ROTANEWS176 E POR TC 16/01/2020 15:15
A solidão é um sentimento universal e, ao contrário do que podemos pensar em um primeiro momento, não está relacionada a quantas pessoas estão à nossa volta, mas quanto nos sentimos parte desse grupo. A primeira Matéria de Capa de 2020 usa como ponto de partida a onda crescente de solidão e de estresse que vivemos na sociedade para falar sobre a importância de estabelecermos conexões reais. Assim, poderemos fazer não só deste mês, mas do ano todo um período de reencontros, pertencimento e desenvolvimento em conjunto.
Desde 2011, jovens norte-americanos (entre 13 e 18 anos) passam mais tempo na frente de telas (smartphone, computador etc.) do que com seus amigos e colegas.1 No mesmo período, o sentimento de solidão entre os adolescentes aumentou. Paralelamente, órgãos da saúde de países como Reino Unido2 e Estados Unidos3 adicionaram o termo “epidemia de solidão” às listas de fenômenos que devem ser combatidos por políticas públicas de saúde, abrangendo todas as faixas etárias.
Não é novidade: estamos cada vez mais conectados e, ao mesmo tempo, sozinhos. Seria a solidão um sentimento da nossa época?
Ainda que estejamos falando mais sobre isso atualmente, estudos mostram que, na verdade, é algo tão humano quanto sentir fome. A fome é um lembrete do nosso corpo de que precisamos nos alimentar. A solidão é um lembrete da nossa mente de que precisamos nos reconectar a pessoas queridas ou nos desafiar a fazer algo social.
Na época das cavernas, os seres humanos precisavam ficar em grupos para sobreviver. Quanto mais afastado desse grupo alguém estivesse, mais perigos corria. Naturalmente, o corpo humano desenvolveu um mecanismo para reconhecer o isolamento e a solidão como situações de perigo, vulnerabilidade e dor.
Os séculos se passaram, a humanidade se desenvolveu e a vida moderna fez os indivíduos começarem a se afastar uns dos outros, pois não havia mais a necessidade de estar em grupo para sobreviver. O trabalho em fábricas e o pensamento ocidental individualista reforçaram tal comportamento.4
Atualmente, como já comentamos na matéria sobre “tempo”,5 temos muitas tarefas para fazer num mesmo dia. A fim de “dar conta” das prioridades, acabamos abrindo mão de algumas coisas, e muitas vezes deixamos de encontrar amigos ou familiares, com a sensação de que o contato virtual será suficiente naquele momento. Infelizmente, o contato via redes sociais ou mensagens instantâneas nunca trazem o mesmo efeito do que uma conversa “olho no olho”, um abraço ou uma risada compartilhada.
No entanto, nem tudo é um mar de rosas: as relações sociais próximas também são desafiadoras6 e algumas pessoas veem no caminho do isolamento uma forma de se defender dos estresses sociais.
Além disso, existe a questão da identificação: há situações em que não conseguimos simplesmente nos conectar ou pertencer ao local ou ao ambiente social que frequentamos no momento. Eis um exemplo prático a seguir.
Ver a realidade como ela é
O casal Yoriko e Hideo Ueno havia se mudado do Japão para Teerã (capital do Irã) por conta do trabalho de Hideo.7 Enquanto a situação financeira ia bem, Yoriko começou a ficar cada vez mais desanimada, quieta e pálida. Em 1962, quando Shin’ichi Yamamoto (pseudônimo de Daisaku Ikeda na obra Nova Revolução Humana) fez sua primeira viagem ao local, ficou sabendo da situação de Yoriko e decidiu visitá-la mesmo em meio a uma agenda lotada de compromissos.
Depois de os três recitarem daimoku juntos, o presidente Yamamoto comentou que ela devia se sentir muito sozinha ali, em um país de costumes e cultura tão diferentes de sua terra natal. Ela concordou e disse:8
— Não consigo me acostumar com este país. Meu sentimento é de voltar o mais rápido possível para o Japão.
