Médico que estupra pacientes: o que os hospitais têm feito para prevenir abusos contra paciente sedados?

ROTANEWS176 E POR BBC NEWS BRASIL 20/01/2023 12:35                                                                                Por Bruna Alves

Alguns meses separam a notícia sobre o médico anestesista, preso por estuprar uma mulher durante uma cesariana, a do atual médico colombiano, detido recentemente pelo mesmo motivo, entre outras acusações, sendo que sequer ele estava apto para exercer a função de médico, tampouco de anestesista, no Brasil.

 

Reprodução/Foto-RN176 Em nenhum momento, o médico ginecologista ou qualquer outro especialista deve ficar sozinho com a paciente na sala – GETTY IMAGES

E esses são apenas os casos de conhecimento público. Mas, certamente há outros, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

No entanto, aqui não vamos falar da conduta específica de um profissional, mas sim de um contexto de violação de direito das mulheres no que se refere ao atendimento médico. O que os hospitais, organizações e entidades relacionadas têm feito, efetivamente, para frear crimes de violência contra a mulher?

A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro destaca que as mulheres podem ser acompanhadas por uma pessoa de sua livre escolha durante todo o trabalho de parto. “Esse direito das mulheres foi reforçado nas unidades da rede estadual, com a instalação de cartazes informativos. Além disso, as unidades de saúde seguem protocolos rígidos de segurança do paciente e parto seguro, que foram revisados por grupos técnicos”, diz a pasta.

De acordo com Guilherme Nadais, médico e vice-presidente do Cremerj, o órgão tem como principal função fiscalizar as condições do exercício da profissão médica, receber denúncias e, se necessário, abrir sindicância para investigação. Ele também tem a responsabilidade de apurar e punir eventuais infrações éticas ou mesmo crime cometidos por médicos.

“O que a gente faz são palestras, educação continuada, instruímos as pessoas para evitar que ocorram essas práticas não condizentes com o ato médico, mas não seria factível ao conselho ter uma busca ativa das possíveis infrações éticas que ocorrem em todas as unidades de Saúde do Estado do Rio de Janeiro”, argumenta Nadais.

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), disse, em nota, que tem orientado os médicos sobre a forma de examinar o paciente ou aproximar-se dele para fazer o exame físico. “Quando é um exame ginecológico, urológico, ou proctológico, é necessário que exista um acompanhante de sala, que tenha um técnico ou um auxiliar que presencie o exame também”, alega a entidade.

O Cremesp lembra também que o uso de câmeras de vigilância já existe em muitas instituições de assistência à saúde, mas é preciso observar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), uma vez que o paciente tem direito à sua privacidade e sigilo.

“Atualmente, muitos procedimentos cirúrgicos são filmados, gravados em mídia digital e entregues ao paciente quando recebem alta ou passam a compor o próprio prontuário. Sempre visando a proteção e segurança para ambas as partes, paciente e equipe”, pontuou a pasta.

O Ministério da Saúde foi contatado, mas até a publicação dessa reportagem não tivemos resposta. A Federação Brasileira de Hospitais também não respondeu as solicitações.

Já o Conselho Federal de Medicina (CFM) disse que não poderia acrescentar nenhum posicionamento à discussão porque, segundo ele, esses crimes não têm relação alguma com a entidade, que passou o bastão para a Sociedade Brasileira de Anestesiologia e demais órgãos relacionados.

Reprodução/Foto-RN176 Outra saída para inibir esses crimes seria haver uma ouvidoria eficiente ou outro canal onde a paciente pudesse denunciar sem medo de represálias – GETTY IMAGES

O que fazer para evitar crimes semelhantes às mulheres?

 José Branco, médico infectologista, fundador e atual diretor executivo do Instituto Brasileiro Para Segurança Dos Pacientes (IBSP) explica que, a princípio, é preciso que os hospitais verifiquem se o CRM (registro profissional) do médico está ativo regularmente. É importante saber também se o profissional já teve alguma queixa na polícia, mas isso, poucos fazem.

Já para evitar crimes de violência em procedimentos cirúrgicos, diz Branco, os hospitais precisam simplesmente cumprir as normas básicas. Isso significa que, em nenhum momento, o médico ginecologista ou qualquer outro especialista, deve ficar sozinho com a paciente na sala.

