‘Por que a guerra?’: as cartas que Einstein e Freud trocaram há 90 anos

ROTANEWS176 E POR BBC MUNDO 16/03/2022 14:29

Reprodução/Foto-RN176  Albert Einstein, o pai da física moderna, e Sigmund Freud, o pai da psicanálise, se conheceram na casa do filho deste último em Berlim em 1927.

“Ele é alegre, confiante e gentil, e entende tanto de psicologia quanto eu de física, então tivemos uma conversa muito agradável”, comentou Freud.

Foi a única vez que se viram pessoalmente, mas mantiveram uma amizade por correspondência, às vezes obscurecida pela amargura de Freud.

“O sortudo [Einstein] teve uma vida muito melhor do que eu. Contou com o apoio de uma longa série de predecessores, de Newton em diante, enquanto eu tive que abrir meu próprio caminho por uma selva emaranhada”, escreveu ele à princesa Maria Bonaparte.

Também ressentia sua “juventude e energia que permitem a ele apoiar tantas causas com tanto vigor”.

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Ele mesmo confessou a Einstein “a inveja que não tenho medo de possuir”, desculpando-se pelo fato de que, como físico, Einstein gozava do status de autoridade em seu campo, enquanto ele, como psicólogo, tinha que aceitar que até os ignorantes se atreviam a opinar sobre sua obra.

Um desses ignorantes foi o próprio Einstein, que — quando foi procurado — se recusou a apoiar a candidatura ao Prêmio Nobel que Freud tanto ansiava.

“Apesar de minha admiração pelas realizações engenhosas de Freud, hesito em intervir neste caso. Não consegui me convencer da validade da teoria de Freud”, respondeu o lendário físico em 1928.

A opinião de Einstein sobre a psicanálise melhoraria mais tarde, e ele comunicou isso a Freud quando o parabenizou por seu 80º aniversário.

“Devo dizer a você como fiquei feliz ao saber de sua mudança de opinião”, escreveu Freud.

“É claro que sempre soube que você me ‘admirava’ apenas por cortesia e dava muito pouco valor a qualquer uma de minhas doutrinas. ”

A missão

A impressão de Freud parecia desatinada à luz do entusiasmo com que Einstein o havia escolhido alguns anos antes como seu correspondente, quando o Instituto de Cooperação Intelectual convidou o renomado físico para uma troca interdisciplinar de ideias sobre política e paz com um pensador de sua escolha.

Reprodução/Foto-RN176 Einstein não guardava ressentimentos – CRÉDITO,GETTY IMAGES

“Admiro muito sua paixão por averiguar a verdade, uma paixão que passou a dominar tudo o mais em sua forma de pensar”, escreveu Einstein a Freud em 1931.

A missão deles era entender o incompreensível: por que a guerra?

Mas por que esta missão?

Com as feridas da Primeira Guerra Mundial ainda abertas e as economias em todo o mundo em declínio acentuado, as tensões sociais haviam se agravado e o totalitarismo se enraizado.

A ameaça à paz mundial era palpável.

Reprodução/Foto-RN176 Eles nem sequer imaginavam o que estava prestes a acontecer – CRÉDITO,GETTY IMAGES

É por isso que a Liga das Nações recorreu a um dos cientistas mais influentes do mundo e pacifista perpétuo para pedir a ele que explorasse como a paz mundial poderia ser alcançada — e ele, por sua vez, convidou um dos maiores estudiosos da vida interior dos seres humanos.

Suas cartas foram publicadas em março de 1933 em Paris, simultaneamente em francês, inglês e alemão.

Na Alemanha, o Partido Nacional Socialista proibiu sua divulgação; surpreendentemente, Adolf Hitler, que acabaria levando tanto Einstein quanto Freud ao exílio, já havia chegado ao poder.

Líderes sem poder

Em sua carta, datada de 29 de abril de 1931, Einstein começou se referindo à “profunda devoção” de Freud “pelo grande objetivo da libertação interna e externa do homem dos males da guerra”.

Reprodução/Foto-RN176 Para Einstein, os conhecimentos de Freud eram valiosos na busca de uma solução – CRÉDITO,GETTY IMAGES

“Esta era a profunda esperança de todos aqueles que foram reverenciados como líderes morais e espirituais além dos limites de seu próprio tempo e país, de Jesus a Goethe e Kant.”

“Estou convencido de que quase todos os grandes homens que, por suas realizações, são reconhecidos como líderes (…) compartilham os mesmos ideais. Mas têm pouca influência no curso dos acontecimentos políticos. Parece que praticamente o próprio domínio da atividade humana mais crucial para o destino das nações está inevitavelmente nas mãos de governantes políticos totalmente irresponsáveis.”

Ele prosseguiu argumentando que o único caminho positivo a seguir é por meio do estabelecimento de “uma associação livre de homens cujo trabalho e conquistas prévias oferecem uma garantia de sua capacidade e integridade”.

E reconheceu que, “em vista das imperfeições da natureza humana”, tal associação não estaria livre de todos os defeitos que muitas vezes levam à degeneração.

