Primeira travessia aérea do Atlântico Sul completa 100 anos

ROTANEWS176 E POR PLANETA 25/02/22 12h40

Reprodução/Foto-RN176 Cabral e Coutinho pouco antes de partirem. Crédito: Arquivo Histórico da Força Aérea Portuguesa

Recife, junho de 1922. Um repórter perguntou ao recém-chegado piloto português: “O que lhe passou pela cabeça para fazer essa viagem?”. “Nada. Se tivesse passado, não teria feito”, respondeu o capitão-tenente aviador Artur de Sacadura Freire Cabral (1881-1924). No dia 5 desse mês, ao chegarem à capital de Pernambuco, ele e seu navegador, o capitão de mar e guerra Carlos Viegas Gago Coutinho (1869-1959), haviam completado a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, entre Portugal e Brasil, depois de viajarem 8.383 quilômetros em 62h26min de voo, desde Lisboa, de onde partiram em 30 de março (ver o mapa da viagem abaixo). Antes da metade da viagem, pensaram que cairiam e morreriam no mar quando viram que o primeiro hidroavião – dos três que foram usados – consumia mais combustível do que o previsto.

“Foi uma viagem tensa, em um avião biplano [uma asa sobre outra], monomotor, aberto, portanto os aviadores estavam sujeitos ao vento e à chuva, com equipamentos precários”, comenta o físico Henrique Lins de Barros, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), do Rio de Janeiro, e estudioso da vida e obra de Alberto Santos-Dumont (1872-1932) (ver Pesquisa Fapesp nº 138), que relatou o encontro do aviador português com o repórter. Segundo ele, essa viagem marcou o início da navegação aérea, por causa de dois aparelhos inventados por Coutinho e usados na viagem – o sextante aéreo e o corretor de rumos.

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Adaptado do equivalente naval, o sextante indicava a altura dos astros (Sol ou estrelas) e a latitude sem recorrer ao horizonte, como nos navios. Como o avião estava sempre em movimento, dificultando a medição, Coutinho criou um horizonte artificial, com um nível dotado de uma bolha de ar, como o usado por pedreiros para alinhar paredes. Coutinho descreveu o sistema de horizonte artificial em 1919 na revista Anais do Clube Militar Naval e o testou com Sacadura Cabral em 1921 em uma viagem de 972 quilômetros (km) entre Lisboa e a Ilha da Madeira. Além da posição, era necessário determinar a rota descontando o efeito do vento, por meio de boias atiradas ao mar em combinação com o corretor de rumos. “Os dois aparelhos permitiram aos aviadores voar grandes distâncias sem referências terrestres”, ressalta Barros.

Precursores

Cabral relatou que teve a ideia de atravessar o mar após a visita de Epitácio Pessoa (1865-1942), então presidente do Brasil, a Lisboa, em junho de 1919. Um mês antes, o hidroavião Curtiss NC-4, com 20,8 metros (m) de comprimento e 38,4 m de envergadura, pilotado pelo comandante norte-americano Albert Cushing Read (1887-1967), completara a primeira travessia aérea transatlântica, uma viagem de 6 mil km, executada em 23 dias, com 6 paradas no mar, entre Nova York, nos Estados Unidos, e Plymouth, na Inglaterra; uma frota de 68 navios, estacionados a cada 50 a 75 milhas (92 a 140 km), ajudavam a orientar o caminho e a dar assistência em caso de pouso na água; dos três aviões que partiram, cada um com sua tripulação, apenas um chegou. Cabral integrou a comitiva que recepcionou Read na escala em Lisboa.

Logo depois, em 14 de junho, o capitão John Alcock (1892-1919) e o tenente Arthur Whitten Brown (1886-1948), ambos britânicos, fizeram a primeira viagem sem paradas, em um avião bimotor Vickers Vimy, com 13,28 m de comprimento e 20,75 m de envergadura; guiando-se apenas com uma bússola e um sextante, percorreram 3.186 km entre Terra Nova, no Canadá, e Chifden, na Irlanda, em 12 horas.