— Em quais situações a senhora sente mais dificuldades? [perguntou Shin’ichi]
— Em tudo. Além disso, aqui não tenho amigas para conversar e fazer confidências.
Yoriko se sentia totalmente solitária. Ela ouviu pacientemente as orientações do presidente Yamamoto, que afirmou:
— Não existe um ambiente de vida 100% maravilhoso nem pessoas nessa condição. A senhora não deve viver neste país com base nos padrões de vida do Japão, pois sua realidade está aqui. Procure, antes de mais nada, vê-la e aceitá-la da maneira como ela é. O Sutra refere-se a “perceber a verdade exatamente como ela é”.9 Embora isso descreva a sabedoria do Buda, também se aplica à nossa vida. Não se prenda a padrões idealizados; veja a realidade como ela é, descubra e desfrute o lado bom dessa realidade. Isso se aplica também à nossa própria natureza. Por mais que queiramos ser iguais a uma pessoa de padrões que achamos ideais, continuamos sendo nós mesmos com nossas virtudes e defeitos. O importante é descobrir a virtude que possuímos e nos esforçarmos para desenvolvê-la cada vez mais.
Ainda assim, a Sra. Yoriko comentou ao final:10
— Compreendo perfeitamente e acho que tudo o que o senhor disse está certo. Embora entenda tudo isso, quando penso que vou continuar vivendo aqui, fico agoniada e desesperada.
Na situação em que a Sra. Yoriko vivia, saber racionalmente dos diversos pontos levantados por Shin’ichi não minimizava seu sofrimento. Era preciso ir além. Sabiamente, o presidente da Soka Gakkai respondeu:
— Por isso, a prática budista é tão importante. Não há melhor remédio que recitar daimoku quando estamos num beco sem saída. Se orar, a senhora terá melhor concepção de si mesma e da realidade da vida, fortalecerá sua energia vital e criará forças para vencer a si própria. Sobretudo, descobrirá e tomará consciência da missão que a trouxe ao Irã.
A não conexão e a sensação de não pertencer ao lugar prendiam a Sra. Yoriko ao sofrimento, gerando uma profunda solidão. Se ela não se dispusesse a melhorar, o quadro apenas se agravaria. Nesse sentido, o presidente Yamamoto solicitou para que ela se desafiasse a vencer o sofrimento no qual ela estava mergulhada por meio da recitação do daimoku.
Com isso, aos poucos, ela se sentiria cada vez mais capaz de lidar com a situação, a ponto de desenvolver a consciência de seu papel ali. De vítima, a Sra. Yoriko se tornaria protagonista da mudança em sua vida, e consequentemente poderia ajudar outras mulheres que estivessem passando por algo parecido.
Contudo, não podemos parar por aí, pois ninguém garante que as situações sociais futuras, como a interação com quem precisa de ajuda, serão unicamente positivas.
Use o estresse a seu favor
Se a solidão é um sentimento comum, o estresse causado por situações sociais é ainda mais corriqueiro. Do ônibus lotado ao chefe que só sabe esbravejar ou o parente que distorce o que falamos, são inúmeras situações que passamos no dia a dia e nos fazem pensar “Preferia estar só do que mal acompanhado”.
Existem vários estudos que mostram como o estresse faz mal à saúde.11 A palavra em si já nos faz pensar em coisas negativas. No entanto, até isso pode ser revertido em algo positivo quando assumimos a postura de protagonista.
Imagine que você esteja em uma sala, de pé, diante de uma banca de examinadores. Você deve fazer o que lhe pedem, como ler um texto, mas eles demonstram insatisfação constante com o que você faz e o criticam a todo momento. Cada vez mais essa pressão psicológica o deixa tenso, seu coração bate mais rápido, sua respiração fica rápida e ofegante, você começa a suar. Esses sinais de que algo claramente não está bem são seguidos por outros variados, de tonturas e dores de barriga ao esquecimento e à tremedeira. São típicos sinais de estresse.
