Joel Rufino dos Santos: “Não existe uma lista de livros imprescindíveis”

 ROTANEWS176 E NOVAESCOLA 25/03/2016 17:50

Para o professor de Literatura, o importante é ter prazer na leitura – qualquer que seja ela. E isso não existe quando vira obrigação

Marcelo Burgos

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Reprodução/Foto-RN176 Joel Rufino dos Santos, foi um historiador, professor e escritor brasileiro, tendo sido um dos nomes de referência sobre o estudo da cultura africana no país

 “Quem ama literatura não estuda literatura.” A afirmação, contraditória à primeira vista, se torna ainda mais intrigante quando se sabe que seu autor, o escritor e historiador carioca Joel Rufino dos Santos, foi durante 20 anos professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Apresentada durante uma de suas aulas, a idéia se tornou o título de um livro que reúne observações e reflexões que brotaram ao longo dos anos em que ele lecionou e toca em dogmas que cercam o mundo dos letrados – inclusive no que se refere à chamada literatura “fácil”.”Nunca devemos subestimar as leituras feitas por prazer”, sentencia o mestre. Nesta entrevista concedida a NOVA ESCOLA, ele defende que o ideal é perseguir o “gozo literário, o qual não pode ser prescrito”. Aos 66 anos, acumula em sua biografia a autoria de mais de 30 obras – entre romances e livros didáticos, paradidáticos e infan-tis -, como Quando Eu Voltei, Eu Tive uma Surpresa. Pela obra, que reúne as cartas que endereçou ao filho durante os dois anos em que foi preso político, na década de 1970, recebeu o Prêmio Orígenes Lessa O Melhor para o Jovem 2000.
O que significa o título do livro Quem Ama Literatura Não Estuda Literatura?
Joel Rufino dos Santos Ele é uma ironia que, de cara, talvez não se perceba. A obra é um convite a estudar literatura, uma confissão de amor a ela. Como ensinei Literatura Brasileira durante muitos anos numa das principais universidades do país, sei como esse estudo é desencantado, descarnado, isolado das demais disciplinas, tanto humanas quanto científicas. Não é, absolutamente, um convite a não estudar literatura, mas a estudá-la com mais recursos.

Em que medida suas experiências como professor de Literatura e leitor contribuíram uma para a outra?
Santos Tive a sorte de ser leitor desde os 7 anos. Lia tudo o que me caía nas mãos: livros de casa, de parentes, de vizinhos. Eu era de família evangélica e tinha a obrigação de ler a Bíblia, recitar versículos. Ouvia e recontava histórias na Escola Dominical. Não me converti ao cristianismo, mas à Literatura. Lia escondido histórias em quadrinhos. Mais tarde, estudei História, na antiga Universidade do Brasil, e, com a anistia e a reintegração dos expulsos pela ditadura militar, comecei a lecionar Literatura na UFRJ. O menino ledor que fui se tornou professor do professor que me tornei.

Quais foram as primeiras narrativas e os clássicos que o atraíram?
Santos Além da Bíblia e dos gibis – como O Príncipe Submarino, Capitão Marvel e Nioka, a Rainha da Selva -, eu me encantei com livros tão variados como O Lobo do Mar, de Jack London, A Volta ao Mundo em 80 Dias, de Júlio Verne, Terras do Sem Fim, de Jorge Amado… O que me atraía era a sensação de gozo literário. Ninguém me orientava, e minha escola não tinha biblioteca. Eu lia livros de adultos. Como todo mundo antes da chegada da televisão, eu ouvia novelas de rádio. Elas também ajudaram a formar meu gosto. Como se vê, qualquer porta de entrada para a literatura é boa.

Qual é sua opinião sobre as adaptações de obras literárias para a TV?
Santos Em alguns casos elas são interessantes. Em outros, não. Temos de ver caso a caso, fazer a crítica da adaptação, verificar o que o meio televisivo acrescenta à obra em particular, o que subtrai. Veja o caso da minissérie Grande Sertão Veredas [exibida pela Rede Globo em 1985], por exemplo. Ela foi dirigida por Walter Avancini. Eu o conheci. Ele, especificamente, fez boas adaptações de obras literárias porque era bom leitor de romances. O mais importante sempre é a capacidade de fabular que se apresenta, seja por meio da telenovela, de um livro, do teatro, da escola de samba.

Como é possível fazer a transição das narrativas ditas mais “fáceis”, como os livros de auto-ajuda, para as da tradição literária culta? É desejável que isso aconteça?
Santos Um leitor pode passar dos livros de auto-ajuda, por exemplo, para uma literatura mais complexa, de proposta, por oposição à de entretenimento. Essa transição é desejável, mas não se deve ter preconceito contra o degrau de baixo e, sobretudo, não se pode forçar ninguém. O bom gosto literário não se aprende, como Geografia ou Matemática. Além disso, desconfio do valor de bibliotecas imprescindíveis. Para mim, elas são aquelas que conseguem seduzir o leitor.

De um lado há alunos que não gostam de ler e, de outro, uma lista de livros para o vestibular. Como atrair o jovem para autores clássicos?
Santos O vestibular deve tratar apenas da história da literatura: em que contexto foi publicado Angústia [romance de Graciliano Ramos de 1936], em que escola se encaixa Rachel de Queiroz [1910-2003]. A melhor forma de levar um jovem a detestar Machado de Assis ou Guimarães Rosa é apresentá-los como obrigatórios. Há poucas chances de vir a amar a literatura pelas vias didática, pedagógica, pragmatista etc. Literatura é um prazer que pode ser estimulado, e não prescrito.

