como Bolsonaro são também grandes influenciadores digitais, o que permite alcançar grande visibilidade deste tipo de discurso nas redes. Não só ele, mas outros influenciadores cresceram em torno de declarações violentas contra as mulheres e outros grupos minorizados.
A visibilidade e alcance de certos influenciadores acabou gerando novas oportunidades de negócios como cursos e mentorias voltadas para orientar homens e seu comportamento em relação às mulheres. Isso fortaleceu ainda mais comunidades de homens ressentidos, unidos em torno da raiva às mulheres. Nem mesmo mulheres conservadoras escapam desse sentimento frustrado que se volta a menosprezar o gênero feminino.
Cultura do cancelamento e seu especial dano à reputação de mulheres
Por fim, a cultura do cancelamento é um outro aspecto importante do ecossistema do ódio às mulheres online. Embora seja algo que não atinge somente mulheres, o cancelamento online, manifestado por declarações raivosas e negativas em redes sociais direcionadas a uma pessoa, tende a ser especialmente danoso às mulheres.
Não é incomum que mulheres sejam canceladas por muito menos do que homens, sendo julgadas pelo “tribunal da internet” por atitudes em relacionamentos pessoais, por seu modo de se vestir ou de se comportar, por seus corpos e pela sua sexualidade.
De acordo com números da violência de gênero na internet do Brasil, mulheres são as principais vítimas sendo 70,5% dos casos de sexting e exposição de conteúdo íntimo por vingança.
Esses fatores não são exaustivos, mas nos fazem questionar o que significa ser mulher hoje nesse contexto e quais são seus desafios.
O machismo e a misoginia existem há muito mais tempo do que a internet, mas, as tecnologias acabam incorporando também vieses sociais e transformando esses fenômenos. É especialmente revoltante para uma mulher ver esses grupos masculinistas articulados e fortalecidos a partir de plataformas que lucram com o ódio que destilam sobre nós.