Um estudo feito na Universidade Harvard12 utilizou o mesmo mecanismo de forma um pouco diferente: antes do início foi solicitado aos participantes que encarassem tais sintomas não como negativos, mas como sinais de enfrentamento da situação. Por exemplo, o coração batendo mais forte deixa o corpo pronto para agir, a respiração ofegante oxigena o cérebro, e por aí vai.
O resultado foi que o próprio corpo dos participantes reagiu de forma mais saudável ao estresse. A resposta do coração, por exemplo, foi semelhante a situações de coragem e de felicidade. A psicóloga, professora e autora Kelly McGonigal13 afirma que essa é a diferença entre ter um ataque cardíaco induzido pelo estresse e viver com qualidade e longevidade.14
Esse estudo se relaciona com um princípio budista chamado “transformação de veneno em remédio”.15 O remédio e o veneno por vezes têm os mesmos ingredientes, mudando-se apenas a dose e a utilização. É a diferença entre ser vítima e protagonista da vida; é literalmente usar a situação que lhe fazia mal para promover coisas positivas dali em diante.
Outro ponto interessante ressaltado por McGonigal é que o estresse nos torna mais sociáveis. Quando passamos por momentos estressantes, nosso corpo e mente nos impulsionam — inclusive quimicamente — para buscarmos ajuda. Ao realizarmos esse contato, nosso corpo reage liberando substâncias que fazem bem ao coração. Ou seja, contato social é importante para a saúde física e mental inclusive em momentos de estresse. Mas não pode ser qualquer contato. Segundo a própria McGonigal: “Quando a vida fica difícil, sua resposta [biológica] ao estresse lhe direciona a ter ao redor pessoas que se importam com você”.16
Grande família
Por vezes, amigos e familiares têm seus próprios desafios para enfrentar e não conseguem dar o apoio que você precisa no momento. Ou, ainda, possuem objetivos ou pontos de vista diferentes do seu — o que, até certo ponto, é importante, mas não ajudam na hora do diálogo. É como se cada um olhasse para uma direção diferente e visualizasse horizontes totalmente distintos uns dos outros.
Aqui, vemos que, além de precisarmos do contato com pessoas próximas, em diversos momentos — principalmente os mais críticos —, é necessário que elas olhem para a mesma direção, ainda que de pontos de vista diferentes.
Imagine fazer parte de uma grande família global, onde todos possuem um direcionamento humanístico, que respeita a diversidade individual, ao mesmo tempo em que visa o mesmo horizonte de paz e de felicidade. Independentemente do local ou do país, seus membros acolhem a todos. O acolhimento é o primeiro passo para a construção do pertencimento a essa família, que lhe dá a oportunidade de compartilhar momentos com seus membros, vivendo e criando experiências em prol do objetivo em comum.
Essa família global se chama Soka Gakkai Internacional (SGI), organização sem fins lucrativos que foi fundada pelo presidente Daisaku Ikeda na ilha de Guam, em 1975. Neste mês e ano, comemoramos seus 45 anos de fundação.
De lá para cá, com o empenho do presidente Ikeda e de cada membro dos 192 países e territórios nos quais a SGI está atualmente presente, essa família vem empreendendo esforços efetivos pela paz mundial a partir da ação local, visando a felicidade de cada pessoa.
Se voltarmos 45 anos no passado, veremos que esse movimento global na verdade começou com pessoas que empreenderam esforços solitários em seu país e localidade. De que forma tais pioneiros venceram a barreira da solidão e conseguiram trazer tantas pessoas para perto?
Como vemos no exemplo da Sra. Yoriko, precisamos nos tornar protagonistas da nossa vida para conseguirmos extrair o melhor de nós e abrir caminho para criarmos um ambiente acolhedor. Essa postura proativa baseia-se no princípio de “levantar-se só”. Ou seja, para o budismo, importa mais a sua determinação de expandir a rede de pessoas felizes ao seu redor do que quantas pessoas estão de fato o acompanhando nesta jornada neste momento.
