Ex-espião desertor da Coreia do Norte faz relato impressionante sobre drogas, armas e terror

ROTANEWS176 E POR BBC NEWS BRASIL 11/10/2021 16h09                                                                                Por Laura Bicker – BBC News, Seul (Coreia do Sul)

Ex-coronel descreve como um dos países mais isolados do mundo ganha dinheiro por qualquer meio, de fábricas de drogas a negócios ilegais de armas.

Reprodução/Foto-RN176 Ex-espião Kim Kuk-song desertou da Coreia do Norte temendo por sua vida e resolveu falar pela primeira vez Foto: BBC News Brasil

Kim Kuk-song não perdeu os velhos hábitos.

Foram necessárias várias semanas para marcar uma entrevista com ele, e o norte-coreano ainda está preocupado com quem pode estar nos ouvindo.

Kim usa óculos escuros, e apenas dois integrantes de nossa equipe sabem qual é seu nome verdadeiro.

Ele passou 30 anos trabalhando para chegar ao topo das poderosas agências de espionagem da Coreia do Norte. As agências eram os “olhos, ouvidos e cérebros do Líder Supremo”, conta.

Kim afirma que guardou seus segredos, enviou assassinos para matar seus detratores e até construiu um laboratório de drogas ilegais para ajudar a arrecadar fundos “revolucionários”.

Agora, o ex-expião decidiu contar sua história à BBC. É a primeira vez que um oficial militar do alto escalão de Pyongyang concede uma entrevista a uma grande emissora.

Kim era o “o mais vermelho dos vermelhos”, disse ele, em entrevista exclusiva. Um servo comunista leal.

Mas posição e lealdade não garantiram sua segurança na isolada Coreia do Norte.

Ele teve que fugir para salvar sua vida em 2014 e, desde então, vive em Seul, capital da Coreia do Sul, e trabalha para a inteligência sul-coreana.

Kim retrata uma liderança norte-coreana desesperada para ganhar dinheiro de todos os meios possíveis, desde negócios de drogas a vendas de armas no Oriente Médio e na África.

Ele nos contou sobre a estratégia por trás das decisões que estão sendo tomadas em Pyongyang e os ataques do regime à Coreia do Sul. Também diz que as redes cibernéticas e de espionagem do país podem alcançar todo o mundo.

A BBC não pode verificar de forma independente suas alegações, mas conseguimos provar sua identidade e, sempre que possível, encontramos evidências que corroboram suas alegações.

Entramos em contato com a embaixada norte-coreana em Londres e a missão em Nova York para uma declaração, mas até agora não recebemos resposta.

‘Força-tarefa terrorista’

Os últimos anos de Kim na principal unidade de inteligência da Coreia do Norte permitem entender como foi o início da liderança de Kim Jong-un, um jovem ansioso por provar ser um “guerreiro”.

A Coreia do Norte formou uma nova agência de espionagem chamada Reconnaissance General Bureau em 2009, no momento em que Kim Jong-un estava sendo preparado para suceder seu pai, que havia sofrido um derrame. O chefe da autarquia era Kim Yong-chol, que continua sendo um dos braços-direitos do líder norte-coreano.

O ex-espião disse que, em maio de 2009, determinou a formação de uma “força-tarefa terrorista”. O objetivo era matar um ex-oficial norte-coreano que havia desertado para o sul.

“Para Kim Jong-un, foi um ato para satisfazer o líder supremo (seu pai)”, diz Kim.

“Uma ‘força-tarefa terrorista’ foi formada para assassinar Hwang Jang-yop em segredo. Dirigi e executei pessoalmente o trabalho.”

Reprodução/Foto-RN176 Ex-líder supremo norte-coreano Kim Jong-il com seu filho, Kim Jong-un, ao fundo Foto: Reuters / BBC News Brasil

Hwang Jang-yop era uma das autoridades mais poderosas do país. Ele foi um dos principais arquitetos da política norte-coreana. Sua deserção para o Sul em 1997 nunca foi perdoada. Uma vez em Seul, ele passou a falar mal do regime norte-coreano e a família Kim queria vingança.

Mas a tentativa de assassinato deu errado. Dois majores do Exército norte-coreano ainda estão cumprindo penas de prisão de 10 anos em Seul por causa do complô. Pyongyang sempre negou envolvimento e alegou que tudo não passava de encenação da Coreia do Sul.

