O que é comunismo?

ROTANEWS176 E POR BBC NEWS BRASIL 23/08/2022 19:50                                                                                    Por Matheus Magenta da BBC News Brasil em Londres

Reprodução/Foto-RN176 DANIEL ARCE LOPEZ/BBC

A “lista de novos comunistas” é atualizada quase que diariamente nas redes sociais brasileiras: Rede Globo, Leonardo DiCaprio, Supremo Tribunal Federal, MBL, The Economist, Bill Gates…

Você já deve ter se deparado com um meme parecido com o descrito acima inúmeras vezes nos últimos anos — e nem é preciso insistir que nenhuma das pessoas ou instituições citadas é realmente comunista.

A brincadeira, no entanto, ilustra a polarização que domina a política brasileira nos últimos anos e como o vocábulo comunista virou uma espécie de xingamento usado por alguns adeptos da direita no Brasil — mesmo quando o alvo está no lado oposto do comunismo no espectro político, como a liberal revista britânica The Economist, por exemplo.

Mas para além dos memes e ataques contra adversários, o que realmente significa ser comunista? Quais as origens da ideologia política que inspirou ideais, revoluções e massacres ao redor do mundo?

Para entender tudo isso, a BBC News Brasil traça um panorama das origens das ideias comunistas, passando pelas diversas vertentes em que a ideologia se dividiu e explicando como a ideologia impactou a política brasileira.

As origens do comunismo

Não há muito consenso porque existem várias vertentes do socialismo e do comunismo, como o cristão (marcado pelo espírito comunitário do surgimento do cristianismo) e o marxista (considerado o mais popular e influente).

As origens do comunismo também não estão muito claras. Há quem aponte o surgimento desses ideais na Grécia Antiga, mais especificamente na obra A República, do filósofo grego Platão, que nasceu quatro séculos antes de Cristo.

Em sua obra, Platão já discutia ideias como o fim da propriedade privada e da família (caberia ao Estado educar as crianças) para evitar conflitos entre interesses públicos e interesses privados. Mas esse modelo, para o filósofo grego, só deveria ser aplicado às classes sociais mais poderosas — o restante da população (mais pobre e menos poderosa) seguiria o modelo tradicional, que abasteceria aqueles acima na hierarquia social.

O filósofo e professor italiano Giuseppe Bedeschi (Universidade de Roma La Sapienza) conta no Dicionário Político, organizado por Norberto Bobbio, que os primeiros ideais comunistas voltados a todos os homens, e não mais apenas algumas classes, floresceram no âmbito da civilização cristã. “O ideal de vida em comum, vivida na pobreza e na caridade, e do consequente desapego dos bens terrenos, operará potentemente no cristianismo dos primeiros séculos.” Seria uma espécie de comunismo cristão.

Segundo Bedeschi, a conexão entre espiritualidade cristã e as reivindicações sociais de viés comunista atravessariam os séculos. No século 8º, por exemplo, o monge e teólogo católico Joaquim de Fiore pregou os ideais de pobreza, castidade, fraternidade, comunhão universal e o fim das “lutas para o meu e para o teu”.

Na Idade Moderna (séculos 15 a 18), os ideais comunistas começam a ganhar contornos utópicos. “Parece-me que em todo lugar em que vigora a propriedade privada, onde o dinheiro é a medida de todas as coisas, seja bem difícil que se consiga concretizar um regime político baseado na justiça e na prosperidade”, escreve na obra Utopia o jurista e filósofo inglês Thomas More, venerado como santo na Igreja Católica.

A obra foi escrita em meio à expulsão dos camponeses de suas propriedades porque o sistema econômico inglês à época precisava de espaço para criar ovelhas a fim de abastecer as manufaturas têxteis nas cidades. Os ex-camponeses se transformariam na mão de obra assalariada que trabalharia nessas manufaturas urbanas em condições insalubres.

No século 17, começa a surgir o chamado comunismo utópico, que considerava mudanças sociais em voga, como soberania popular por meio de sufrágio universal masculino e tolerância religiosa, insuficientes para corrigir desigualdades sociais. Adeptos dessas ideias propunham a abolição de propriedades privadas e fundiárias. “A terra, dada por Deus a todos os homens em comum, deve ser cultivada em comum, de modo que cada um possa conseguir produtos dela de acordo com suas necessidades”, explica Bedeschi.

