Por que Estados Unidos não devem se desculpar por Hiroshima

Visita de Obama vai reativar um debate que nunca acaba sobre o bombardeio atômico que encerrou a guerra

ROTANEWS176 E VEJA 21/05/2016 14:29

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Reprodução/Foto-RN176 Brumas da guerra: militar americano do grupo preso pelos japoneses; três foram executados

O passado não acaba nunca. Uma das questões históricas e morais mais avessas à cicatrização é a das bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki para levar o Japão a aceitar a derrota e assinar a rendição, no capítulo final da II Guerra Mundial.

O presidente Barack Obama vai visitar Hiroshima na próxima sexta-feira e inevitavelmente provocar queixas. Por suas tendências anteriores, ele deverá fazer algo bem parecido com um pedido de desculpa, mesmo que amortecido entre invectivas contra as guerras. Será chamado de traidor. Nada do que diga, porém, acalmará aqueles que consideram o uso único, até hoje, de armas atômicas, um crime de guerra que, entre as vítimas da explosão em si e as da radiação, deixou quase 200 mil mortos.

Mais adiante, voltaremos à discussão entre historiadores. Mas, como a visita de Obama trará, de novo, mais visibilidade às imagens terríveis e conhecidas pela maioria da humanidade das cidades calcinadas e dos corpos descarnados dos sobreviventes, vamos lembrar aqui um episódio do qual poucos sequer ouviram falar, fora da China.

Antes, é preciso resumir a história de um bombardeio planejado pelo tenente-coronel Jimmy Doolittle, um daqueles pilotos de filme de guerra. A ideia era retaliar, mesmo que de maneira quase simbólica, o ataque contra Pearl Harbour, o bombardeio japonês contra a Marinha americana no Havaí que levou à guerra entre Japão e Estados Unidos.

Os dezesseis bombardeiros modificados que participaram da Operação Doolittle, operados por 80 voluntários, decolaram do porta-aviões Hornet para um voo e uma missão sem precedentes: bombardear alvos militares em Tóquio, levando a guerra ao coração do inimigo. Como não podiam voar de volta, seguiram até a China, numa área longe do controle direto dos invasores japoneses. Todos os aviões estraçalharam-se em pousos forçados, mas a maioria dos tripulantes conseguiu saltar. Oito foram capturados imediatamente pelos japoneses. Dentre eles, três foram executados, um morreu de inanição e os outros conseguiram sobreviver às condições bárbaras até a libertação.

Os tripulantes americanos que conseguiram escapar foram ajudados, famintos e feridos, por chineses e missionários estrangeiros das províncias de Zhejiang e Jiangxi. Foi contra elas que a força japonesa de ocupação desfechou a operação de represália coletiva.

O padre americano Wendelin Dunker estava numa cidade da região e descreveu assim o que os japoneses fizeram: “Eles fuzilaram todos os homens, mulheres, crianças, vacas, porcos ou qualquer outra coisa que se mexesse. Estupraram todas as mulheres e meninas entre 10 e 65 anos. Antes de incendiar a cidade, saquearam tudo. Os humanos não foram enterrados, mas deixados para se putrefazer com o gado e os porcos.”

Em Nancheng, uma cidade antiga cercada por muralhas, outro missionário americano, Frederick McGuire, deixou relatos de um horror indizível. Logo de início, 800 meninas e mulheres foram trancadas num barracão para os estupros coletivos, semelhantes aos que o Exército Islâmico pratica hoje no Iraque e na Síria. Não havia fuga possivel. Durante um mês, os soldados japoneses rondavam pelas ruas de Nancheng, “bêbados quase todo o tempo”, usando apenas roupa de baixo em busca de vítimas para estuprar. Ao fim, o incêndio da cidade de 50 mil habitantes durou três dias.

Os chineses que haviam ajudado os pilotos americanos, que deixaram luvas, cigarros e até paraquedas num sinal de agradecimento que selaria seu destino, foram torturados de diferentes maneiras. Depois, alguns foram obrigados a comer excrementos e fazer fila para o “concurso de tiro”: eram enfileirados e os japoneses apostavam quantos conseguiriam matar com uma só bala. Outro foi embrulhado num cobertor, amarrado numa cadeira, embebido em querosene e queimado vivo. A mulher dele foi quem teve que atear fogo.