O testemunho de Kim sugere o contrário.

“Na Coreia do Norte, o terrorismo é uma ferramenta política que protege a honra de Kim Jong-il e Kim Jong-un”, diz ele. “Foi um presente para demonstrar a lealdade do sucessor ao seu grande líder.”

Havia mais por vir. Um ano depois, em 2010, um navio da marinha sul-coreana, o Cheonan, afundou após ser atingido por um torpedo. Quarenta e seis vidas foram perdidas. Pyongyang sempre negou envolvimento.

Então, em novembro daquele ano, dezenas de projéteis de artilharia norte-coreanos atingiram a ilha sul-coreana de Yeongpyeong. Dois soldados e dois civis foram mortos.

Ainda não se sabe quem deu a ordem para esse ataque. Kim disse que “não estava diretamente envolvido nas operações na Ilha Cheonan ou Yeonpyeong”, mas “não eram um segredo para os oficiais da RGB; (o episódio) era tratado com orgulho, algo para se vangloriar”.

E essas operações não teriam acontecido sem ordens do alto escalão, diz ele.

“Na Coreia do Norte, nada pode ser feito sem aprovação direta do Líder Supremo, nem mesmo a construção de uma estrada. O naufrágio do Cheonan e o bombardeio da Ilha Yeongpyeong não seriam atos executados exclusivamente por subordinados”.

“Esse tipo de trabalho militar é projetado e implementado por ordens especiais de Kim Jong-un. É uma conquista.”

‘Espião na Casa Azul’

Kim diz que uma de suas responsabilidades no Norte era desenvolver estratégias para lidar com a Coreia do Sul. O objetivo era a “subordinação política”.

Isso envolvia ter “olhos e ouvidos” em campo.

“Houve muitos casos em que enviei espiões à Coreia do Sul para realizar missões. Muitos casos”, afirma.

Ele não compartilha muitos detalhes, mas dá um exemplo intrigante.

“Houve um caso em que um agente norte-coreano foi enviado e trabalhou no Gabinete Presidencial na Coreia do Sul. Isso foi no início dos anos 1990. Depois de trabalhar para a Casa Azul (Gabinete Presidencial da Coreia do Sul) por cinco a seis anos, ele voltou em segurança e trabalhou para o governo”.

“Posso dizer que os agentes norte-coreanos estão desempenhando um papel ativo em várias organizações da sociedade civil, bem como em instituições importantes na Coreia do Sul.”

A BBC não conseguiu verificar essa afirmação.

Reprodução/Foto-RN176 “Todo o dinheiro da Coreia do Norte pertence ao Líder Supremo”, diz Kim Kuk-song Foto: Reuters / BBC News Brasil

Conheci vários espiões norte-coreanos condenados na Coreia do Sul e, como Chad O’Carroll, fundador da NK News (site com notícias e análises sobre a Coreia do Norte), assinalou em um artigo recente, dezenas deles foram presos ao longo das últimas décadas por diferentes atividades de espionagem.

Vários incidentes continuaram ocorrendo e pelo menos um envolveu um espião enviado diretamente do Norte. Mas os dados da NK News indicam que muito menos pessoas foram presas na Coreia do Sul por crimes relacionados com espionagem desde 2017, à medida em que o Norte se volta para novas tecnologias, em vez de espiões antiquados, para coleta de inteligência.

A Coreia do Norte pode ser um dos países mais pobres e isolados do mundo, mas ex-membros do alto escalão do governo norte-coreano que desertaram para o sul alertam que Pyongyang criou um Exército de 6 mil hackers de alto nível.

De acordo com Kim, o líder norte-coreano anterior, Kim Jong-il, ordenou o treinamento de novos funcionários na década de 1980 “para se preparar para a guerra cibernética”.

“A Universidade Moranbong escolhia os alunos mais brilhantes de todo o país e por seis anos recebiam educação especial”, diz ele.

Oficiais de segurança britânicos acreditam que uma unidade norte-coreana conhecida como Grupo Lazarus esteve por trás de um ataque cibernético que afetou partes do NHS (serviço público de saúde do Reino Unido) e outras organizações ao redor do mundo em 2017. Acredita-se que em 2014 a Sony Pictures tenha sido alvo do mesmo grupo.

“Internamente, nós apelidamos esse departamento de ‘Centro de Informações de Kim Jong-il’.”

Ele afirma que possuía uma linha telefônica direta com o líder norte-coreano.

