ROTANEWS176 E POR BBC NEWS BRASIL 19/08/2019 11h14 Por Keiligh Baker – BBC News
Pelo menos metade das 800 imagens no atlas de Eduard Pernkopf tem origem nos corpos de gays, ciganos, dissidentes políticos e judeus executados pelo regime de Adolf Hitler.
Quando a neurocirurgiã Susan Mackinnon precisou fazer uma pesquisa para concluir uma operação, ela consultou, como faz com frequência, um livro de anatomia de meados do século 20.
Reprodução/Foto-RN176 Ilustração do atlas mostra o rosto de um homem com a bochecha parcialmente dissecada Foto: Erich Lepier / BBC News Brasil
Com o auxílio das complexas ilustrações desenhadas à mão – mostrando o corpo humano “descascado” camada por camada – Mackinnon, da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, conseguiu concluir o procedimento.
O livro Topographic Anatomy of Man (Anatomia Topográfica Humana), de Eduard Pernkopf, é geralmente considerado o melhor exemplo de ilustrações anatômicas no mundo. É mais rico em detalhes e com cores mais vivas do que qualquer outro.
Pele, músculos, tendões, nervos, órgãos e ossos são revelados em detalhes gráficos.
O livro, muitas vezes chamado simplesmente de Pernkopf’s Atlas (Atlas de Pernkopf), deixou de ser impresso. E os exemplares de segunda mão são vendidos pela internet por valores altos.
Apesar do preço alto, poucos teriam orgulho de exibir o exemplar em sua clínica, biblioteca ou casa. Isso porque as descobertas do livro vieram dos corpos de centenas de pessoas mortas pelos nazistas. São seus corpos – cortados e dissecados – que ilustram o atlas.
É ético usar um livro nazista?
Críticos dizem que o livro está marcado por seu passado obscuro, e os cientistas têm se deparado com a discussão ética sobre o uso da obra.
Mackinnon diz que se sente pouco à vontade com a origem do livro, mas que usá-lo é uma parte crucial de ser um “cirurgião ético”. Ela diz que não poderia fazer o trabalho dela sem consultá-lo.
O rabino Joseph Polak, um sobrevivente do Holocausto e professor de direito da saúde, diz que o livro é um “enigma moral” porque é derivado do “mal real”, mas diz que “pode ser usado a serviço do bem”.
Reprodução/Foto-RN176 Várias cópias do Atlas da Pernkopf são guardadas na Bibilioteca Britânica, na Inglaterra Foto: Keiligh Baker / BBC News Brasil
O livro foi um projeto de 20 anos do médico nazista Eduard Pernkopf, que se destacou no meio acadêmico da Áustria, graças ao seu apoio ao partido de Adolf Hitler.
Ele era descrito por colegas como um “ferrenho” Nacional Socialista que, a partir de 1938, usou todos os dias uniforme nazista para trabalhar.
Quando virou reitor da faculdade de medicina da Universidade de Viena, ele demitiu todos os judeus da faculdade, incluindo três ganhadores do prêmio Nobel.
Em 1939, uma nova lei do Terceiro Reich determinou que os corpos de todos os prisioneiros executados fossem imediatamente enviados ao departamento de anatomia mais próximo, para fins de pesquisa e ensino.
Durante este período, Pernkopf trabalhou 18 horas por dia dissecando cadáveres, enquanto uma equipe de artistas criou as imagens para o livro. Às vezes, o instituto de anatomia estava tão cheio que as execuções precisavam ser adiadas.
Sabine Hildebrandt, da Harvard Medical School, diz que pelo menos metade das 800 imagens no atlas tem origem nos corpos de presos políticos executados: gays e lésbicas, ciganos, dissidentes políticos e judeus.
Reprodução/Foto-RN176 Pernkopf e os ilustradores que trabalharam com ele Foto: None / BBC News Brasil
Na primeira edição do atlas, publicada em 1937, as assinaturas dos ilustradores Erich Lepier e Karl Endtresser incluíam suásticas, além dos dois raios símbolos da SS (Schutzstaffel, a força paramilitar do Partido Nazista).
Até mesmo a edição de dois volumes em inglês, em 1964, incluiu as assinaturas originais, com os símbolos nazistas. Edições posteriores eliminaram esses símbolos.
Reprodução/Foto-RN176 A assinatura de Erich Lepier com uma suástica no centro Foto: Erich Lepier / BBC News Brasil
Milhares de cópias do atlas foram vendidas em todo o mundo e traduzidas para cinco idiomas. Prefácios e introduções nos livros descrevem “desenhos impressionantes” e “peças de arte excepcionais”, sem qualquer menção ao passado sangrento da obra.