Ter uma enfermeira e uma técnica de enfermagem no centro cirúrgico (chamadas de circulantes), além dos médicos, seria o mínimo, dependendo da complexidade do caso, embora não seja difícil encontrar hospitais, sobretudo, em regiões mais afastadas, que não segue protocolos.

“O problema é que o Brasil é um país continental, onde há diferentes estruturas hospitalares, e nem sempre tem a quantidade de profissionais adequados para realizar os procedimentos”, diz Branco, citando a importância do selo de acreditação, que atesta o bom gerenciamento das unidades.

Os hospitais, tanto públicos quanto particulares, que receberam essa certificação de uma comissão técnica especializada, seja ela nacional ou internacional, evoluíram rapidamente e isso trouxe, consequentemente, mais segurança às pacientes.

Por isso, cobrar dos órgãos responsáveis o selo de acreditação ajudaria muito a diminuir ou até mesmo a excluir crimes de violência contra a mulher. Em contrapartida, os que não forem acreditados, seguiriam à mercê de sua própria gestão.

Uma outra saída para inibir esses crimes seria haver uma ouvidoria eficiente ou outro canal onde a paciente pudesse denunciar sem medo de represálias, tendo em vista que ela pode ter que voltar ao local e ser atendida pelo mesmo médico.

Para Nálida Coelho Monte, defensora Pública, coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo, também deveria haver nos próprios hospitais ambientes menos hierarquizados, para que qualquer pessoa pudesse realizar denúncias sem ter medo de perder o emprego ou sofrer assédio moral.

“Deveriam aprimorar esse mecanismo de denúncias, garantindo aos cidadãos seriedade, privacidade e acolhimento, coisas que não estão acontecendo hoje. Quando esses órgãos não recebem esses relatos da forma adequada, as mulheres são, inclusive, desestimuladas a denunciar. E eu acho que deveria haver uma atuação mais eficaz dos conselhos que fiscalizam as profissões e do estabelecimento de protocolos para atuações médicas”, opina a defensora pública.

Ela afirma também que os conselhos de classe, secretarias, ministério da saúde e afins são responsáveis pela forma de armazenamento dessas informações em prontuários médicos, além de defender que eles têm responsabilidade com a prevenção da violência através da capacitação de profissionais em direitos humanos das mulheres e violência de gênero.

“Se essas omissões não existissem, essas condutas poderiam ter sido evitadas, mas aqui estamos falando em um aspecto mais administrativo. Todos esses órgãos competentes que precisam estar mais envolvidos na prevenção dessas condutas, ao invés de se eximirem dessa discussão, têm que assumir responsabilidades em relação a esse tema, porque enquanto isso não acontecer, não evitaremos essas ocorrências”, levanta a bandeira, a promotora de Justiça de São Paulo.

Aqui, porém, há um entrave, já que os conselhos alegam que não seria possível fiscalizar todos os hospitais de sua região. “Se um crime não é reportado à polícia, ela não tem como saber que ele ocorreu. Seria impossível o Conselho sair fiscalizando todas as unidades de saúde do Estado do Rio de Janeiro, ele não teria essa capacidade, na prática”, argumenta, Nadais, vice-presidente do Cremerj.

Outro ponto citado pelos especialistas no combate a esses crimes é a falta de educação. Em geral, a maioria das pessoas não conhecem seus direitos básicos, logo, não tem como exigi-los.

“O governo federal e os próprios hospitais precisam fazer campanhas de esclarecimento para que a população conheça os seus direitos e receba tratamentos mais humanizados. Os países que conseguiram melhorar foram com essas campanhas educativas e demoradas dizendo que a violência estava em todos os lugares, inclusive, nos serviços de saúde”, observa Maria da Guia de Medeiros Garcia, médica ginecologista, e gerente de atenção à saúde da Maternidade Escola Januário Cicco da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (MEJC-UFRN), vinculada à Rede Ebserh.

Segundo Garcia, no Brasil, as campanhas são escassas, por isso, toda ajuda do Conselho Federal de Medicina (CFM), dos regionais, das sociedades médicas e demais entidades relacionadas seriam bem-vindas.