Nessas duas viagens, “não se tinha utilizado a navegação astronômica, pois na [maior] distância a vencer, 400 milhas [780 km, entre duas escalas], seria bastante lançar-se mão da navegação estimada”, comentou o coronel aviador brasileiro Manuel Cambeses Júnior (1942-2019) no livro A primeira travessia aérea do Atlântico Sul (Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica, 2008). Barros reitera: “Nessa época os aviadores não conheciam o regime dos ventos, que poderiam desviar o avião da rota, e os aviões ainda eram perigosos. Em 1914, no início da Primeira Guerra Mundial, a França proibira o uso de aviões, alegando que matava mais pilotos do que inimigos”.

Reprodução/Foto-RN176 Homenagem ao Brasil

Em seu relato de viagem, Cabral escreveu que pretendia homenagear o Brasil, que completava 100 anos de Independência de Portugal, e fortalecer os laços de amizade entre as duas nações. Seu plano era mobilizar as Marinhas dos dois países, mas relatou apoio apenas do governo português.

“Ao planejar a viagem, quando viram que teriam de pousar no mar, ou amerissar, porque a distância era muito grande, Cabral e Coutinho concluíram que teriam de usar um hidroavião, menos potente e menos veloz que os Vickers”, comenta o engenheiro mecânico Marcello Augusto Faraco de Medeiros, da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (Eesc-USP), estudioso dessa história. “Um dos problemas deles é que os hidroaviões não foram feitos para percorrer grandes distâncias porque, entre outros motivos, são menos aerodinâmicos que outros tipos de avião.”

Para entender melhor os relatos da viagem, o engenheiro mecânico e velejador Jacques Waldmann, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), consultou um livro deixado por seu pai, Concise spherical trigonometry, de Jacques Redway Hammond (Houghton Mifflin, Boston, 1943). Sua primeira conclusão: “Eles usaram um conhecimento sobre navegação celestial com trigonometria esférica empregando sextante, cronômetro, bússola, almanaques náutico e aéreo e carta de estrelas que não se ensina mais nas escolas, mas ainda poderia ser útil, em caso de pane dos sistemas GPS, de que hoje dependemos tanto”. Indagado se iria com os dois portugueses, se pudesse, ele responde: “Há 40 anos eu acharia divertido, mas hoje, aos 60, teria receio”. Medeiros e Barros são mais incisivos: não iriam, de modo algum. “Era uma viagem de alto risco”, argumenta Medeiros.

Reprodução/Foto-RN176 Risco elevado

Cabral e Coutinho prepararam três aviões Fairey 3, fabricados na Inglaterra e comprados pela Marinha portuguesa. A bordo do primeiro, Lusitânia, com 11,2 m de comprimento e 19,1 de envergadura, decolaram de Lisboa às 7h de 30 de março. Fizeram escalas nas ilhas Canárias e em Cabo Verde, preparando-se para o trecho seguinte, o mais longo e difícil, totalmente sobre o mar: os 1.682 km até o arquipélago de São Pedro e São Paulo, um conjunto de ilhotas rochosas a 986 km da costa brasileira. “O risco de não conseguirem acertar a ilha no meio do mar era grande”, comenta Medeiros. “Eles tinham de verificar a rota o tempo todo ou corrigi-la sempre que o vento mudava.”

No relato de viagem, Waldman verificou que os aviadores viajavam de 200 a 300 m de altitude, medida por meio de um aparelho chamado aneroide. Cabral descia a 30 m quando Coutinho precisava atirar as chamadas boias de fumo, um composto de fosforeto de cálcio, que se incendiavam ao tocar o mar. As boias, em conjunto com a fumaça resultante dessa reação, serviam como pontos de referência para reorientar a rota, por meio do corretor de rumos. As oscilações no avião causadas pelo vento poderiam também prejudicar as medições do sextante.

Além da incerteza sobre o rumo, os dois aviadores viram que o avião estava consumindo mais combustível do que o previsto. Depois, em seu relato de viagem, Cabral reconheceu que esse foi o trecho mais difícil da viagem: “Durante nove horas e meia vivi sempre na incerteza de ter ou não combustível suficiente para chegar ao final da etapa”.

Reprodução/Foto-RN176 Três litros no tanque

Coutinho fez os cálculos corretos. Chegaram ao arquipélago às 17h, após 11 horas de viagem sem parar, com apenas três litros de gasolina no tanque, e logo viram o navio português República, que os esperava, como planejado. O mar estava revolto e uma onda quebrou um dos flutuadores, fazendo o avião inclinar-se rapidamente, e os dois aviadores tiveram tempo apenas de pegar os instrumentos de bordo antes de saltar a bordo do navio e o Lusitânia afundar.

