ROTANEWS176 E CARTACAPITAL 06/02/2016 00:36
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
Os 60 anos do livro de Guimarães Rosa vêm a propósito para apreciarmos seu trunfo máximo: o foco narrativo, manipulado pelo narrador Riobaldo e que servirá para analisar o romance
Reprodução/Foto-RN176 Guimarães Rosa internou-se pelas terras mineiras, interrogando as pessoas, registrando as histórias que ouvia e as peculiaridades da linguagem
Os 60 anos de Grande sertão: veredas vêm a propósito para apreciarmos seu trunfo máximo: o foco narrativo. Manipulado por Riobaldo, narrador protagonista, esse elemento estrutural servirá para analisar o romance e expandir nossa compreensão de seus muitos desdobramentos.
O Riobaldo que se antepõe ao interlocutor que veio de longe para conhecê-lo, é um homem idoso, deitado em rede na varanda da sede de sua fazenda, procedendo às honras da casa. A face final do protagonista já velho é essa, de homem apaziguado e assentado na vida, dono de terras com muitos agregados e dependentes.
Nesse romance tudo decorre da escolha do foco narrativo, que acaba sendo seu alicerce e seu fundamento. Quem conta a história que lemos? É Riobaldo, que fala em primeira pessoa. E de quem é a história que ele conta? É a dele mesmo. Portanto, Riobaldo se apodera de dois pontos de vista: o do narrador e o do protagonista. Dessa alternância resulta todo o volumoso romance.
Mais um elemento complicador vem se juntar logo de saída a essa dupla perspectiva: o interlocutor, a quem o narrador dá o tratamento cerimonioso de “o senhor”. Todo o romance assumirá a forma de um relato autobiográfico feito a uma pessoa, invisível e calada, que é quem provoca a narração. Anônima, essa pessoa veio de fora do sertão, procurando por Riobaldo e dispondo-se a extrair dele a história de sua vida. O depoimento que então se desenrola subentende um diálogo que é apenas pressuposto e contido dentro do monólogo – iniciado e nunca fechado pelo primeiro sinal gráfico do texto, um travessão, índice de fala.
Como não podia deixar de ser, as diferenças culturais entre ambos são numerosas: um deles é sertanejo tosco, o outro, cidadão cultivado. E é de assinalar, portanto, a semelhança do interlocutor com o antropólogo ou o psicanalista.
Essa equação nos habilita, em primeiro lugar, a entender a intriga bastante emaranhada. Em segundo lugar, a travar conhecimento com os demais personagens, aos quais a voz de Riobaldo dá vida. Em terceiro lugar, a compreender quem ele próprio é. Com Riobaldo estabelecemos, enquanto leitores – mesmo cientes de que se trata de um romance, portanto de uma história inventada – um pacto sob palavra. Isso posto, podemos começar a leitura.
Riobaldo não é um narrador direto ou fluente: demora muito a entabular sua história, é manhoso, tenta driblar o interlocutor. Boa parte do livro decorre antes que se resolva a abrir o jogo. Mas, enquanto isso, ele vai expondo ao leitor sua personalidade atual, a que assume depois de velho, quando se retira de tarefas anteriores, quando foi jagunço e chefe de jagunços. O romance começa pelo fim, quando todo o enredo já se passou e Riobaldo vive de reminiscências.
Chegou à fazenda, vindo da cidade, um personagem a que estamos chamando de interlocutor, pois ele não tem nome, procurando por um antigo chefe de jagunços de quem ouvira falar. Quer entrevistá-lo, indagando sobre seu passado, suas batalhas, das peripécias em que tomara parte, de onde viera, quem tinham sido seus pais, quais seus amores; enfim, como vivera sua vida. O interlocutor é então quem instiga a narração, e ela se faz em sua intenção, em resposta às múltiplas inquirições que vai formulando, para precisar melhor certos passos ainda vagos do enredo.
Reprodução/Foto-RN176 Parque Nacional Grande Sertão Veredas, na divisa entre Minas Gerais e Bahia
Desse modo, poderíamos dizer que, embora demore a se configurar, o interlocutor poderia ser compreendido como a primeira personagem a ser delineada por Riobaldo. Quem é ele? Não é um sertanejo como Riobaldo, fica logo claro. Chegou de longe, da cidade, conduzido por um jipe. Veio para conhecê-lo e para estimulá-lo a falar de suas experiências. Usa óculos, tem título de doutor e toma notas em uma caderneta, incessantemente.
Como é que ficamos sabendo de tudo isso? Pela voz de Riobaldo, que dirige ao interlocutor comentários sobre uso de óculos, título de doutor, anotações feitas na caderneta. Sendo o romance constituído por uma fala só, emitida por Riobaldo, o conjunto dos acontecimentos é decretado por essa fala.
Tudo indica que João Guimarães Rosa tenha contrabandeado um simulacro seu para dentro do livro. E isso porque muitas vezes se colocou na posição de ouvinte de um narrador sertanejo, cujo relato instigou. Apesar de oriundo de uma vila no sertão, o escritor partiria para a cidade, primeiro para São João del Rei e em seguida para Belo Horizonte, em função de seus estudos secundários e depois superiores, em medicina. E mais tarde, ao ingressar na carreira diplomática, passaria a residir no exterior, antes de morar no Rio de Janeiro, onde passaria a última fase de sua vida.
Atinando a certa altura com o opulento veio entre o histórico e o fabuloso que seria a fonte de sua obra – as sagas do sertão –, para ali voltou inúmeras vezes, tangendo boiadas, internando-se pelas terras mineiras, interrogando as pessoas, registrando as histórias que ouvia e as peculiaridades da linguagem. Suas cadernetas de anotações, hoje depositadas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo, tornaram-se um tesouro. Uma das fotos mais divulgadas mostra-o em uma dessas excursões, a cavalo, com a indefectível caderneta pendurada por um barbante ao pescoço. Ademais, sim, usava óculos e era médico.
Mas o interlocutor lança mão de outros saberes para ajudar Riobaldo à medida que ambos, conjuntamente, vão concretizando um texto biográfico, que cada um dos dois seria incapaz de levar a cabo separadamente. É do atrito dos dois personagens, tal como aparece unilateralmente na fala ininterrupta de Riobaldo, que toda a narrativa se institui enquanto texto.
A fala do protagonista, como se viu, inicialmente é relutante, dada à desconversa. Apenas a persistência do interlocutor vai forçando as comportas de tanta história sonegada, decorrente de um emaranhado de motivos que vão desde a perplexidade até vestígios de culpa difusa: incluindo o luto por Diadorim, de cuja morte Riobaldo se viu cúmplice, e o remorso pelo pacto com o diabo.
Ao fim e ao cabo, ainda bem que ambos se entregaram à ficção dessa empreitada, que só nos beneficia com as belezas de um dos mais extraordinários romances da língua portuguesa.