ROTANEWS176 E POR BBC NEWS BRASIL 30/08/2022 17h55 Por Evanildo da Silveira – De Vera Cruz (RS) para BBC News Brasil
A invenção do exame quase levou o médico Manoel Dias de Abreu a ganhar o Prêmio Nobel em três oportunidades.
Reprodução/Foto-RN176 Manoel Dias de Abreu foi indicado três vezes ao Prêmio Nobel por causa de seu invento Foto: Revista Brasileira de Tuberculose / BBC News Brasil
Ela é conhecida por vários nomes mundo afora. Roentgenfluorografia, na Alemanha; radiofotografia, na França; schermografia, na Itália; fotorradioscopia, na Espanha; fotofluorografia, na França e na Suécia; e microrradiografia, em Portugal. No Brasil, é chamada de abreugrafia e quem tem 50 anos ou mais deve ter feito uma para poder se matricular na escola ou ingressar num novo emprego.
O que poucos sabem é que este exame do pulmão, que começou a ser desenvolvido há 100 anos e revolucionou o diagnóstico e o tratamento da tuberculose, foi inventado pelo médico brasileiro Manoel Dias de Abreu — daí o seu nome — e que, por isso, ele foi indicado três vezes ao Prêmio Nobel, em 1946, 1951 e 1953.
A abreugrafia nada mais é uma imagem de raios-x, no caso dos pulmões, como qualquer outra, mas com uma diferença essencial: a forma como ela é feita. Uma radiografia depende da fonte de raios-X, que são ondas eletromagnéticas de frequência muito alta geradas num tubo.
“O paciente é o ‘alvo’ dessa radiação”, explica o físico Peter Schulz, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Do outro lado dele está um filme, ou uma tela digital de sensores fotossensíveis, que registra a imagem.”
Essa radiação é altamente penetrante, mas é menos ou mais absorvida, dependendo do tecido humano sobre o qual incide. Assim, é possível ver ossos e outras estruturas e órgãos dentro do corpo. O problema é que esse registro da imagem é caro.
“Todo mundo que já tirou uma radiografia do tórax ou abdômen sabe que ela é enorme, do mesmo tamanho do que foi radiografado”, diz Schulz. “Então a pergunta sobre a qual Manuel de Abreu se debruçou foi: como realizar radiografias em larga escala, reduzindo o custo e o tempo, especificamente dos pulmões, pois no começo do século 20 a tuberculose era um problema de saúde pública muito grave?”
A ideia, que demorou mais de uma década para ser desenvolvida, consistia em fotografar com um filme comum, bem mais barato, pois a fotografia com câmeras portáteis já era uma prática disseminada no começo do século passado.
“Assim, a imagem dos raios-x atravessando a pessoa examinada era gerada em uma tela de material fluorescente, que fazia parte do aparelho”, explica Schulz. “E essa imagem, agora em luz visível, era fotografada da mesma forma como fotografamos uma paisagem qualquer.”
Segundo o médico radiologista Cesar Higa Nomura, presidente da Sociedade Paulista de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (SPR), a abreugrafia era um método rápido e eficiente para diagnóstico de tuberculose com baixo custo, uma vez que os filmes fotográficos eram mais baratos que os radiográficos.
“Além disso, era um método portátil que permitiu o uso em larga escala”, acrescenta. Enquanto um filme radiográfico tem um tamanho de 30 x 40 cm, os usados nas câmeras comuns — e na abreugrafia, portanto — medem apenas 35 mm ou 70 mm.
Reprodução/Foto-RN176 Profissionais de posto de saúde de Vitória prontos para realizar abreugrafia Foto: Revista Brasileira de Tuberculose / BBC News Brasil
Uma pergunta que pode surgir: mas se a imagem já aparecia na tela fluorescente, por que tirar uma foto? “O exame só com a imagem fluorescente pode ser bem mais demorado e os raios-X são ionizantes e, portanto, prejudiciais à saúde”, responde Schulz. “E sem registro para checagem posterior. Com a fotografia, basta uma exposição rápida para obtê-la, pois a foto é examinada depois.”