Cabral e Coutinho seguiram no República até Fernando de Noronha para aguardar o segundo Fairey, chamado de Portugal, enviado pelo governo português. Instalaram um tanque extra de combustível e retomaram a viagem em 11 de maio. Decidiram retornar a São Pedro, para não deixar o trecho incompleto, mas o motor falhou e eles amerissaram. Sem conseguir fazê-lo voltar a funcionar, os dois aviadores passaram nove horas flutuando com o hidroavião até um navio inglês os encontrar.

Reprodução/Foto-RN176

Chamado, o República os resgatou novamente e salvou apenas o motor da aeronave. O terceiro hidroavião, Santa Cruz, chegou a Fernando de Noronha em 2 de junho a bordo de outro navio português. E com o Santa Cruz chegaram a Recife, passaram por Salvador e Vitória, no Espírito Santo, e concluíram a viagem no Rio de Janeiro em 17 de junho.

No Rio, como nos outros lugares por onde passaram, foi um dia de festa. “A cidade está toda ornamentada. Não há prédio, no centro, que não tenha a sua fachada embandeirada”, relatou o jornal santista A Tribuna em 18 de junho de 1922. Durante o desfile com os dois aviadores pela cidade, “os brados da multidão misturavam-se aos apitos das sereias de dezenas de lanchas, vapores e vasos de guerra, cujas tripulações formavam no tombadilho”.

Reprodução/Foto-RN176 Outros voos

No Rio, entre as autoridades políticas e representantes da comunidade portuguesa que receberam os pilotos pioneiros em jantares estava a paulista Theresa di Marzo Roesler (1903-1986), a primeira aviadora brasileira, que havia recebido o brevê em abril daquele ano. Em 1926 ela se casou com seu instrutor, o piloto alemão Fritz Roesler (-1971), que a proibiu de continuar voando, sob a alegação de que um aviador na família já seria o bastante. Cabral havia morrido dois anos antes, em 1924, em um desastre aéreo, quando voltava de Amsterdã, nos Países Baixos, para Lisboa. Coutinho viveu até os 90 anos.

Em junho de 1926, o piloto paulista João Ribeiro de Barros (1900-1947), com seu amigo mecânico Vasco Ciquini (1900-1930), viajou para a Itália com o propósito de comprar, com recursos próprios, um hidroavião, com o qual pretendia atravessar o oceano. A fabricante Savoia-Marchetti não quis vender um avião novo, com receio de que um eventual fracasso prejudicasse a imagem da empresa. O aparelho usado que ele conseguiu comprar quase afundou em um teste, depois foi reformado e ganhou o nome de Jahu, cidade natal de Barros, com a grafia antiga. Era um hidroavião de madeira, bimotor, com 16,2 m de comprimento e 24 m de envergadura, no qual Barros, Ciquini, o copiloto João Negrão (1901-1978) e o navegador Newton Braga (1882-1959) partiram de Gênova, um porto no nordeste da Itália, em 17 de outubro  de 1926. Após várias paradas não planejadas, para consertar o motor e trocar o combustível, que havia sido adulterado, chegaram a Natal, capital do Rio Grande do Norte, em 14 de maio de 1927.

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Em 20 de maio de 1927, sozinho, o piloto norte-americano Charles Lindbergh (1902-1974) saiu de Nova York em seu avião The Spirit of Saint Louis e chegou a Paris no dia seguinte, após 33h31min de viagem. Foi também nesse ano que uma versão aprimorada do sextante de Coutinho, fabricada pela empresa alemã Plath com autorização da Marinha portuguesa, foi testada a bordo de um avião Argos em uma viagem entre as cidades de Lisboa e do Rio de Janeiro. No Brasil, esse ano marcou a criação da Viação Aérea Rio-Grandense (Varig), uma das primeiras companhias aéreas do Brasil, extinta em 2006.

Na década de 1950, as hélices foram substituídas por turbinas, com mais potência, aumentando a velocidade dos aviões em cerca de 10 vezes. Hoje um avião Airbus, com quatro turbinas, 75 m de comprimento e 68 m de envergadura, levando 380 passageiros, faz a viagem entre Recife e Lisboa sem escalas em 7h15.

* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.