“Eu acredito que o mais importante é a consciência da classe médica, que como tudo na vida, vem com a educação. Eu acho que falta uma conscientização maior nos cursos de medicina e nos programas de residência médica, que é a forma que o médico tem de se qualificar profissionalmente”, acrescenta Nadais, vice-presidente do Cremerj.

Garcia ressalta também que a lei do acompanhante, teoricamente, dá o direito a parturiente de ser acompanhada durante todo o trabalho de parto. Mas, na prática, nem sempre ela é cumprida, assim como tantas outras.

Isso porque, o governo sanciona a lei, entretanto, muitas vezes, não dá condições para cumpri-la, porque para o acompanhante entrar, ele precisa receber recomendações, vestimentas e, muitas vezes, estão em falta, ou a sala é muito pequena. É tudo muito mais complexo do que só existir o número de uma lei para que ela seja, efetivamente, cumprida.

Para inibir o êxito de crimes de violência hospitalar, há possibilidade também de instalar câmeras de segurança, como já citado anteriormente, entretanto, elas não são vistas como uma solução para resolver o problema, tendo em vista que a intimidade da paciente ficaria exposta em gravações.

“A gente tem que ter um pudor. O ato médico é uma coisa muito séria e isso não pode ser entregue a qualquer pessoa. E se alguém usar essas imagens para expor a pessoa?”, questiona Jedson Nascimento, diretor de Defesa Profissional da Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA), ressaltando que tudo tem um lado bom e outro ruim.

Saída de medicamentos e sedativos deve ser fiscalizada

“Teoricamente, deveria haver em todos os hospitais um departamento, farmácia ou uma equipe responsável pela quantidade de entrada e saída de sedação. Mas 75% do atendimento de saúde vem do Sistema Único de Saúde, e nem todas (as unidades) têm condições ideais de trabalho. Justamente, por isso que se vê uma demanda enorme. É uma coisa muito complexa, porque milhares de pessoas são atendidas por dia, com muitos procedimentos cirúrgicos”, comenta Branco, diretor executivo do Instituto Brasileiro Para Segurança Dos Pacientes.

Para a defensora Pública, nada justifica a falta de controle da saída de sedativos. “Tem que haver um controle em relação a utilização dessas substâncias e ao armazenamento dessas informações nos prontuários médicos. E além do médico, outras pessoas têm acesso a eles. Por isso, me parece que há um cenário de omissão intencional a essas condutas praticadas pelos profissionais. É um cenário de normalização de todas as pessoas envolvidas naquele caso, uma espécie de conivência com o erro, com a má prestação de serviço ou mesmo com o crime”, enfatiza.

Portanto, se não houvesse desrespeito com as mulheres, possivelmente, haveria estranheza na quantidade excessiva de sedação ou na adoção de medidas que não foram autorizadas previamente por elas, como a retirada de seu acompanhante na hora do parto.

Reprodução/Foto-RN176 Segundo os especialistas, raramente, alguma avaliação psicológica é feita na contratação de um médico – GETTY IMAGES

Médicos são gente como todo mundo

 Embora salvem vidas, os médicos também são frutos de uma sociedade e, como tais, não estão isentos de terem má conduta ou de cometerem crimes. “Um médico pode até ser um psicopata e as instituições precisam ficar atentas aos sinais. Infelizmente, vão aparecer mais casos e nós vamos ter que crescer assim, dolorosamente, com essas denúncias vindo a público, igual crimes de homofobia, racismo”, lamenta Branco.

E vale dizer que, segundo os especialistas, raramente, alguma avaliação psicológica é feita na contratação de um médico.

“Não é feito absolutamente nenhuma avaliação da personalidade dessa pessoa, e se médicos não tivessem esses problemas, não se suicidavam e não matavam ninguém. Por essa negligência e outros fatores, a violência contra as mulheres no Brasil tem crescido assustadoramente”, reflete a médica ginecologista.

“Então, isso daí (os crimes de estupro), na realidade, é só uma amostra do que está acontecendo com as mulheres no Brasil em todas as camadas sociais, em todas as profissões e em todos os setores que essa mulher transita”, exemplifica Garcia.

Contudo, a ginecologista afirma que os médicos não estão acima de todos, mas, espera-se que o profissional de saúde que está cuidando da vida da paciente em um momento de vulnerabilidade tenha um cuidado maior.