No caso da abreugrafia, a pequena foto passou a ser parte de uma carteirinha, que podia ser apresentada onde fosse necessário, como os certificados de vacinação contra a covid-19 atualmente. “Ela é uma convergência bastante engenhosa de tecnologias diferentes, convergência essa que não foi simples, necessitando de muitas etapas de desenvolvimento”, diz o físico da Unicamp.
Formação no Rio e estudos na Europa
Abreu nasceu na cidade de São Paulo, no dia 4 de janeiro de 1892, terceiro filho do português da Província do Minho, Júlio Antunes de Abreu, e da paulista Mercedes da Rocha Dias, de Sorocaba.
Ele ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com apenas 15 anos e se formou aos 21, em 1913. Pouco depois ele e a família — além dos pais, um irmão e uma irmã — partiram para Paris, onde Abreu pretendia continuar e aperfeiçoar seus estudos. Por causa da 1ª Guerra Mundial, no entanto, teve de ficar em Lisboa até 1915, quando enfim se mudou para a capital francesa, onde permaneceu por 8 anos.
Reprodução/Foto-RN176 Abreu em sua pose preferida Foto: Academia Nacional de Medicina / BBC News Brasil
Lá, Abreu trabalhou no Nouvel Hôpital de la Pitié, o hospital mais antigo de Paris, sob a chefia do também médico Nicolas Augustin Gilbert (1858-1927). O brasileiro era encarregado de fotografar peças cirúrgicas e, para isso, criou novas técnicas, usando raios-x, descobertos havia pouco tempo, mais precisamente em 8 de novembro de 1895, pelo físico alemão Wilhelm Conrad Röentgen (1845-1923).
Nesse período, Abreu teve uma experiência que certamente o influenciou no desenvolvimento da abreugrafia mais tarde. Usando os raios-x, ele identificou um caso de tuberculose, que não havia sido detectado pelo seu experiente chefe com a percussão e a auscultação com o estetoscópio, método de diagnóstico usado então para examinar o pulmão. Em outro hospital, o Laennec, ele se aperfeiçoou na radiologia pulmonar e desenvolveu a densimetria (mensuração das diferentes densidades) do pulmão.
Foi nesse hospital que Abreu se convenceu de que a fotografia da tela fluorescente, o écran, nos exames feitos com raios-x, poderia ser uma forma barata de diagnosticar a tuberculose em massa. Ele até tentou, por volta de 1919, fazer a fotografia da tela, mas esbarrou em obstáculos técnicos. A luminosidade da fluorescência do écran era muito fraca, longe de ser suficiente para ficar marcada nos filmes com sais de prata das máquinas fotográficas comuns em tão mínima fração de segundo.
Em 1922, ele voltou da França e se instalou no Rio de Janeiro. Ao chegar, encontrou a cidade tomada por uma epidemia de tuberculose, a ponto de ter dito, segundo texto do site a Associação Nacional dos Inventores: “Havia óbitos, não havia doentes, os quais ocultavam seu diagnóstico na espessa massa da população; os poucos doentes que havia, procuravam o dispensário na fase final da doença, quando o tratamento, o isolamento e as várias medidas profiláticas já eram inúteis”.
Abreu retomou, então, as pesquisas para desenvolver o exame que mais tarde levaria seu nome. Em 1924 realizou uma segunda tentativa de obter a fotografia do écran, mas de novo não conseguiu, devido ao mesmo motivo, a baixa luminosidade da tela. Mas prosseguiu na luta contra a tuberculose e por sua influência e de José Plácido Barbosa da Silva, chefe da Inspetoria de Profilaxia contra a Tuberculose, foi criado o primeiro Serviço de Radiologia na cidade do Rio de Janeiro.
Reprodução/Foto-RN176 Primeira abreugrafia registrada – Foto: Roentgen / BBC News Brasil
Mais tarde. ao assumir a chefia do Serviço de Radiologia do Hospital Jesus, a pedido do médico e prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto do Rego Batista, Abreu buscou novamente criar a abreugrafia, em função da incidência de inúmeros casos de tuberculose entre as crianças radiografadas. Finalmente, em 1936, ele conseguiu obter a radiofotografia do écran, agora com nova tecnologia que dava maior fluorescência à tela.
Abreu batizou seu invento de roentgenfotografia, em homenagem ao descobridor dos raios x. O nome foi usado no Brasil até 1939, quando o presidente do 1º Congresso Brasileiro de Tuberculose, Ary Miranda, propôs a mudança para abreugrafia, em honra de seu inventor. A proposta foi aprovada por unanimidade.
