Pesquisadores brasileiros criam ‘biblioteca’ de ultrassons de morcegos com 65 espécies do país

Estudo publicado na revista científica Mammal Research busca entender os mecanismos de ecolocalização desses mamíferos e pode auxiliar a entender sua diversidade e promover sua conservação.

ROTANEWS176 E POR BBC NEWS BRASIL 14/08/2018 16h36

Evanildo da Silveira – De São Paulo para a BBC Brasil

Munidos de sofisticados equipamentos de gravação, pesquisadores de quatro universidades brasileiras compilaram os sons de alta frequência (ultrassons) emitidos por 65 espécies de oito das nove famílias de morcegos encontradas no país.

Reprodução/Foto-RN176 Pesquisadores compilaram os sons emitidos por 65 especies de morcegos, entre eles o ‘Molosssops temminckii’ Foto: Divulgação / BBC News Brasil

O trabalho foi publicado em um artigo na revista científica Mammal Research e vai gerar um inventário desses sons, um tipo de “biblioteca” acústica desses animais, que servirá para entender sua diversidade e distribuição nos biomas nacionais.

Além disso, a pesquisa vai melhorar o conhecimento sobre os morcegos, que desempenham papel ambiental e ecológico importante – por exemplo, a polinização de flores, a dispersão de sementes e o controle de populações de insetos.

Também auxiliará na conservação desses mamíferos, possibilitando a identificação de áreas prioritárias para preservação de biodiversidade e dando subsídios às discussões sobre licenciamentos ambientais para grandes obras, que interferem nos biomas do entorno.

A ideia do trabalho surgiu em 2007, quando a cientista Maria João Ramos Pereira, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), iniciou seu doutorado com morcegos na Amazônia brasileira e verificou que existia uma grande lacuna de conhecimento sobre os chamados de ecolocalização desses animais no país e na região das Américas Central e do Sul.

“Desde então, comecei a compilação de informação com base em sons que obtive e em dados publicados ou disponíveis em bases online”, conta.

De acordo com ela, foram recompiladas, no total, 47 publicações de 17 países, que, junto com dados dos próprios pesquisadores, descreveram acusticamente 65 espécies.

“Desse total, para 63 a informação acústica foi retirada da bibliografia e de nossas próprias gravações”, explica a bióloga Adriana Arias Aguilar, também da UFRGS e uma das autoras do artigo.

“Para algumas existem mais de uma fonte de informação (uma delas os nossos sons). Então dessas 63, 17 têm dados que provêm de nossas gravações e, para as duas restantes, as informações acústicas provêm só de nossas gravações.”

O mito da cegueira dos morcegos

O biólogo Frederico Hintze, do Laboratório de Ciência Aplicada à Conservação da Biodiversidade, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), outro participante do estudo, explica que, ao contrário do que muita gente pensa, os morcegos não são cegos.

“Como mamíferos, ele têm uma visão muito parecida com a nossa. Por isso, não enxergam bem no escuro e, para conseguirem voar na ausência de luz, aperfeiçoaram o uso do som para se orientarem e capturarem presas.”

Ou seja, ao longo de milhões de anos de evolução, eles se adaptaram para viver na escuridão da noite ou no breu das cavernas. Diferentemente de outros animais de hábitos noturnos, seu caminho evolutivo não os levou a desenvolver uma visão noturna acurada, como os felinos, por exemplo, mas a uma outra forma de “ver” na ausência de luz: a ecolocalização.

Reprodução/Foto-RN176  Pesquisadores usaram um aparelho para captar ultrassons emitidos pelos animais em locais como Barra do Riveiro (RS) Foto: Divulgação / BBC News Brasil

Esse “sistema de navegação” funciona de maneira semelhante a um sonar, com a emissão de sons de alta frequência, que batem nos objetos ou presas e retornam aos animais, tornando possível que eles percebam o espaço onde estão e localizem tudo o que está parado ou se move ao seu redor.

Para efeito de comparação, o ser humano é capaz de produzir sons entre 85 Hz e 1,1 kHz e consegue e ouvir na faixa de 20 Hz e 20 kHz, enquanto os cães emitem entre 452 Hz e 1,8 kHz e ouvem no intervalo de 15 Hz a 50 kHz.