Além disso, ao que tudo indica, avistamos apenas a ponta do iceberg, conforme elucida a defensora pública de São Paulo. “É possível que o número de casos de crimes de estupro seja bem maior, sobretudo, porque eles têm ocorrido em decorrência da sedação. Isso significa que muitas mulheres podem ainda nem saber que sofreram algum tipo de violação”, diz a promotora.

Países modelos

Segundo os especialistas, alguns países têm modelos muito bem estruturados em termos de qualidade e segurança dos pacientes. Esse é o caso do Canadá, por exemplo. “Lá existe uma preocupação muito grande com a experiência do paciente, que analisa toda a sua jornada durante sua estadia no hospital. Isso faz com que o sistema esteja em constante melhora”, destaca Branco, lembrando que o atendimento é avaliado desde o atendimento na recepção até procedimentos pós-cirúrgicos.

Segundo ele, Inglaterra, Portugal, Noruega e outros países europeus, nesse quesito, também se destacam. Entretanto, não dá para comparar, porque lá, o dinheiro gasto com saúde é muito maior.

“Enquanto entre 95 a 99% desses países têm certificados de qualidade, no Brasil, menos de 10% dos hospitais são acreditados. Isso já dá uma dimensão da diferença”, avalia Branco.

Hospitais que adotam o Protocolo de Cirurgia Segura – um conjunto de regras estabelecidas em um consenso internacional comandado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para melhorar todos os âmbitos de uma cirurgia -, tendem a oferecer mais segurança às pacientes.

Ninguém age sozinho, dizem especialistas

“A verdade é que a ocorrência de um crime é responsabilidade de toda a sociedade. Mas no caso de uma equipe cirúrgica, eu acredito que todos deveriam ser responsabilizados, porque tem vários membros, tem um cirurgião, o primeiro auxiliar de instrumentação, a circulante, o anestesista. É uma responsabilidade coletiva, mas é importante dizer que há muitos crimes que não são flagrados”, opina o vice-presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro.

Ainda de acordo com Nadais, uma vez confirmado que houve um crime dessa natureza (de estupro), o médico deveria ser afastado definitivamente do exercício da profissão.

Para evitar o cenário que estamos descobrindo, a defensora pública acredita que penalizar uma única pessoa, no caso, os médicos responsáveis pelos crimes em si, não é o suficiente. “Essa responsabilização deve ocorrer em todas as instâncias, mas, nós observamos uma falha geral e o direito das mulheres só tem avançado a partir da violação de seus corpos e de suas vidas”, comenta.

Médico colombiano não podia atuar no Brasil

Segundo o vice-presidente do Cremerj, na época em que ocorreram os crimes, em 2020 e 2021, o médico colombiano não estava habilitado para atuar no Brasil.

“Ele não tinha inscrição no Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, não tinha o revalida, que é a prova que faz com que o médico formado no estrangeiro valide seu diploma no Brasil e não era membro da Sociedade Brasileira de Anestesiologia”, diz o médico.

Ele fez a prova do revalida no dia 3 de dezembro de 2021 e recebeu a expressão no CRM aqui do Rio de Janeiro no dia 31 de janeiro de 2022. Até então, ele estava num suposto programa de supervisão de uma universidade do Rio de Janeiro”, acrescenta.

Teoricamente, o médico só poderia atuar no país a partir de 2023, e mesmo assim, não como anestesista. Em outras palavras: se os trâmites tivessem corrido de forma legal, ele não teria tido a “oportunidade” de cometer os crimes dos quais está sendo acusado.

“Ninguém comete um crime sem que outras pessoas tenham contribuído para sua execução. Ele (o médico colombiano) estava totalmente irregular aqui. O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro vai apurar esses fatos, porque houve uma falha geral”, afirma o vice-presidente do Cremerj.

Nesse sentido, o diretor de Defesa Profissional da Sociedade Brasileira de Anestesiologia, Jedson Nascimento, lembra que o anestesiologista precisa se especializar pelo período de três anos para atuar na área.

“Hoje, profissionais sérios estão sendo questionados por causa de um criminoso desqualificado que ocupou um espaço que não lhe cabia. O erro na contratação de profissionais inadequados recai sobre todos nós, sendo que pouco se houve falar em complicações cirúrgicas causadas pela anestesia. A busca pela qualidade é a nossa túnica”, conclui o diretor.