O monge ‘mais letrado do mundo’ que criou a base da computação há mais de 1,2 mil anos

Professor de Carlos Magno, Alcuíno de York foi o autor de um renascimento intelectual na idade média e criou enigmas ensinados até hoje.

ROTANEWS176 E BBC BRASIL.COM 30/12/2017 11:01

A Idade Média, que começou com a queda do Império Romano, é frequentemente descrita como uma época de obscurantismo e declínio intelectual – os livros eram raros e a maioria das pessoas não sabia ler.

 

Reprodução/Foto-RN176 Alcuíno, criador de desafios que deram origem à análise combinatória, era considerado o homem mais sábio do mundo Foto: BBCBrasil.com

No entanto, esse período histórico foi muito mais vibrante intelectualmente do que se pode imaginar. Nele surgiu uma série de problemas de lógica para “afiar a mente dos jovens”, incluindo o clássico desafio da balsa ensinado até hoje – sobre o homem que precisa cruzar um rio com um lobo, uma cabra e uma cesta de repolhos. Ele não pode deixar o lobo comer a cabra, nem a cabra comer o repolho, mas na balsa só cabem ele e mais um elemento.

O autor desse e de diversos outros enigmas foi o monge Alcuíno de York – em seu tempo conhecido como o “homem mais letrado do mundo”.

Ele escreveu um livro só com esse tipo de problemas. Seus desafios consolidaram na Europa as bases para um ramo da matemática chamado análise combinatória – tipo de cálculo que hoje está por trás da programação de computadores e da criptografia moderna.

O colecionador

Sua história de vida ajuda a desafiar o estereótipo sobre o período. Quando Alcuíno nasceu, por volta do ano 732, a Inglaterra era uma colcha de retalhos de pequenos reinos saxões e cristãos – um legado da ocupação romana região.

Alcuíno estudou na pequena escola que havia ao lado da catedral de York, e mais tarde se tornou diretor. Sob sua administração, o colégio se tornou um dos mais prestigiados da Europa.

Ele defendia o aprendizado de matemática e lógica pelo valor do conhecimento, não como forma de encontrar salvação religiosa, como era comum na época.

Reprodução/Foto-RN176  Embora sua biblioteca não tenha sido preservada nos dias de hoje, a devoção de Alcuíno pelos livros ficou registrada em seus próprios escritos | Foto: Getty Images Foto: BBCBrasil.com

Alcuíno reunia livros escritos à mão em uma renomada biblioteca. Além de obras dos primeiros pensadores cristãos, ele conservava tinha fragmentos escritos por filósofos gregos e romanos.

Professor de Carlos Magno

No século 8, os francos – que governavam uma região que hoje é da França – expandiram seu reino sob a liderança do rei Carlos Magno. O império carolíngio foi crescendo até incluir grande parte da Europa, com a ideia de expandir as fronteiras da cristandade.

Além de líder militar poderoso, Carlos Magno era um estudioso. Diferentemente de muitos outros governantes da época, sabia ler e o fazia com frequência – especialmente os livros de pensadores clássicos.

Em 780, ele criou uma corte de intelectuais e se propôs a chamar o melhor professor que existia: todos sabiam quem era.

Foi assim que Alcuíno saiu de York para a capital do império, Aachen (hoje na Alemanha), onde se tornou professor do imperador. A partir de então, ajudou a estabelecer escolas em muitas das catedrais do império até se tornar abade, cerca de 15 anos depois.

Reprodução/Foto-RN176  Alcuíno foi chamado para ser professor de Carlos Magno Foto: BBCBrasil.com

O monge foi o responsável por um ressurgimento intelectual tão significativo que por vezes o período é chamado de renascimento carolíngio.

Ainda que todos os governantes da época venerassem os livros mais por considerá-los bem valiosos do que pela sabedoria quem continham, a sua mera manutenção ajudou a preservar parte dos conhecimentos antigos e fomentar a crença de que valia a pena fazer perguntas sobre a natureza do mundo – e obter respostas sem a inclusão de Deus na equação.

As bases

Embora a ciência não fosse como a de hoje, o conhecimento desenvolvido e preservado na época – como a aritmética e a geometria – criou a plataforma intelectual que tornou possível o desenvolvimento da ciência no futuro.

Muitos historiadores consideram a vida de Alcuíno de York como um ponto de inflexão importante da história intelectual ocidental. Diferentemente dos livros complexos escritos pelos gregos, o trabalho de Alcuíno trazia elementos da vida das pessoas – a cabra, o rio – e incentivava os estudantes a pensarem por si mesmos.

A resposta para o desafio da balsa, aliás, é levar primeiro a cabra, voltar, pegar o lobo, levar para o outro lado e deixá-lo lá. Na volta, trazer a cabra para que ela não fique sozinha com o lobo, deixá-la do primeiro lado, pegar o repolho, levá-lo para o outro lado e voltar novamente para pegar a cabra.

Reprodução/Foto-RN176  Como passar a cabra, o lobo e o repolho para o outro lado do rio, sem que a cabra coma o repolho e sem que o lobo coma a cabra? | Foto: Biblioteca Britânica Foto: BBCBrasil.com

Os enigmas podem ser resolvidos com tentativa e erro, mas, como explica à BBC a matemática Hannah Fry, “há uma maneira de ordenar claramente as possíveis soluções: a análise combinatória”.

“Esse tipo de desafio é a gênese da ideia de análise combinatória: analisar todas as possibilidades e contá-las de forma ordenada, lógica e sistemática”, diz a professora da University College London (UCL), em Londres.

“Se você está escolhendo um caminho, tem que analisar todas as rotas possíveis e escolher a mais rápida. Se você envia uma mensagem secreta, o que os criptografistas fazem é ordenar as diferentes possibilidades e encontrar a resposta. Na computação, muito dos experimentos e cálculos feitos pelos cientistas usam a análise combinatória”, explica ela.

Segundo a cientista, o programa educativo de Alcuíno tem uma mensagem importante: além de útil, encontrar soluções para problemas de lógica pode ser divertido. Isto, em uma época em que a curiosidade era vista com receio, foi uma ideia revolucionária.

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