“Apesar desses perigos, não deveríamos fazer pelo menos uma tentativa de formá-la? Me parece nada menos que um dever imperativo!”

Urgente e envolvente

No verão seguinte, em 30 de julho de 1932, Einstein escreveu novamente a Freud, convidando-o oficialmente a participar do intercâmbio do Instituto de Cooperação Intelectual sobre “este problema urgente e envolvente”.

Reprodução/Foto-RN176 ‘Chega de guerra!’, cartaz do Partido Trabalhista Norueguês, 1930 – CRÉDITO,GETTY IMAGES

“Este é o problema: existe alguma maneira de libertar a humanidade da ameaça de guerra?”

“É do conhecimento geral que, com o avanço da ciência moderna, este tema chegou a significar uma questão de vida ou morte para a civilização como a conhecemos; no entanto, apesar do zelo demonstrado, toda tentativa de solução terminou em um fracasso lamentável.”

O físico explicou a ele que aqueles que se ocupam de forma profissional e prática a abordar o problema estavam “conscientes de sua impotência para enfrentá-lo” — e por isso queriam “conhecer os pontos de vista de homens que, absortos na busca da ciência, podem ver os problemas do mundo sob a perspectiva oferecida pela distância”.

No caso dele, disse Einstein, o assunto que normalmente ocupava seus pensamentos, a física, “não permite vislumbrar os lugares obscuros da vontade e do sentimento humanos”, de modo que ele não podia fazer muito mais do que esclarecer a questão e “limpar o terreno das soluções mais óbvias” para que Freud pudesse iluminá-lo com “seu amplo conhecimento da vida instintiva do homem”.

Utopia

Na carta, ele apresentou suas próprias ideias sobre o que poderia significar uma solução: aquele órgão legislativo e judiciário internacional, que resolveria todos os conflitos por consentimento mútuo, ao qual ele havia aludido na carta anterior.

Reprodução/Foto-RN176 A Liga das Nações já existia, mas não tinha o poder necessário – CRÉDITO,GETTY IMAGES

Claro, ele reconheceu que tal utopia enfrentaria fortes obstáculos.

“Atualmente, estamos longe de ter uma organização supranacional competente para ditar veredictos de autoridade incontestável e obrigar a submissão absoluta à execução de seus veredictos.”

“Portanto, chego ao meu primeiro axioma: a busca da segurança internacional implica na entrega incondicional por parte de cada nação, em certa medida, de sua liberdade de ação, ou seja, de sua soberania, e é claro, sem sombra de dúvida, que nenhum outro caminho pode levar a tal segurança.”

“O desejo de poder que caracteriza a classe dominante em todas as nações é hostil a qualquer limitação da soberania nacional.”

Mas há algo mais: “Essa sede de poder político é muitas vezes apoiada pelas atividades de outro grupo, cujas aspirações estão em diretrizes econômicas puramente mercenárias”.

“Penso especialmente nesse grupo pequeno mas determinado, ativo em todas as nações, composto por indivíduos que, indiferentes às considerações e restrições sociais, consideram a guerra, a fabricação e a venda de armas simplesmente como uma ocasião para promover seus interesses pessoais e ampliar sua autoridade.”

Reprodução/Foto-RN176 O nazismo faria de Einstein mais um imigrante nos EUA – CRÉDITO,GETTY IMAGES

Einstein também formulou uma série de perguntas para moldar a discussão:

“Como é possível que esta pequena panelinha [a classe dominante] subjugue a vontade da maioria, que pode perder e sofrer por uma guerra, a serviço de suas ambições?”

“É possível controlar a evolução mental do homem para torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destruição?”

“Não estou pensando de forma alguma apenas nas chamadas massas incultas.”

“A experiência mostra que é sobretudo a chamada “intelligentsia” que é mais propensa a ceder a essas desastrosas sugestões coletivas, já que o intelectual não tem contato direto com a vida bruta, mas a encontra em sua forma mais fácil e sintética: na página impressa.”

Ele terminou sugerindo a Freud que sua contribuição “pode ​​abrir caminho para novos e frutíferos modos de ação”.

Reprodução/Foto-RN176

 A verdade incômoda

Poucas semanas depois, em 12 de setembro de 1932, Leon Steinig, diretor da Liga das Nações, informou a Einstein que Freud havia aceitado cooperar, embora o advertisse de que o que ele tinha a dizer poderia ser pessimista demais para o gosto das pessoas, pois ele não adoçaria a incômoda verdade:

“Toda a minha vida tive que dizer às pessoas verdades difíceis de engolir. Agora que estou velho, certamente não quero enganá-los.”

Einstein assegurou a Freud que o que procurava era uma resposta psicologicamente eficaz, não otimista.

Com os termos acordados, o psicanalista passou a registrar seus pensamentos em uma carta naquele mesmo mês de setembro.

Violência e direito

Em sua carta, Freud começou manifestando surpresa com a pergunta que Einstein, um físico, fez a ele, um psicólogo.

“Fiquei espantado ao pensar na minha (na nossa, quase escrevi) incompetência; pois me pareceu uma questão de política prática, o estudo adequado do estadista.”