“As pessoas dizem que esses agentes estão na China, na Rússia e pem aíses do Sudeste Asiático, mas também operam na própria Coreia do Norte. Esse departamento também protege a comunicação entre agentes espiões norte-coreanos.”

Drogas por dólares

Kim Jong-un anunciou recentemente que o país está mais uma vez enfrentando uma “crise” e em abril ele pediu à população que se preparasse para outra “Marcha Árdua”, termo usado para descrever uma grande fome ocorrida na década de 90, quando o país ainda estava sob o comando de seu pai, Kim Jong-il.

Naquela época, o ex-espião estava no Departamento de Operações e recebeu a ordem de arrecadar “fundos revolucionários” para o Líder Supremo. Em outras palavras: tráfico de drogas ilegais, diz ele.

“A produção de drogas na Coreia do Norte de Kim Jong-il atingiu o pico durante a Marcha Árdua”, conta. “Naquela época, o Departamento Operacional ficou sem fundos revolucionários para o Líder Supremo”.

“Depois de ser designado para a tarefa, eu trouxe três estrangeiros do exterior para a Coreia do Norte, construí uma base de produção no centro de treinamento e produzi drogas”.

“Era metanfetamina. Então poderíamos trocá-la por dólares para enviar a Kim Jong-il.”

Seu relato sobre o tráfico de drogas nessa época faz sentido. A Coreia do Norte tem uma longa história de produção de drogas — principalmente heroína e ópio.

Um ex-diplomata norte-coreano no Reino Unido, Thae Yong-ho, que também desertou, disse ao Fórum da Liberdade de Oslo em 2019 que o governo estava patrocinando diretamente uma rede de tráfico de drogas e, ao mesmo tempo, tentando solucionar uma epidemia doméstica generalizada de dependência de narcóticos.

Pergunto a Kim para onde foi o dinheiro das drogas. Foi convertido em dinheiro para o povo?

“Para ajudá-lo a entender, todo o dinheiro da Coreia do Norte pertence ao líder norte-coreano”, diz ele. “Com esse dinheiro, ele construía condomínios, comprava carros, comida e roupas, desfrutando de muitos luxos.”

As estimativas do número de mortes causadas pela prolongada escassez de alimentos na Coreia do Norte na década de 1990 variam de centenas de milhares a até 1 milhão de pessoas.

Reprodução/Foto-RN176 Grande fome matou milhares de norte-coreanos nos anos 90; país ainda enfrenta escassez de alimentos; na foto acima, mulher colhe grama para comer Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Outra fonte de receita, segundo Kim, veio da venda ilegal de armas ao Irã, administrada pelo Departamento de Operações.

“Havia submarinos-anões e semissubmersíveis especiais. A Coreia do Norte era muito boa na construção de equipamentos de ponta como esse”, diz ele.

Tal declaração é compreensível, mas polêmica, uma vez que os submarinos do país têm motores a diesel barulhentos.

Ele afirma, contudo, que os negócios foram tão bem-sucedidos que o vice-diretor da Coreia do Norte no Irã se gabava de chamar os iranianos para fazer negócios na piscina de sua casa.

Reprodução/Foto-RN176 ‘Todos seguem convicção de obediência final ao Líder Supremo’, diz Kim Foto: EPA / BBC News Brasil

Os acordos norte-coreanos de armas com o Irã têm sido um segredo aberto desde os anos 1980 e até incluem mísseis balísticos, diz o professor Andrei Lankov, uma das principais autoridades mundiais na Coreia do Norte.

A Coreia do Norte continuou avançando no desenvolvimento de armas de destruição em massa, apesar de estar sujeita a severas sanções internacionais. Em setembro, o país testou quatro novos sistemas de armas, incluindo um novo míssil de cruzeiro de longo alcance, um sistema de lançamento de um míssil balístico a partir de um trem, um míssil hipersônico e um míssil antiaéreo.

A tecnologia está se tornando cada vez mais sofisticada.

De acordo com Kim, Pyongyang também vendeu armas e tecnologia para países que travaram longas guerras civis. Nos últimos anos, a ONU acusou a Coreia do Norte de fornecer armas à Síria, Mianmar, Líbia e Sudão.

Segundo as Nações Unidas, os armamentos desenvolvidos em Pyongyang podem acabar em muitos cantos problemáticos do mundo.

