ROTANEWS176 24/06/2024 20h54 Por Rodrigo Mozelli
“Mãe de todos nós” costuma ser representada coberta de pelos pelo corpo, mas avanços científicos indicam que a coisa pode não ser bem assim.
Reprodução/Foto-RN176 Reconstrução da hominídea Lucy, exposta no Museu da Evolução, no Palácio da Cultura e Ciência, em Varsóvia (Polônia), em 2018 (Imagem: GregGrabowski/Shutterstock)
Há 50 anos, foi descoberto um crânio fossilizado quase completo e centenas de pedaços de osso de um espécime feminino, datado com 3,2 milhões de anos, do gênero Australopithecus afarensis, chamada de “a mãe de todos nós”. Essa é Lucy, que recebeu este nome em homenagem à música “Lucy in the Sky with Diamonds”, dos Beatles.
Embora Lucy tenha resolvido alguns enigmas evolutivos, sua aparência continua sendo um mistério. Representações clássicas a recriam com pelo grosso marrom-avermelhado, com rosto, mãos, pés e seios aparecendo em matagais mais densos. Só que essa imagem cabeluda de Lucy pode estar errada.
Conforme artigo do The Conversation, da professora de filosofia da Universidade Estadual de Kennesaw (EUA), Stacy Keltner, os avanços tecnológicos na análise genética sugerem que Lucy pode não ter tido pelos, ou, pelo menos, muito mais velada.
Lucy e sua relação com a nudez humana
- Segundo a história co-evolutiva dos humanos e piolhos, nossos antepassados perderam a maioria dos pelos de seus corpos entre três e quatro milhões de anos atrás e só vestiram roupa entre 83 mil e 170 mil anos atrás;
- Isso significa que, durante mais de 2,5 milhões de anos, os primeiros humanos e seus antepassados estiveram completamente nus;
- A maneira como Lucy foi retratada nos jornais, livros didáticos e museus pode revelar mais sobre nós do que sobre ela mesma;
- Conforme a professora, a perda de pelos corporais nos primeiros humanos foi provavelmente influenciada por combinação de fatores, incluindo termorregulação, atraso no desenvolvimento fisiológico, atração de parceiros sexuais e afastamento de parasitas;
- Fatores ambientais, sociais e culturais podem ter incentivado o uso de roupas.
Reprodução/Foto-RN176 Reconstrução de um Australopithecus Afarensis, espécie de Lucy e possível ancestral dos humanos modernos; contudo, Lucy poderia ter bem menos pelos do que como costuma ser representada (Imagem: Reprodução)
Nudez e a vergonha
Dado que os bebês humanos necessitam de longo período de cuidados antes de poderem sobreviver por si próprios, diferente de outros animais, os investigadores evolucionistas interdisciplinares teorizaram que os primeiros humanos adotaram a estratégia da união de pares – um homem e uma mulher formando parceria após formarem forte afinidade um pelo outro. Trabalhando juntos, os dois podem administrar mais facilmente anos de cuidados parentais.
Contudo, como os seres humanos são sociais e vivem em grandes grupos, são tentados a quebrar a monogamia, o que tornaria mais difícil a criação dos filhos. Por isso, segundo Keltner, era necessário algum mecanismo para garantir o pacto sócio-sexual. Esse mecanismo provavelmente foi uma vergonha.
No documentário “Qual o problema da nudez?”, o antropólogo evolucionista Daniel MT Fessler explica a evolução da vergonha:
O corpo humano é uma propaganda sexual suprema… A nudez é uma ameaça ao contrato social básico, porque é um convite à deserção… A vergonha nos encoraja a permanecer fiéis aos nossos parceiros e compartilhar a responsabilidade de criar nossos filhos.
Daniel MT Fessler, antropólogo evolucionista, no documentário “Qual o problema da nudez?”
Os humanos, descritos como “macacos nus”, são únicos por não terem pelos (ao menos, não como nossos ancestrais) e pela adoção sistemática de roupas. Somente com a proibição da nudez, a “nudez” se tornou realidade.
Conforme nos desenvolvemos, a filósofa entende que devem ter sido postas em prática medidas para fazer cumprir o contrato social, tais como sanções punitivas, leis, ditames sociais, especialmente com relação às mulheres.
Foi assim que teria surgido a relação entre vergonha e nudez humana. Estar nu é quebrar normas e regulamentos sociais. Portanto, você está propenso a sentir vergonha. O que conta como nu em um contexto, entretanto, pode não ser em outro.
Na Inglaterra vitoriana, por exemplo, tornozelos nus decerto provocavam escândalo. Hoje, os tops nus em várias praias do mundo são comuns (e, apesar de a autora citar a vergonha em relação à nudez, vale lembrar que existem várias praias nudistas mundo afora, inclusive no Brasil, como a de Tambaba, em João Pessoa [PB]).
A nudez pode suscitar uma gama de sentimentos – desde erotismo e intimidade até vulnerabilidade, medo e vergonha. Mas não existe nudez fora das normas sociais e das práticas culturais.
Reprodução/Foto-RN176 Reconstrução intuitiva dos tecidos moles de Lucy (sem cabelo e pigmento) produzida em 2018 e reconstruída sobre o esqueleto (Imagem: Brassey et al. [2018])
E como Lucy se encaixa nisso tudo?
Independentemente da densidade do seu pelo, Lucy não estava nua, afirma a professora. Mas, assim como o nu é uma espécie de vestido, Lucy, desde sua descoberta, “tem sido apresentada de formas que refletem pressupostos históricos sobre a maternidade e a família nuclear”, explica a profissional.
Por exemplo, Lucy é retratada sozinha com um companheiro masculino, ou com um companheiro masculino e filhos. Suas expressões faciais são calorosas e contentes ou protetoras, refletindo imagens idealizadas da maternidade.
Stacy Keltner, professora de filosofia da Universidade Estadual de Kennesaw (EUA), em artigo do The Conversation
Ela pontua que a busca moderna de visualizar nossos antepassados distantes tem sido criticada como espécie de “ciência da fantasia erótica”, na qual os cientistas tentam preencher as lacunas do passado baseados em seus próprios pressupostos sobre mulheres, homens e suas relações entre si.
Em artigo de 2021, uma equipe interdisciplinar de investigadores tentou uma abordagem diferente. Eles detalham sua própria reconstrução de Lucy, destacando seus métodos, a relação entre arte e ciência e decisões tomadas para complementar as lacunas no conhecimento científico do fóssil histórico e outros pontos.
O processo é contrastado com outras reconstruções de hominídeos, que costumam não ser acompanhadas de justificações empíricas fortes “e perpetuam conceitos errados misóginos e racializados sobre a evolução humana”.
Historicamente, explica a professora, as ilustrações dos estágios da evolução humana tendem a culminar em um homem europeu branco. E muitas reconstruções de hominídeos femininos exageram características “ofensivamente associadas às mulheres negras”.
Um dos co-autores de “Visual Depictions”, o escultor Gabriel Vinas, oferece nova visão da reconstrução de Lucy em “Santa Lucia” – escultura em mármore de Lucy como uma figura nua envolta em pano translúcido, representando as próprias incertezas da artista e as incertezas da aparência misteriosa de Lucy.
FONTE: OLHAR DIGITAL