Foi somente na década de 1990 que estudantes e acadêmicos começaram a questionar mais profundamente quem eram as pessoas no atlas. Depois que a história brutal foi revelada, o atlas saiu de publicação em 1994.
Mackinnon diz que “nada se compara” com a precisão e detalhes do livro, e é particularmente útil para cirurgias complexas. Segundo ela, a obra ajuda a “descobrir quais dos muitos pequenos nervos que percorrem nosso corpo estão potencialmente causando a dor”.
Mas ela diz que se certifica de que todos os envolvidos na cirurgia estejam cientes das origens obscuras do livro.
“Quando me dei conta da origem sangrenta e maligna desse atlas, comecei a mantê-lo guardado em meu armário da sala de cirurgia”, diz ela.
Reprodução/Foto-RN176 Mackinnon diz que mantém o livro, que tem ‘origem maligna’, guardado no armário da sala de cirurgia Foto: Washington University/ St. Louis / BBC News Brasil
No ano passado, o rabino Polak e o historiador médico e psiquiatra Michael Grodin prepararam um “Responsum” (uma resposta acadêmica baseada na ética médica judaica) sobre se é ético usar o atlas, com base na experiência de Mackinnon.
Eles concluíram que a maioria das autoridades judaicas permitiria o uso das imagens para salvar vidas humanas, sob a condição de que a história do atlas fosse divulgada, para que as vítimas tivessem alguma da dignidade que lhes é devida.
“Veja a doutora Mackinnon. Ela não conseguiu encontrar um nervo e é a melhor em sua especialidade. O paciente disse a ela: ‘quero que minha perna seja cortada se você não conseguir encontrar’. E ninguém quer que isso aconteça”, disse à BBC o rabino Polak.
“Então, ela engoliu em seco e pediu para trazerem o atlas de Pernkopf. Ela encontrou o nervo em minutos por causa dessas ilustrações. Ela me perguntou, como especialista em direito da saúde, sobre a questão moral da situação. E eu disse a ela: se isso vai curar essa pessoa e dar a ela sua vida de volta, então não há dúvida de que o atlas pode ser usado.”
Reprodução/Foto-RN176 A médica Susan Mackinnon durante cirurgia Foto: Washington University/ St. Louis / BBC News Brasil
Pernkopf foi preso depois da guerra e demitido da universidade. Ele foi mantido em um campo de prisão de guerra dos Países Aliados por três anos, mas nunca foi acusado de nenhum crime.
Após sua libertação, ele retornou à universidade e continuou seu trabalho no atlas, publicando um terceiro volume em 1952. Ele morreu em 1955, pouco antes da publicação de um quarto volume.
Mais de 60 anos depois, o atlas ainda é uma das melhores fontes para informações visuais para trabalhos anatômicos e cirúrgicos detalhados, de acordo com Hildebrandt, que ensina anatomia.
“Aqueles de nós que aprenderam a ‘ver’ com o atlas recorrem a ele sempre que há dúvidas. Na cirurgia do nervo periférico, alguns cirurgiões acham que é uma fonte única e insubstituível de informação”, diz ela.
Mas acrescenta: “Pessoalmente, eu não uso as imagens Pernkopf no meu curso de anatomia, a menos que eu tenha tempo para falar sobre a história do livro.”
Reprodução/Foto-RN176 Sabine Hildebrandt escreveu sobre o atlas e diz que, em suas aulas, não usa as imagens do livro se não tiver tempo para falar sobre a origem dele Foto: Dr Sabine Hildebrandt / BBC News Brasil
Jonathan Ives, especialista em bioética da Universidade de Bristol, na Inglaterra, concorda que o atlas é “surpreendentemente detalhado”, mas diz que é manchado pelo “passado horrível”.
“Se estamos usando o livro e colhendo os benefícios, isso implica que somos de alguma forma cúmplices”, diz. “Mas você também pode argumentar que, ao não usá-lo, o atlas seria perdido e não poderia ser usado como um lembrete do que aconteceu.”
Para Mackinnon, continua a ser uma ferramenta vital, mesmo que o seu passado nunca possa ser esquecido.
“Penso que, como uma cirurgiã ética, devo usar qualquer recurso educacional que eu pensasse que me ajudaria a maximizar um resultado bem-sucedido. E penso que meu paciente esperaria isso de mim”, ela diz.
“Na minha experiência, se esses livros forem jogados fora, isso traria atrasos para uma cirurgia nervosa detalhada.”
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