No século 18, o movimento babuvista (liderado pelo jornalista e revolucionário francês François-Noël Babeuf) defendia pouco antes da Revolução Francesa ideais como o fim da propriedade privada, a democracia direta em que o povo decida sobre leis elaboradas por políticos e a ditadura da insurreição. Ou seja, “os revolucionários não devem hesitar em adotar medidas políticas extremas para garantir o sucesso da própria obra”.

Já no começo do século 19, outro pensador francês teria importância crucial para o avanço das ideias comunistas e também utópicas: Charles Fourier, conhecido atualmente também por ter cunhado o termo feminista.

Considerado um dos fundadores do chamado socialismo utópico, Fourier defendia uma transição pacífica em direção a um modelo social, político e econômico formado por pequenas comunidades (falanstérios) em que as pessoas vivem e trabalham juntas em torno da própria subsistência.

A divisão do trabalho, sem conflitos, seria alternada de tempos em tempos entre os indivíduos (algo parecido com a fase inicial dos kibbutzim em Israel no século 20).

Reprodução/Foto-RN176 Algumas experiências comunistas ou socialistas foram marcadas pelo culto ao líder

As ideias de Fourier serviriam de base para a fase seguinte que surgiria décadas depois: o chamado socialismo científico, capitaneado pelos pensadores alemães Karl Marx e Friedrich Engels.

Em sua obra Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, Engels cita a descrição que Fourier faz do “círculo vicioso” da sociedade moderna, “num ciclo de contradições, que reproduz constantemente sem poder superá-las, conseguindo sempre precisamente o contrário do que deseja ou alega querer conseguir”.

Engels, no entanto, afirma que Fourier não podia em sua época vislumbrar que o círculo vicioso não seria eterno, mas rumaria em direção à tragédia social em que os trabalhadores seriam substituídos pelas máquinas do capital dominante. E por isso, para Engels, a classe trabalhadora precisava reagir e substituir esse sistema econômico capitalista.

O marxismo

Mas, apesar das origens mais antigas, muito do que se entende por comunismo hoje deriva das ideias e das obras de Engels e, principalmente, de Marx.

Em geral, especialistas afirmam que o chamado comunismo marxista prega uma luta de classes entre a burguesia e o proletariado que leva à revolução. O socialismo seria uma espécie de estágio intermediário nesse processo, com o capitalismo em vigor e a classe trabalhadora se conscientizando e se empoderando.

Quando a revolução acontece de fato, na teoria, a sociedade deixa de ter classes e propriedades privadas. Além disso, os meios de produção passam a pertencer a todas as pessoas.

Marx enxergava a sociedade como uma construção em torno das “forças materiais de produção” (o trabalho e os meios de produção) e das “relações de produção” (os arranjos sociais e políticos que os regulam).

Para ele, o comunismo iria surgir de forma inevitável em países com economias avançadas, embora muitas releituras de sua obra tenham tentado transpor sua filosofia para países agrários pobres (como a China da primeira metade do século 20 e a própria Rússia dos tempos dos czares).

Reprodução/Foto-RN176 Filósofo e economista alemão Karl Marx foi o principal teórico do comunismo – GETTY IMAGES

Talvez a parte mais importante do pensamento marxista esteja na obra O Capital, cujo primeiro volume saiu em 1867. O livro é essencialmente uma descrição de como o sistema capitalista funciona e como, afirma Marx, ele se destruirá ao longo de seu desenvolvimento.

O pensador alemão já havia exposto suas ideias no Manifesto Comunista e em outras obras acerca da luta de classes, e de como os trabalhadores do mundo iriam tomar o poder das elites dominantes. O Capital é uma tentativa de dar a essas ideias uma base em fatos verificáveis e análises científicas.

Não é uma leitura fácil. O produto de 30 anos de trabalho e do estudo de Marx sobre a condição dos trabalhadores nas fábricas inglesas no auge da revolução industrial é parte história, parte economia e parte sociologia. De forma simplificada, Marx argumenta em sua obra que um sistema econômico baseado no lucro privado é inerentemente instável.

Os trabalhadores são explorados pelos donos das fábricas e não possuem os produtos de seu trabalho, o que os torna pouco melhores do que máquinas. Por outro lado, os donos de fábricas e outros capitalistas detêm todo o poder porque controlam os meios de produção, podendo acumular vastas fortunas enquanto os trabalhadores mergulham cada vez mais na pobreza.

Como disse Engels sobre as ideias de Fourier, Marx acreditava que essa é uma forma insustentável de organizar a sociedade e ela acabará entrando em colapso sob o peso de suas próprias contradições.