“Mas logo percebi que você não estava fazendo a pergunta como cientista ou físico, mas como um amante de seus semelhantes… E, a seguir, me lembrei que não fui chamado para formular propostas práticas, mas sim, para explicar o ponto de vista de um psicólogo sobre a questão da prevenção de guerras”.

Reprodução/Foto-RN176 Na sua idade, afirmou Freud, ele não estava lá para adoçar a realidade – CRÉDITO,GETTY IMAGES

Esclarecida a questão, Freud passou a descrever sua teoria da trajetória evolutiva da violência, que determina “o que deve pertencer a um ou a outro ou qual a vontade deve ser respeitada”.

Uma referência é a intervenção da arma, que marca “o momento em que a supremacia intelectual começa a substituir a força bruta”.

“A força bruta é derrotada pela união; o poder aliado de unidades dispersas faz valer seu direito contra o gigante isolado. Assim, podemos definir ‘direito’ (ou seja, lei) como o poder de uma comunidade.”

“No entanto, tampouco é nada mais do que a violência, rápida para atacar qualquer indivíduo que se interponha em seu caminho, e emprega os mesmos métodos, persegue os mesmos fins, com apenas uma diferença: é a violência comunitária, não individual, a violência que se sai impune.”

Controle central

Por fim, Freud trouxe sua teoria de volta ao presente.

Reprodução/Foto-RN176 Carta para Einstein escrita por Freud – CRÉDITO,GETTY IMAGES

“Há uma maneira segura para acabar com a guerra, e é o estabelecimento, de comum acordo, de um controle central que terá a última palavra em todos os conflitos de interesse. Duas coisas são necessárias para isso: primeiro, a criação de tal suprema corte do judiciário; em segundo lugar, seu investimento com força executiva adequada”.

Mas uma não é suficiente sem a outra.

“Em nossos tempos, buscamos em vão alguma noção unificadora cuja autoridade seja inquestionável.”

“Está bem claro que as ideias nacionalistas, hoje primordiais em todos os países, operam na direção oposta. […] Portanto, parece que qualquer esforço para substituir a força bruta pelo poder de um ideal está, nas condições atuais, fadado ao fracasso.”

No entanto, em uma passagem menos pessimista do texto, ele observou:

“No aspecto psicológico, dois dos fenômenos mais importantes da cultura são, em primeiro lugar, um fortalecimento do intelecto, que tende a dominar nossa vida instintiva, e, em segundo lugar, uma introversão do impulso agressivo, com todos os seus consequentes benefícios e riscos.”

“Agora, a guerra vai mais enfaticamente contra a disposição psíquica que nos impõe o crescimento da cultura; portanto, somos obrigados a ressentir a guerra, a considerá-la completamente intolerável.”

A humanização

Reprodução/Foto-RN176 Gustav Stresemann, ministro das Relações Exteriores da Alemanha, assinando o Pacto Briand-Kellogg, renunciando à guerra de agressão em 1928 – CRÉDITO,GETTY IMAGES

Embora “não tenha sido chamado para formular propostas práticas”, ele propôs um modelo.

Diferentemente de Einstein, Freud era um elitista que pensava que o papel da “intelligentsia” era impor a ditadura da razão: “Se deve tomar mais cuidado do que até agora para educar um estrato superior de homens com mentes independentes, não abertos à intimidação e ansiosos por buscar a verdade, cuja missão seria orientar as massas dependentes.”

A ideia dele era a humanização por meio da educação, e o que ele chamou de “identificação” com “qualquer coisa que leve os homens a compartilhar interesses importantes”, criando assim uma “comunidade de sentimentos”. Esses meios, ele observou, podiam levar à paz.

No entanto, Freud concluiu com ambivalência e muito ceticismo em relação à eliminação dos instintos violentos e da guerra.

“O resultado destas observações, em relação ao assunto em questão, é que não há chance de que possamos suprimir as tendências agressivas da humanidade.”

Quanto tempo?

Reprodução/Foto-RN176 Cartão postal da União Mundial de Mulheres que dizia: ‘Ser ou não ser. Desarmamento ou Desastre. Esta é a questão. Estão conscientes disso?’ – CRÉDITO,GETTY IMAGES

No final, Freud deixou uma pergunta cujo eco é doloroso diante do que aconteceu durante os 90 anos desde que os dois pensadores escreveram suas ideias:

“Quanto tempo temos que esperar até que o resto dos homens se tornem pacifistas?”

“Impossível dizer, mas talvez nossa esperança de que esses dois fatores — a concepção cultural e o temor justificado das repercussões de uma futura conflagração — possam servir para acabar com a guerra em um futuro próximo não seja quimérica.”

“Por quais caminhos ou desvios aconteceria, é impossível adivinhar.”

“Enquanto isso, podemos confiar que tudo o que contribui para o desenvolvimento cultural também está trabalhando contra a guerra.”

“Com o cumprimento mais cordial, e se você achar esta exposé decepcionante, minhas sinceras desculpas, seu…”

Reprodução/Foto-RN176

* Você pode ler uma das cartas de Albert Einstein e Sigmund Freud (ligeiramente abreviadas) no site da Unesco (em espanhol).