Em muitos locais do Brasil, por meio dos esforços dos integrantes da BSGI, representante brasileira da SGI, já temos esse ambiente acolhedor consolidado. Nosso papel, porém, não é só desfrutar esses ambientes: temos a oportunidade de manter e expandir ainda mais, por meio de nossos próprios esforços, o que já foi feito.
Essa também é a ocasião para aprendermos a pôr em prática o princípio de que mesmo as situações mais estressantes são ocasiões para estreitar os laços de amizade a ponto de melhorar as condições de saúde, além de crescer e dar passos sólidos rumo aos objetivos. Podemos ver isso no exemplo do presidente Ikeda:17
Shin’ichi Yamamoto não tinha um minuto de descanso em suas atividades. As viagens e os encontros com os membros ocupavam todo o seu tempo. Em dado momento estava no norte, depois em Osaka, voltava rapidamente para Tóquio e em seguida já estava no sul do país. Pela intensidade com que atuava, os líderes chegavam a comentar que existiam quatro ou cinco Shin’ichi Yamamoto viajando pelo Japão. Aqueles que o conheciam melhor, principalmente seu estado de saúde, ficavam admirados de vê-lo cada vez mais forte quanto mais intensa se tornava sua atuação.
Com base no exemplo e nas orientações do Mestre, aprendemos a olhar para a mesma direção e a agir de forma a criar resultados cada vez melhores. E mesmo se estivermos distantes fisicamente dos companheiros e do Mestre, somos ligados pela prática da fé. Ao lutarmos pelo kosen-rufu, mesmo sozinhos em algum local, temos a convicção de que essa situação será transformada por meio de nossos esforços. Além disso, hoje existem milhões de companheiros em todo o mundo que também oram e agem com o mesmo propósito. Ou seja, nunca estaremos de fato sozinhos.
Construir conexões positivas
Acredita-se que estamos vivendo uma época de “epidemia de solidão”, bem como uma grande onda de estresse, principalmente nas grandes cidades. É um cenário com o qual podemos ter dois tipos de atitude: ou nos submetemos e seremos engolidos pela correria e pelo afastamento das pessoas queridas, ou escolhemos nos esforçar para criar momentos preciosos com elas.
É importante nos lembrar que solidão não é sinônimo de estar sozinho, da mesma forma que situações estressantes não são somente negativas. A vida é bastante complexa e até mesmo as pequenas mudanças de pensamento e de atitude podem causar grandes transformações positivas em nossa saúde física e mental. Imagine então a grandiosa revolução interna e externa que a prática do budismo possibilita, já que ela nos habilita a extrair força, sabedoria e esperança das profundezas da nossa vida.
Esse é o segredo para conseguirmos nos levantar sós e mudar toda uma condição inicial em direção a uma realidade verdadeiramente feliz e rica, assim como vemos no exemplo da Sra. Yoriko Ueno. O presidente Ikeda também, por meio da prática budista e de sua dedicação irrestrita a cada pessoa dentro e fora da Soka Gakkai, conseguiu melhorar inclusive sua condição de saúde. Agora é nossa vez de aproveitar essa oportunidade de praticar, participar, aprender e “transformar veneno em remédio” junto com os companheiros ao redor do mundo.
A SGI, durante seus 45 anos de existência, vem possibilitando encontros de pessoa a pessoa, com base em um direcionamento humanístico e abrangente, que dá as boas-vindas à rica diversidade de pessoas, ao mesmo tempo em que fornece uma base e um horizonte comum de paz, esperança, harmonia e crescimento conjunto. É literalmente um lugar onde reconhecemos nosso valor individual e aprendemos o poder das conexões reais, bem como transformar mesmo a maior solidão ou o maior estresse em exemplos de superação e de fortalecimento que poderão inspirar muitos dali em diante.