O socialismo na visão de Marx, explica à BBC Lea Ypi, professora de teoria política da London School of Economics, era um estágio que antecedia o comunismo.

“Socialismo é uma forma de capitalismo em que uma parte específica da população, a classe trabalhadora, foi empoderada contra as classes capitalistas. Por outro lado, a sociedade comunista é a utopia na visão de Marx. É o fim da sociedade de classes, é o fim da política enquanto conflito.”

O teórico alemão não tinha certeza de quando isso iria acontecer, apenas de que isso seria inevitável. Ele também não explica claramente que forma deve ter a sociedade comunista que substituirá o capitalismo, apenas diz que ela libertará os trabalhadores de sua servidão. Suas teorias ficaram inconclusas com sua morte em 1883.

De toda forma, os pensamentos de Marx e Engels, que não chegaram a colocar em prática suas ideias, serviram de base e inspiração para ações concretas: as mais diversas tentativas ao longo do século 20 de colocar o comunismo em prática ao redor do mundo.

Mas antes de falar sobre as tentativas de colocar as teorias marxistas em prática, é importante explicar que, com o tempo, os termos socialismo e comunismo passaram a ser usados muitas vezes como sinônimos.

Com a criação da União Soviética, no entanto, o termo socialismo passou a ser associado muitas vezes com experiências políticas fora da esfera de influência russa (inclusive sociais-democratas) e o termo comunismo ficou mais ligado aos partido ligados a Moscou. E é sobre esta experiência que entenderemos melhor a seguir.

O socialismo real

A mais importante tentativa de tornar o socialismo realidade começou em 1917 na Rússia, na chamada Revolução Comunista. O movimento revolucionário russo foi liderado por nomes como Vladimir Lênin, Leon Trotsky e Joseph Stálin.

A primeira fase do movimento deu fim a séculos de domínio da monarquia czarista. Oito meses depois, a segunda fase foi marcada pela substituição do modelo capitalista pelo socialista, algo que nunca havia sido tentado ao redor do mundo.

Lênin, o primeiro líder comunista, adotou o slogan “paz, pão e terra” para a população, que enfrentava fome e guerra, entre outras crises.

Ele era um pensador radical que acreditava que uma revolução comunista ajudaria a trazer igualdade para a recém fundada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Muitos russos se lembram dele como um grande líder que libertou o povo, mas para outros seu governo era controlador e cruel, pois aprisionava e matava pessoas que discordavam de suas ideias ou ações.

Essas duas visões opostas também seriam marcantes durante o governo de Stálin, principal sucessor de Lênin. Ele daria nome também ao chamado stalinismo, considerado uma forma mais linha-dura, inflexível, autoritária, hierárquica, intolerante à dissidência e não democrática do comunismo marxista-leninista, segundo o Dicionário de Política Routledge.

A morte de Lênin em 1924 abriu uma disputa pelo poder entre Stálin e Trotsky, líder do Exército Vermelho tido por alguns como um sucessor natural no cargo de líder soviético. Mas a maioria do Partido Comunista considerava Trotsky idealista demais para assumir o comando.

Stálin, por outro lado, desenvolveu uma leitura própria do marxismo que concentrava os poderes e tornaria a União Soviética uma espécie de império.

Reprodução/Foto-RN176 Stálin discursa na União Soviética – GETTY IMAGES

No fim dos anos 1920, Stálin se torna ditador da União Soviética. Ao longo do governo stalinista, a União Soviética passa por transformações profundas e conturbadas, como um rápido processo de industrialização e um amplo programa de desapropriação e coletivização de propriedades rurais (que acabou também levando à fome e a milhões de mortes).

Em meio a essas mudanças, Stálin promove o que ficou conhecido como o Grande Terror: a perseguição, o expurgo e o assassinato de todos aqueles que eram considerados inimigos da revolução.

A paranoia e o denuncismo tomam conta da sociedade. Entre 1934 e 1939, estima-se que cerca de 750 mil pessoas tenham sido mortas sumariamente, sem direito a julgamento justo.

Mas Stálin, por outro lado, é exaltado pelo papel fundamental da União Soviética na vitória contra o regime nazista de Adolf Hitler e seus aliados. E até hoje Stálin é considerado um grande líder na Rússia.

Um levantamento feito em 2019 pelo instituto de pesquisa Levada Center apontou que 51% dos adultos do país respeitavam, gostavam ou admiravam Stálin, com um aumento entre os mais jovens em relação a pesquisas anteriores.