Reprodução/Foto-RN176 Familiares sul-coreanos das vítimas do ataque em Cheonan protestam contra vice-presidente norte-coreano Kim Yong Chol Foto: Getty Images / BBC News Brasil

‘Servo leal traído’

Kim levou uma vida privilegiada na Coreia do Norte. Ele afirma que recebeu um carro Mercedes-Benz da tia de Kim Jong-un e teve permissão para viajar ao exterior livremente para arrecadar dinheiro para o líder norte-coreano.

O ex-espião diz ter vendido metais raros e carvão para arrecadar milhões em dinheiro, que seriam trazidos de volta ao país em malas.

Em um país empobrecido onde milhões de pessoas lutam contra a escassez de alimentos, essa é uma vida que poucos podem imaginar, quanto mais viver.

Reprodução/Foto-RN176 Jornalista da BBC Laura Bicker entrevistou desertor norte-coreano Foto: BBC News Brasil

As poderosas conexões políticas de Kim por meio de seu casamento permitiram que ele trabalhasse para diferentes agências de inteligência, conta ele.

Mas essas mesmas conexões também colocaram ele e sua família em perigo.

Pouco depois de ascender à liderança do país em 2011, Kim Jong-un decidiu expurgar aqueles que considerava uma ameaça, incluindo seu próprio tio, Jang Song-thaek.

Havia muito tempo, acreditava-se que Jang era o líder de fato da Coreia do Norte, à medida que a saúde de Kim Jong-il piorava.

Reprodução/Foto-RN176 Coreia do Norte vem testando mísseis balísticos Foto: Reuters / BBC News Brasil

De acordo com Kim, o nome de Jang Song-thaek chegou a se tornar mais conhecido do que o de Kim Jong-un.

“Foi quando senti que Jang Song-thaek não duraria muito. Senti que ele seria banido para um campo de trabalhos forçados”, diz ele.

Reprodução/Foto-RN176 Norte-coreanos se curvam diante das estátuas dos ex-líderes do país, Kim Il-sung e Kim Jong-il Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Mas então a imprensa estatal norte-coreana anunciou em dezembro de 2013 que Jang havia sido executado.

“Fiquei mais do que surpreso, fiquei chocado. Foi um golpe fatal”, diz Kim. “Imediatamente senti que minha vida estava em perigo. Sabia que não poderia mais continuar na Coreia do Norte.”

Kim estava no exterior quando leu sobre a execução em um jornal. Ele decidiu criar um plano para fugir com sua família para a Coreia do Sul.

“Abandonar meu país, onde está o túmulo e a família de meus ancestrais, e fugir para a Coreia do Sul, que na época para mim era uma terra estrangeira, foi a pior decisão de sofrimento emocional”, diz.

Mesmo por trás dos óculos escuros, posso ver que as lembranças são difíceis para ele.

A única pergunta que continuo fazendo durante nossos muitos encontros, ao longo de muitas horas, é por que ele decidiu falar agora.

“Este é o único dever que posso cumprir”, diz ele. “Serei mais ativo a partir de agora para libertar meus irmãos do Norte das garras da ditadura e para que eles desfrutem de verdadeira liberdade.”

Existem mais de 30 mil desertores na Coreia do Sul. Apenas alguns decidem falar com a imprensa. Quanto mais conhecido, maior o risco tanto para o desertor quanto para sua família.

Também há muitos na Coreia do Sul que duvidam desses relatos. Afinal, como alguém pode realmente checar essas histórias?

Kim viveu uma vida altamente incomum. Seu relato deve ser lido como parte da história da Coreia do Norte. Sua história nos oferece uma visão sobre um regime do qual poucos conseguem escapar e nos diz algo sobre o que é necessário para sua sobrevivência.

“A sociedade política da Coreia do Norte, seu julgamento, seus processos de pensamento, todos seguem a convicção da obediência final ao Líder Supremo”, diz ele. Ao longo de gerações, isso produz um “coração leal”, acrescenta.

O momento em que essa entrevista ocorreu também é interessante. Kim Jong-un deu a entender que pode querer falar com a Coreia do Sul em um futuro próximo, se certas condições forem atendidas.

Mas Kim faz um alerta sobre isso.

“Já se passaram anos desde que vim para cá, mas a Coreia do Norte não mudou nada”, diz ele.

“A estratégia que estabelecemos continua. O que você precisa saber é que a Coreia do Norte não mudou 0,01%”, conclui.

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