Das 28 cidades da região, só três escaparam ao massacre por terra e aos bombardeios aéreos. Ao deixarem as províncias, as forças do exército imperial usaram armas biológicas manejadas pela Unidade 731, um grupo secreto. Agentes patológicos de cólera, antrax e tifo causaram vítimas em número impossível de ser calculado, pois todos os postos de atendimento médico haviam sido destruídos.

Aproximadamente, 250 mil pessoas foram mortas na operação de represália. Ao todo, na China, que ainda vivia sua própria guerra civil, o número de mortos na II Guerra é calculado em dez milhões.

Obviamente, esta história pouco conhecida foi resumida para dar uma ideia da quantidade de crimes de guerra praticados pelo Japão durante o período em que foi tomado por uma ideologia fascista que pretendia se estender por quase todo o Oriente, movida por conceitos de superioridade racial.

Nada, porém, altera a essência da pergunta feita no inicio: existiram ou não justificativas militares e morais para as bombas atômicas recém-saídas do laboratório secreto de Los Alamos, cujo uso foi autorizado por Harry Truman apenas três meses depois de se tornar presidente, com a morte de Franklin Delano Roosevelt.

As dúvidas começaram a aflorar menos de um ano depois do lançamento das bombas, com a consequente rendição incondicional do Japão – mantido, porém, o imperador em cujo nome todas as atrocidades haviam sido praticadas, mas considerado importante na crucial reconstrução do país conduzida pelos Estados Unidos. “É a minha opinião que o uso dessa arma bárbara em Hiroshima e Nagasaki não consistiu em ajuda material em nossa guerra contra o Japão”, escreveu um ex-integrante do Estado Maior durante a grande guerra, William Leahy. “Os japoneses estavam quase derrotados e prestes a se render. Ao usá-la, adotamos o padrão ético vigente entre os bárbaros da Idade das Trevas.”

Até hoje, um raciocínio semelhante é usado entre a corrente dos “revisionistas” americanos – os da historiografia “marxista” simplesmente dão a questão por encerrada ao sustentar que o único objetivo era intimidar a União Soviética e estamos conversados, para que se preocupar, por exemplo, com documentos e outros instrumentos de estudo? “A alegação de que a bomba evitou a morte de 500 mil americanos é insustentável”, escreveram Gar Alperovitz e Kai Bird, dois estudiosos do assunto.

O físico e polemista Henry I. Miller mantém a correção da análise feita na época pelo Estado Maior americano. Depois de todo o sangue derramado na guerra do Pacífico, que ainda por cima não tinha o terror, o drama e a glória de fácil entendimento do teatro europeu, a invasão do Japão, com resistência até a morte dos militares e parte da população civil, resultaria em cerca de 1,2 milhão de baixas nas forças americanas, das quais 267 mil mortes.

Ou até mais, diz ele: “Um estudo feito pelo físico William Shockey para a equipe do secretário da Guerra Henry Stimson calculou que a invasão do Japão custaria de 1,7 a 4 milhões de baixas entre os americanos, incluindo de 400 mil a 800 mil fatalidades, e de cinco a dez milhões de mortes entre os japoneses.”

O bombardeio em massa de civis foi um dos aspectos mais trágicos da II Guerra. A Alemanha nazista começou, lançando os ataques contra cidades inglesas, ao longo do terrível ano da Batalha da Inglaterra. Só em Londres, morreram 30 mil pessoas.

Mais tarde, Dresden e Hamburgo também sofreram ataques mortíferos. O bombardeio de Tóquio, com bombas incendiárias convencionais, causou mais vítimas do que o de Hiroshima. Só para lembrar: quem declarou guerra aos Estados Unidos foi o Japão, numa iniciativa fantasticamente estúpida e providencial para o presidente Roosevelt e seus aliados vencerem a resistência interna à participação americana na guerra.

A força do povo japonês e a visão estratégica dos americanos se uniram para refazer, com resultados excepcionais, um país destruído pelo próprio delírio de seus governantes, tal como na Alemanha.

Generalizar os males da guerra e considerar que todos foram vítimas indiscriminadas das forças malignas que elas desencadeiam é obscurecer os acontecimentos históricos. Mesmo que o passado histórico continue a mudar o tempo todo, movido pela capacidade humana de se analisar e criticar. Isso não significa não honrar e sofrer pela memória dos mortos de Hiroshima e Nagasaki.