Para Ekaterina Schulmann, cientista política russa e professora da Moscow School of Social and Economic Sciences, há diversos fatores importantes por trás desse índice positivo, como uma nostalgia romantizada das condições de vida no período soviético, a atual propaganda estatal que retrata Stálin como líder astuto e vitorioso na guerra e um sentimento contemporâneo antielite.

“A memória de Stálin não é do homem real, mas do que permaneceu no imaginário popular, como um símbolo de disciplina à mão de ferro e um último bastião na batalha contra burocratas gananciosos”, disse a pesquisadora à BBC Rússia.

O modelo comunista da União Soviética seria, até 1990, o principal contraponto ao modelo capitalista, capitaneado pelos Estados Unidos.

Mas além da Revolução Russa, outros movimentos comunistas importantes ocorreram pelo mundo, como a Revolução Chinesa, vitoriosa em 1949, liderada por Mao Tsé-tung.

Ele implementou políticas marxistas, mas, diferentemente do comunismo soviético, centrado na classe trabalhadora industrial, a revolução maoísta se baseou nos camponeses. A coletivização e a centralização da economia transformaram a sociedade chinesa.

Em quatro décadas, a China conseguiu tirar 850 milhões de pessoas da pobreza. Mas a desigualdade se acentuou no país. E hoje, 70 anos depois, alguns especialistas classificam a China como um capitalismo de Estado, num modelo em que a “mão invisível” do Partido Comunista da China está em todos os aspectos da economia.

É o Estado que controla quase todas as maiores empresas do país, que administram os recursos naturais. Ele também é oficialmente o proprietário de toda a terra, embora, na prática, as pessoas possam ter propriedades privadas. E o Estado também controla o sistema bancário, decidindo em linhas gerais quem pode tomar empréstimos, por exemplo.

Outra revolução que abalou o mundo e influenciou diversos países — principalmente na América Latina, foi a Revolução Cubana, quando, em 1959, um pequeno grupo de guerrilheiros liderados por Fidel Castro, Ernesto Che Guevara e Raúl Castro conseguiram derrubar uma ditadura e implantaram um governo socialista no país.

Reprodução/Foto-RN176 Cuba representa até hoje uma das mais conhecidas e controversas experiências comunistas – EPA

O regime cubano, que perdura até hoje, trouxe avanços sociais ao país principalmente nas áreas da educação e saúde, mas caracteriza-se também por uma concentração autoritária de poder em um regime de partido único, onde oposicionistas são muitas vezes perseguidos e presos.

Social-democracia

Mas as ideias comunistas, socialistas e marxistas não avançaram ao longo do século 20 somente em forma de revolução ou de regimes autoritários.

A chamada social-democracia (ou socialismo democrático) é, ao lado do comunismo, uma das principais formas de socialismo no século 20.

Segundo o Dicionário de Política Routledge, na maioria das vezes, um partido que se apresenta como social-democrata está na centro-esquerda do espectro político e busca, com esse rótulo, se situar um pouco mais à direita da versão revolucionária ou radical do socialismo.

Alemanha, França e países escandinavos têm influentes partidos socialistas que, por diversas vezes, assumiram seus governos. Esses partidos bebem das fontes marxistas e de outras tradições socialistas em políticas que buscam reduzir as desigualdades, aumentar os serviços públicos fornecidos pelo Estado e regular o capital por meio de leis, sempre se mantendo na seara democrática.

“Um típico partido social-democrata, por exemplo, provavelmente adotará algum grau de nacionalização, mas o fará mais em termos de um planejamento organizado da economia, ou da oferta garantida de serviços públicos, do que de qualquer oposição teórica à propriedade privada por si.”

Além disso, as teorias de Marx exerceriam uma influência poderosa sobre muitos partidos trabalhistas e movimentos sindicais, mesmo que eles nem sempre compartilhassem de sua visão de uma revolução global dos trabalhadores.

A exemplo dos Partidos Comunistas na Itália, na Espanha e na França, que se afastaram da imagem de comunismo implementada pela União Soviética e aproximaram mais da ideia de redução da desigualdade social por meio do processo democrático (dentro e fora dos partidos). Esse movimento seria conhecido como eurocomunismo.

O colapso da União Soviética no início dos anos 1990, no entanto, foi um grande golpe para a credibilidade da teoria marxista, e ela saiu de moda em muitos campi universitários e nos principais partidos políticos de esquerda que aspiravam ganhar o poder no Ocidente.