Os morcegos emitem chamados de ecolocalização que podem alcançar de 10 kHz até 200 kHz e conseguem ouvir frequências semelhantes, dependendo da espécie.

Humanos só ouvem sons de morcegos gravados em ‘câmera lenta’

Hintze explica que, para tornar os sons audíveis aos seres humanos, ele é gravado dez vezes mais lento do que o real – semelhante ao que a câmera lenta usada nas transmissões de futebol faz com as imagens.

Reprodução/Foto-RN176 Morcegos não são cegos, apenas não têm uma visão adaptada para a escuridão noturna Foto: Divulgação / BBC News Brasil

“Dessa forma, as frequências do som baixam 10 vezes também”, diz. “Isto é, se a frequência original é de 70 kHz, utilizando esta técnica ouviremos o som a 7 kHz.”

De acordo com ele, para a gravação dos ultrassons dos morcegos, é necessário usar equipamentos especiais, chamados de detectores de ultrassons.

Esses aparelhos são compostos de um microfone capaz de registrar sons de alta frequência e um dispositivo de gravação de alta performance. Existem vários tipos desses equipamentos, uns mais rudimentares e outros muito avançados, que são utilizados com diferentes finalidades.

Para captar e registrar esses ultrassons no estudo dos pesquisadores brasileiros foram feitas gravações em três situações diferentes. Uma delas no momento de soltura de morcegos que haviam sido capturados. A segunda, na saída de cavernas e outros abrigos conhecidos deles, e a terceira, em tendas de voo – uma pequena “barraca” com um gravador, dentro da qual o animal é colocado para voar.

As gravações foram realizadas em várias partes do país. Hintze e seu orientador, Enrico Bernard, captaram e compilaram informações sonoras de espécies em vários Estados do Nordeste.

“Os nossos colegas gravaram morcegos em estados como Goiás, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Tocantins e até na Guiana Francesa e Costa Rica”, informa. “Todas as gravações foram feitas tanto em áreas urbanas como em locais protegidos.”

Espécies emitem ondas sonoras únicas

O passo seguinte foi a análise desses sons, por meio de um programa de computador específico para isso, e a comparação entre si de alguns parâmetros, como frequências, duração e amplitude.

“Dessa forma foi construída uma biblioteca de sons que, por meio dessa comparação e com ajuda da literatura, puderam ser identificados”, explica Ludmilla Aguiar, da Universidade de Brasília (UnB), que também participou da pesquisa.

Reprodução/Foto-RN176 Os morcegos insetívoros Noctilio leporinus foram uma das espécies estudadas pelos pesquisadores Foto: Reprodução / BBC News Brasil

A identificação de morcegos pelo som é possível porque, tal como ocorre com as aves, cada espécie emite ondas sonoras com características únicas, como a frequência e o intervalo entre os pulsos, por exemplo. Depois, elas são representadas em gráficos (sonogramas e oscilogramas) para facilitar a visualização.

“Esses dados do nosso trabalho ficarão em um repositório, na seção de ecolocalização da Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Morcegos (SBEQ)”, conta Aguiar.

“Eles poderão ser utilizados para comparação e identificação desses animais que venham a ser gravados no futuro.”

O uso da bioacústica (identificação por som) pelos pesquisadores preenche uma lacuna no conhecimento sobre os morcegos insetívoros – as oito famílias estudadas -, que são muito difíceis de capturar com redes de neblina, muito finas e quase invisíveis, usadas para pegar animais voadores.

“Elas são seletivas, capturam com maior facilidade os frugívoros e nectarívoros, diz Aguiar. “Por isso, a maior parte de nossa informação é sobre essas espécies. No entanto, os insetívoros são a maioria e, só com o uso de redes de neblina, são subamostradas.”

Para Hintze, o trabalho é importante também por ter criado o primeiro documento que reúne e sintetiza informações sobre os sinais de ecolocalização de dezenas de espécies de morcegos brasileiros.

“Conseguimos verificar qual a situação atual do uso da bioacústica para o estudo deles no Brasil, quais as perspectivas futuras e as potencialidades dela no país”, explica.

“Tal como dissemos no final do artigo, esperamos que este trabalho seja a faísca que faltava para o crescimento do uso sustentado desse método no estudo desses animais no Brasil.”

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