Sucesso e popularização
Ainda em 1936 foi construído — pelos técnicos da Casa Lohner, uma subsidiária da Siemens instalada no Rio de Janeiro — o primeiro aparelho para a realização de abreugrafias em série na população, que foi instalado no Hospital Alemão, no Rio de Janeiro, em maio daquele ano.
“A invenção ganhou destaque internacional”, diz o médico Fabiano Reis, do Departamento de Anestesiologia, Oncologia e Radiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. “A técnica rapidamente se disseminou e foi incorporada pelos serviços públicos de saúde do Brasil e de outros países.” Na época, ela era 100 vezes mais barata que uma radiografia tradicional.
Schulz acrescenta que as leis de prevenção da tuberculose no Brasil e no Japão, por exemplo, levaram a que até 60% das populações fossem triadas por esse método. Além disso, segundo a Associação Nacional dos Inventores, foram criadas unidades móveis mundo afora com aparelhos de abreugrafia instalados em veículos, que realizavam as radiografias torácicas em locais públicos e em grandes indústrias. Na Alemanha, por exemplo, até o ano de 1938 o número de exames feitos já ultrapassava os 500 mil.
Antes disso, em março de 1937 foi criado o primeiro Serviço de Cadastro Torácico na cidade do Rio de Janeiro, no qual foi instalado um aparelho de abreugrafia mais aperfeiçoado. “Ali foram examinadas, de 8 a 21 de julho daquele ano, 758 pessoas aparentemente sadias, das quais 44 apresentavam lesões pulmonares”, conta Reis.
“Ao se comprovar sua utilidade e importância, a nova técnica passou a ser adotada em grande escala em outros estados do Brasil e também na Europa e América do Sul.”
A médica e mestre em Saúde Coletiva, Dilene Raimundo do Nascimento, da área de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), lembra que na época a abreugrafia só tinha vantagens. “Pelo seu custo baixo e pela facilidade de operar, tornou possível o exame em massa para o diagnóstico precoce da tuberculose”, explica.
“O diagnóstico precoce da doença possibilitou iniciar o tratamento antes que fosse tarde demais, reduzindo assim o número de mortes.”
Reprodução/Foto-RN176 Aparelho usado para fazer abreugrafia Foto: Revista Brasileira de Tuberculose / BBC News Brasil
De acordo com Nomura, a inovação de Abreu teve impacto grande na saúde pública brasileira da época, que lutava contra a tuberculose, com grande número de acometidos pela doença, diagnosticados em estágio avançado e crescente número de mortes. “Só no Rio de Janeiro no início da década de 1920 as estimativas apontavam cerca de 300 mortes por grupo de 100 mil pessoas”, diz. A informação está no livro O Mestre da Sombras – Um raio-x histórico de Manoel de Abreu.
Com a diminuição progressiva da incidência da tuberculose e os progressos no seu tratamento, os programas de triagem em massa foram sendo interrompidos a partir anos 1970. “Afinal, no começo daquele século a incidência era de 150 casos por 100 mil habitantes (semelhante à covid-19 em algumas ondas em alguns países), mas em 1970 já era de apenas 5 casos por 100 mil”, explica Schulz.
Por isso, em 1974, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se pronunciou contra o uso da abreugrafia em massa, por expor desnecessariamente a população a doses de radiação. “Atualmente, o exame para detecção de tuberculose é feito pela pesquisa do bacilo de Koch no escarro”, conta Reis. “Para rastreamento de algumas patologias pulmonares, são preconizados estudos tomográficos de baixa dosagem, que permitem detecção de eventuais lesões em seus estágios iniciais.”
Apesar disso, a abreugrafia continua sendo lembrada, pelo menos no Brasil, onde o seu Dia Nacional é comemorado em 4 de janeiro, data do nascimento de seu inventor. A homenagem foi estipulada pelo presidente Juscelino Kubitschek, por meio do Decreto nº 42.984, de 3 de janeiro de 1958. Por uma ironia de destino, Abreu viria a morrer quatro anos depois, no dia 30 abril, por causa de uma doença do pulmão — no caso, câncer.
– Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62695479
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