Mas o marxismo volta e meia ressurge com as recorrentes crises financeiras, como a de 2008, um exemplo clássico da visão marxista do capitalismo em crise.

Marx argumentava que o sistema econômico sem regulação estava condenado a períodos de crises recorrentes (ou recessões, em termos atuais) que eram inerentes a ele.

“Embora não tenha sido o único a falar sobre isso, sua ideia original era que cada turbulência levaria a outra pior, e assim por diante até a destruição do capitalismo”, explica Albrecht Ritschl, da London School of Economics, à BBC News Mundo.

Para Ritschl, a ideia de Marx de que o sistema capitalista entraria em colapso por causa de seus defeitos intrínsecos foi desacreditada, mas hoje estamos mais alertas do que nunca às turbulências e somos mais cuidadosos perante elas, em parte graças ao próprio Marx.

Biógrafos de Marx, como Francis Wheen e outros estudiosos de sua obra, concordam que o filósofo estava errado com sua ideia determinista de que o capitalismo se enterraria criando seus próprios coveiros.

Em vez disso, aconteceu o contrário: com a queda do comunismo, o capitalismo não apenas se fortaleceu, mas também se espalhou pelo mundo.

Talvez ninguém expresse melhor essa ironia da história do que o pensador marxista Jacques Rancière, professor de filosofia da Universidade de Paris 8.

“O proletariado, longe de enterrar o capitalismo, está mantendo-o vivo. Trabalhadores explorados e mau pagos, libertados pela maior revolução socialista da história, na China, são levados à beira do suicídio para que o Ocidente possa continuar jogando com seus iPads. Enquanto isso, o dinheiro chinês financia os EUA, que de outra maneira estaria falido.”

O marxismo tem sido resgatado no debate atual sobre os problemas da globalização. “Há atualmente muitas pessoas no mundo preocupadas com a destruição dos mercados locais, a insegurança e a perda de empregos”, disse Ritschl.

É claro que, apesar de algumas previsões fracassadas e ideias desatualizadas, Marx levantou no século 19 várias questões de debate sobre política e economia que ainda são válidas mais de um século depois. Mas pode-se dizer que o pensamento de Marx se tornou obsoleto? Ou algumas de suas ideias que se tornaram realidade e ainda são válidas deveriam ser resgatadas?

Para o historiador Daniel Beer, da Universidade de Londres, diversos países capitalistas se inspiraram em iniciativas pioneiras pela União Soviética ao criarem sistemas de bem-estar social, benefícios para desempregados e moradia popular (muitas dessas políticas são consideradas exemplos de socialismo democrático ou social democracia).

“Isso porque os governos temem que, se eles não atenderem às necessidades de suas classes trabalhadoras, podem enfrentar o risco de uma espécie de Revolução Russa em seus próprios territórios.”

Quem foi e quem é comunista no Brasil?

No Brasil, o comunismo ganha forma em 1922, com a fundação do Partido Comunista Brasileiro, o PCB ou “Partidão”, composto por trabalhadores e intelectuais como Caio Prado Jr. e Graciliano Ramos. A sigla fortalecia movimentos sindicais e camponeses e disseminava teses marxistas à classe trabalhadora.

O PCB cresceria até 1935, ano em que foi criada a Aliança Nacional Libertadora (ANL), tendo à frente o líder comunista Luís Carlos Prestes, nos moldes das frentes populares antifascistas na Europa, explica o Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV).

A ANL tentou derrubar o governo de Getúlio Vargas, que havia chegado ao poder em 1930 por meio de um golpe de Estado. “Iniciado com levantes militares em várias regiões, o movimento deveria contar com o apoio do operariado, que desencadearia greves em todo o território nacional”, conta o CPDOC. Mas não foi isso que aconteceu.

O operariado não aderiu à insurreição, o levante militar ficou restrito a poucas cidades e o movimento foi reprimido violentamente. A ofensiva comunista (conhecida pejorativamente como Intentona Comunista) serviria como um dos pretextos para um novo golpe de Estado, em 1937.

O Partido Comunista voltaria com força à política institucional em 1945, com o fim da era Vargas e quase 200 mil filiados. Mas, ao longo dos anos seguintes, o partido teria uma trajetória de disputas internas, idas e vindas para a ilegalidade e afastamento do stalinismo.