E como se faz isso?
Santos As formas de despertar o interesse do leitor hoje pelos clássicos são as de sempre, não há segredos. Uma delas é levá-lo, sem didatismo, a descobrir o gosto pela ficção. Na verdade, redescobrir: toda criança joga, fabula, imagina, inventa histórias, desenha, representa, canta, mente – e tudo isso é da mesma natureza que o prazer pela leitura.

Seus alunos ficavam seduzidos por episódios de sua história, como o dia em que seu pai trouxe para casa uma coleção de obras de Lima Barreto. Além da experiência pessoal, que outros recursos são válidos para despertar o interesse pelos livros?
Santos O professor pode usar qualquer método, dentro da ética, da lei e do programa. Ainda não se inventou – e não só para ensinar Literatura – pedagogia melhor que a socrática: um mestre perguntador incansável que forma com os discípulos um grupo de afeição. Se o professor questiona, qualquer resposta é boa e pode se transformar em outra pergunta, até o infinito. Se o mestre anda com os discípulos, ainda que meia hora por dia ou por semana, faz nascer a afeição, positiva ou negativa. Sempre gostei dos alunos que não queriam ler nada, nunca.

A paixão é imprescindível para o ensino de Literatura?
Santos Paixão é um sentimento do qual brotam alegria e tristeza, simulta-neamente. Parece ser imprescindível ao ensino de qualquer coisa.

A escola pode, por outro lado, afastar os alunos da literatura?
Santos Sim, uma vez que impõe padrões que não interessam. Uma das barbaridades que ainda são feitas no estudo de poesia, por exemplo, é decompor o poema, analisá-lo gramaticalmente, semioticamente, estruturalmente etc. Es- se é um recurso masoquista, pois o poema é muito maior que sua análise. Quem faz isso deveria decompor substâncias e olhá-las com microscópio. Não sou contra a teoria literária, mas me oponho a quem apenas olha o texto e esquece o resto. O primeiro recurso pedagógico deve ser sempre o da sedução.

Qual é sua opinião sobre os programas de incentivo à leitura, tocados por organizações não-governamentais, que levam livros a comunidades carentes, por exemplo?
Santos Acho esses programas bons. Eles provavelmente funcionam porque exibem o livro para o público, o colocam à disposição. Conheço alguns, e seu mérito é não usar a literatura para ensinar qualquer coisa – como, em geral, se vê na escola. Seu objetivo é estimular a leitura por meio do gozo literário, quer dizer, por ela mesma.

O que esperar dos leitores que hoje cursam Letras ou Pedagogia?
Santos Que se rebelem. Que não aceitem os padrões e que, especialmente, insistam em ler e estudar os livros que lhes dão prazer. Os defeitos de um Paulo Coelho, por exemplo, só aparecerão se seus livros forem discutidos. Trata-se, inclusive, de um autor com uma qualidade incontestável, a de ser um bom contador de histórias. Discuti a literatura da qual ele é representante no livro Paulo e Virgínia, que resulta da minha tese de doutorado e aborda o ensino de Letras e a maré literária esotérica.

O que é literatura de qualidade? Esse padrão é sempre imposto pela academia ou pode ser construído em conjunto com o leitor?
Santos A literatura de qualidade é a que dá a sensação de o verdadeiro ser falso e vice-versa. Ela precisa causar um estranhamento que vem de repente num trecho qualquer, num verso despretensioso, e trazer no seu conjunto a colocação de um problema humano a ser resolvido – que, no entanto, a literatura não resolve. Esse é o meu critério, mas naturalmente há outros. A academia – qualquer academia – não tem poder para impor um critério de qualidade, felizmente.

Darwin, Marx, Einstein e Freud são, para o senhor, perturbadores do sono do mundo. Em que medida eles importam para o estudo da literatura? Faltam ao leitor contemporâneo noções básicas a respeito dos pensadores que moldaram nossa cultura?
Santos Sim, faltam. Se não conhecemos as proposições filosóficas e científicas que ergueram o mundo de hoje nos excluímos da humanidade. Ignorantes daquilo que nos trouxe até aqui, caímos no individualismo feroz. Não nos reconhecemos nas coisas que usamos. Cultura é a habilidade exclusivamente humana de estranhar o mundo.

Uma das idéias defendidas pelo senhor é a de que a literatura é uma forma de se encantar com o mundo sem a necessidade de recorrer ao sobrenatural. Então a literatura deve ser reconfortante?
Santos Não. Ao contrário. Para mim, ela é um desconforto. Os bons romances nos colocam propostas sobre as quais temos de decidir. Veja este exemplo: a “polaquinha”, personagem de Dalton Trevisan, na publicação de mesmo nome, é admirável ou detestável? A literatura é uma das muitas religiões sem Deus. O êxtase que provoca se manifesta neste mundo e não está garantido – como no reino dos céus -, mas é uma conquista. Como colocar isso em prática é muito difícil de responder.

Seu novo livro é um grande passeio por outras obras e pelas idéias que marcaram a cultura ocidental contemporânea, e o senhor faz questão de não apresentar conclusões. Isso fica por conta do leitor?
Santos De fato, concluo pouco. A graça da obra, se ela existir, é preparar a jogada. Um professor nunca deve atrapalhar com juízos de valor a satisfação que o aluno está tendo com a leitura – seja qual for o texto, de puro entretenimento ou de estudo. Ele não deve também desprezar a opinião do estudante – que é tão legítima quanto a dele, com a única diferença de que o mestre tem um grau de informação maior.