Reprodução/Foto-RN176 Luis Carlos Prestes foi o principal líder comunista do Brasil – AL-MG

A primeira grande dissidência se dá em 1962, com a fundação do PC do B. Trinta anos depois, com o fim ada União Soviética ocorre outra grande divisão no PCB, com a formação do Partido Popular Socialista (PPS, hoje chamado Cidadania).

Hoje, o grupo que, após tantos rachas, herdou a sigla PCB, atua na política nacional de forma pontual, sem conseguir eleger nenhum candidato em 2020. De toda forma, os membros do PCB se afirmam comunistas que lutam “pela transformação radical da sociedade atual, visando a substituição do sistema capitalista pelo socialismo, na perspectiva da construção da sociedade comunista”.

Segundo a socióloga e pesquisadora Sabrina Fernandes (Universidade Livre de Berlim), autora do livro Sintomas Mórbidos – A Encruzilhada da Esquerda Brasileira, o PCB faz parte do que ela chama de esquerda radical, formada por outros movimentos e siglas como MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), PCO (Partido da Causa Operária), PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) e PSOL (Partido Socialismo e Liberdade, formado inicialmente por petistas que se recusaram a apoiar a reforma da Previdência no primeiro governo Lula, em 2003).

“Os representantes parlamentares do PSOL (até 2019) normalmente não falam tão abertamente de socialismo, embora suas posições no Congresso tenham sido consistentes com a premissa socialista de construir o poder popular, defender os direitos das minorias, promover políticas anticapitalistas, empoderar dissidentes e mobilizar a esquerda.”

Fernandes traça em seu livro um panorama da esquerda brasileira, dividida por ela em radical, composta por grupos anticapitalistas e críticos aos governos petistas, e moderada, que inclui partidos e movimentos como PT, PCdoB (Partido Comunista do Brasil), CUT (Central Única dos Trabalhadores) e MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

“Nem em sua concepção o PT se propôs a ser um partido comunista. Ele sempre foi um partido amplo de esquerda, que abrigava diversas posições progressistas diferentes, e as posições comunistas sempre perderam disputas para posições da direção”, explica Fernandes em vídeo sobre antipetismo.

E acrescenta: “O PT é um partido de esquerda moderada que se adaptou muito bem à ordem no poder, e cujo modo de governar, que é marcado por uma política que a gente chama de lulista, foi muito mais focado em promover crescimento capitalista aliado a políticas de inclusão social do que fazer, no mínimo, algumas reformas importantes, como a reforma agrária.”

‘Comunista’ enquanto ofensa ou espantalho político

O declínio da União Soviética e as milhões de mortes atribuídas a essa e outras experiências comunistas ao redor do mundo levou a um descrédito global da ideologia como sistema político viável.

Mas, por que então ainda se fala tanto de comunistas em 2022, mais de 100 anos depois da Revolução Russa e mais de 30 anos depois do fim da União Soviética, principal experiência comunista da história?

Há muitos motivos, mas vale a pena ressaltar dois.

Primeiro, a palavra e todas as ideias em seu entorno ainda servem de base a quem se inspira nessa ideologia.

“Ainda é possível ver a influência das ideias de Marx e Engels em debates contemporâneos, como a questão de nacionalizar setores importantes de um país, como o sistema de transporte, sob um controle mais democratizado, expandindo a noção de propriedade e incluindo os trabalhadores o máximo possível”, disse Lea Ypi, da London School of Economics, à BBC.

Segundo, parte da sociedade enxerga o comunismo como ameaça ou uma espécie espantalho político (um tipo de “inimigo imaginário” que é útil na propaganda política contra adversários).

“O marxismo é uma ideologia ensopada de sangue, associada por muitos aos crimes de ditaduras comunistas no século 20. Então, a palavra ‘marxismo’ (ou ‘comunismo’) evoca imagens de paredões de fuzilamento na União Soviética, campos de trabalho forçado, tanques invadindo Budapeste em 1956”, disse Daniel Beer, professor de história moderna da Universidade de Londres, à BBC.

Mas não só isso. No debate político no Brasil e em outros países, o significado da palavra “comunista” se afastou da definição original e se tornou ferramenta para atacar adversários políticos. Algo parecido ao que acontece com os termos fascista e nazista.

Reprodução/Foto-RN176 Chamar PT de comunista faz parte de estratégia política ligada ao pânico moral, afirma especialista – RICARDO STUCKERT/DIVULGAÇÃO

“A função política é a satanização do outro. Você transforma o adversário, em termos discursivos, em uma posição inaceitável de um ponto de vista moral. A disputa aqui é basicamente moral. (…) Você vai no extremo da posição que você quer satanizar, não importa se corresponde ou não à realidade, mas é aquilo que produz o pânico moral”, diz Wilson Gomes, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor do livro Crônica de uma Tragédia Anunciada: Como a Extrema Direita Chegou ao Poder.

No Brasil, esse tipo de estratégia visa hoje associar o PT ao comunismo em duas vertentes: seja comparando medidas e ideias (ainda que o partido nunca tenha se proposto a ser comunista), seja na proximidade com os governos de Cuba e da Venezuela (principalmente durante a era Lula). Mas esse tipo de discurso anticomunista não é de agora no país.

“O anticomunismo sempre foi muito utilizado no Brasil em torno dos medos. Os comunistas eram considerados radicais e violentos que querem impor outra forma de vida e que vão contra a família tradicional. Os comunistas são vistos como aqueles que promovem a desordem, ao contrário do conservadorismo, que prega a ordem. É como aquele inimigo que precisa ser combatido”, explica a cientista social e professora Esther Solano (Unifesp) à BBC News Brasil.

Para o historiador e professor Rodrigo Patto Sá Motta (UFMG), muitos críticos do comunismo no Brasil lançam mão de comparações com o nazismo e “números superlativos da violência dos Estados comunistas” numa espécie de tática de propaganda da Guerra Fria, período em que grande parte dos países estavam geopoliticamente divididos entre o bloco capitalista liderado pelos EUA e o comunista, pela União Soviética.

Para Sá Motta, o anticomunismo carrega forte semelhança com o antipetismo. “Não há dúvida que a candidatura Bolsonaro se amparou na tradição anticomunista, que foi reapropriada e adaptada aos novos tempos, o que contribuiu de maneira central para a construção do antipetismo.”

Segundo o pesquisador, o anticomunismo pode ser ridicularizado em memes na internet e ter sua relevância menosprezada, mas esse fenômeno político “abriu caminho e justificou as duas ditaduras mais longevas da história brasileira, e continua ajudando a despertar/provocar a sensibilidade de direita nos dias que correm”.

O chamado “perigo vermelho”, afirma Sá Motta, serviu, por exemplo, para superar divergências entre apoiadores do golpe de 1964, mobilizar a sociedade e superar divisões internas dentro das próprias Forças Armadas em torno da “missão”.

Críticas aos comunistas e acusações de violência

Para muitos, a doutrina marxista e os governos comunistas se tornaram sinônimo de autoritarismo, violência política e totalitarismo, quando Estados de partido único e ditadores proclamaram o marxismo como sua filosofia norteadora.

Parte dos marxistas argumenta que essas experiências comunistas (alvo dessas acusações e críticas) são distorções das ideias de Marx, e que a União Soviética, para muitos marxistas o exemplo máximo de um Estado marxista, era na verdade apenas uma forma de capitalismo de Estado, no qual os donos das fábricas foram substituídos por burocratas do governo.

A questão do uso ou não da violência revolucionária é um dos principais debates dentro do socialismo.

No livro Ideologias Políticas: Uma Introdução, Vincent Geoghegan, professor de Teoria Política da Queens University, afirma que os socialistas se debatem sobre diversas questões práticas e morais desde a emergência da ideologia, no início do século 19, em meio ao desenvolvimento do capitalismo industrial.

Ou seja: quando a ação política radical é legítima? Quando a violência pode ser usada para se chegar a uma sociedade sem violência? Quem são os inimigos do socialismo? Quem será o agente transformador: a classe operária, parte da classe operária, uma aliança da classe operária com setores da burguesia, o povo ou a nação? A trajetória rumo ao socialismo deve passar por insurreições ou pelas urnas?

Nesse racha, resume Geoghegan, um lado é visto como ingenuamente idealista e o outro, como cínico e manipulador.

Ou seja, de um lado, muitos socialistas defendem uma coerência rígida em relação aos valores socialistas durante todo o processo de transformação, a fim de aumentar as chances de sucesso. “Se o objetivo do socialismo inclui paz, respeito aos outros, verdade e integridade, essas qualidades precisam aparecer na transição rumo ao socialismo”, diz Geoghegan.

Do outro lado, o mote é o de que não se faz uma omelete sem quebrar os ovos. Ou seja, ainda segundo Geoghegan, “as resistências ao socialismo são tão grandes na sociedade que a transformação pode demandar o uso de métodos que se afastam do sistema de valores do socialismo. Assim, o uso da violência pode ser necessário, embora o objetivo seja uma sociedade sem violência”.

Reprodução/Foto-RN176 Homem morto na calçada durante a Grande Fome na Ucrânia – DIOZESANARCHIVWIEN-BA INNITZER

O escritor e historiador marxista brasileiro Jones Manoel, militante do PCB e candidato do partido ao governo do Estado de Pernambuco, argumenta em vídeo sobre o tema que o debate em torno da violência e da repressão durante transições socialistas ignora que os processos de modernização capitalista também foram marcados por violência e brutalidade, a exemplo da revolução industrial britânica, da expansão territorial e guerra civil americana e da reforma agrária contra latifúndios aristocráticos na revolução francesa.

“O processo de coletivização (expropriação de propriedades rurais privadas) na União Soviética foi sim violento, só que ele não é um exceção na História, ele é a regra na História. E na história das experiências socialistas no século 20, a coletivização foi a mais violenta de todas, mas não teve depois disso nada semelhante. Não aconteceu em Cuba, na Iugoslávia, na Coreia Popular ou na China.”

Além das acusações de violência política, a mais importante corrente do comunismo posta em prática (o stalinismo) também costuma ser apontado, ao lado do rival nazifascismo, como um exemplo de Estado totalitário, classificação que é rejeitada por alguns pensadores esquerdistas.

No totalitarismo, governantes controlam todos os aspectos da vida privada e social dos cidadãos, além de terem um poder político tão extenso que virtualmente nenhuma liberdade ou autonomia na tomada de decisões é deixada para indivíduos ou grupos fora do sistema de poder político.

Um dos debates mais acirrados sobre o comunismo passa pela quantidade de pessoas que foram mortas pela União Soviética sob Stálin. Especialistas de muitos países fizeram suas próprias estimativas, mas as divergências são enormes. A escassez de dados oficiais confiáveis é o principal motivo para tal, mas há pesquisadores que acusam algumas contagens de serem superestimadas com fins de propaganda anticomunista.

Robert Conquest, historiador inglês, autor de O Grande Terror e um dos primeiros a jogar luz sobre a extensão da violência no regime stalinista, fala em pelo menos 20 milhões de mortos. Entre eles, cerca de 2 milhões de mortos em campos de trabalho forçado (sistema gulag) e outro 1 milhão de execuções sumárias de pessoas acusadas de serem traidoras do regime.

Membros do Partido Comunista, operários, artistas, camponeses e até donas de casa estavam entre o grande número de prisioneiros ou mortos como “contrarrevolucionários” durante uma fase de intensa paranoia capitaneada por Stálin, que incentivava os cidadãos a denunciarem uns aos outros.

Há também os milhões de mortos de fome na Ucrânia durante o período conhecido como Holodomor, ou “morte por inanição”. Segundo Timothy Snyder, historiador americano e professor da Universidade Yale (EUA), cerca de 3,3 milhões de pessoas foram mortas no país quando o regime de Stálin levou a Ucrânia à grande fome com o objetivo de forçar camponeses rebeldes (kulaks) a ampliarem a produção agrícola e trabalharem em fazendas coletivas.

Em 1997, um grupo de pesquisadores europeus lançou a obra O Livro Negro do Comunismo: Crime, Terror e Repressão, que contabiliza cerca de 94 milhões de mortes por regimes comunistas ou socialistas ao redor do mundo, entre eles União Soviética, China, Camboja, Vietnã do Norte, Coreia do Norte, Afeganistão e Cuba.

O livro foi elogiado por historiadores renomados, como o americano Tony Judt, mas gerou bastante controvérsia, inclusive entre os próprios pesquisadores.

Dois deles, Nicholas Werth e Jean-Louis Margolin, afirmaram que havia uma pressão entre os envolvidos para que o número de mortes chegasse a 100 milhões, mas a cifra chegava a algo entre 65 milhões e 93 milhões. Ambos também criticaram as comparações presentes no livro entre o comunismo e o nazifascismo (um dos argumentos é o de que não havia campos de extermínio em massa na União Soviética).

Ao longo das décadas, as críticas, pesquisas e revelações sobre a violência do regime soviético provocaram reações tanto na política quanto na academia. Em 2017, o presidente russo Vladimir Putin afirmou, por exemplo, que inimigos da Rússia “demonizam” excessivamente Stálin como uma forma de ataque ao país.

*Com informações adicionais da BBC News e da BBC News Mundo