ROTANEWS176 E POR NÓS 13h51 Por Lúcia Soares
Cantora nunca perdeu aquela aura de padroeira da liberdade, alcunha que dizia preferir no lugar de rainha do rock.
Reprodução/Foto-RN176 Rita Lee morreu nesta terça-feira, 9, aos 75 anos Foto: Reprodução/Instagram
O ano era 1994. Rita Lee acabava de fazer o curta-metragem Tanta Estrela por Aí (1993), do diretor Tadeu Knudsen, no papel de ninguém mais, ninguém menos que Raul Seixas. Rita topou falar comigo sobre o amigo músico para uma matéria especial que relembrava vida e obra do Maluco Beleza, que tinha partido em 1989.
Fui até o apartamento onde Rita morava na época, nas proximidades da Avenida Giovanni Gronchi. Estava situado mais para os lados da Vila Andrade do que para as bandas do Morumbi, na zona sul de São Paulo. “Você viu que estou morando agora em Sorocaba?”, brincou Santa Rita de Sampa ao se referir ao novo endereço. Considerava estar em outra cidade, distante do centro e de Higienópolis, bairro onde havia morado antes. Não dava mais conta de como a antiga redondeza tinha ficado esnobe, se achando Paris demais na sua visão.
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Com óculos de lentes azul clara, cabelos tingidos de ruivo, batom vermelho, conversava com a voz doce característica, naquele tom de “mezzo soprano” que Roberto de Carvalho, seu companheiro de música e vida, definiu como o mais lindo que já ouviu. Tudo o que Rita dizia era de uma irreverência deliciosa e eu só absorvia.
Tinha um jeito único de contar como havia incorporado o Maluco Beleza nas telas. Dizia que, sem perceber, se pegou falando com sotaque baiano, dizendo coisas como “e aí, meu irmão”, bem típicas da fala de Raul. Achava que havia uma coincidência meio mágica nessa história de dar vida ao roqueiro no cinema. Prova disso é que até mesmo as roupas dele, que Rita andou experimentando, pareciam sob medida para ela. “Menina, coube tu-do”, disse ela incrédula. Aquilo era muito mais do que uma simples coincidência.
Para Rita, o músico era alguém que tinha vindo à terra em algum disco voador e partido da mesma maneira. Como boa hippie, como se definia, sempre teve fascínio por temas que escapam pelas frestas da nossa compreensão. Dizia ser de todas as religiões e ao mesmo tempo de nenhuma. Mas enfatizava que sua maior predileção eram os extraterrestres.
Rita abordava o tema de uma maneira cheia de espiritualidade. A insignificância humana diante da imensidão cósmica, o fato da terra ser apenas um pixel azul num universo infinito, despertava questões na artista. O desejo de não estar na mais completa solidão no sistema solar, de haver seres mais evoluídos capazes de se comunicar com a gente (quem sabe até nos ajudar) foram inspiração para várias canções de Rita. Entre elas, Disco Voador e Alô, Alô Marciano, essa última eternizada na voz de Elis Regina.
Todas essas composições foram escritas a partir de 1978, desde o lançamento do histórico álbum Babilônia, o primeiro fruto de umas parcerias mais inspiradas da música brasileira: a de Rita e Roberto.
Em 2023, às vésperas de Rita completar 73 anos, o casal entrevistou um ao outro para uma matéria publicada pelo Estadão. As declarações fizeram até os corações mais descrentes, acreditarem na existência de um amor que sobrevive a tudo.
Rita perguntou como Roberto era capaz de aguentá-la por mais de quatro décadas sendo, em suas palavras, “uma mulher esquisita, uma ex-presidiária, ex-AA (Alcoólicos Anônimos), ex-NA (Narcóticos Anônimos)”, que era cinco anos mais velha que o companheiro e ainda “sem peito, sem bunda e fumante”. Roberto então deu a resposta mais linda possível à companheira. Contou que era um homem apaixonado desde sempre por ela e só enxergava o oposto do que Rita dizia ser.
Em vez de esquisita, Roberto via Rita como original e genial. Já os peitos, ou a falta deles, tinham sido capazes de amamentar os três filhos do casal (Beto, João e Antônio). Em vez de 5 anos mais velha, ela era apenas “mais antiga”. Em vez de ex-presidiária, Roberto via a mulher como injustiçada e vítima da repressão da ditadura militar.
Em 1976, Rita Lee depôs contra um policial envolvido na morte de um garoto durante um show dos Mutantes. Logo depois, foi levada ao Deic e colocada numa cela sob acusação de uso e porte de drogas, embora estivesse sem usar nada naquele momento. Grávida de seu primeiro filho, Beto Lee, Rita ficou presa, totalmente desamparada, até que do nada recebeu uma visita inesperada. Era Elis Regina, que na época dos Mutantes e do Tropicalismo era de uma turma muito diferente da de Rita. Elis chegou a fazer parte da passeata contra as guitarras elétricas na MPB. Mesmo não sendo próxima, Elis se solidarizou com a colega de ofício.
A cantora gaúcha confrontou os policiais, ameaçou chamar a imprensa e sua atitude foi fundamental para que Rita fosse liberada depois. A partir daí, Rita e Elis se tornaram amigas- e que amizade mais poderosa. Estavam unidas pelo melhor espírito “mexeu com uma, mexeu com todas”. Essa foi uma das muitas histórias que compuseram a rica biografia da roqueira.
Certa vez, Rita brincou que era praticamente um museu, de tanta coisa que tinha vivido. É impressionante como Rita esteve presente nos momentos mais importantes da música brasileira, como o surgimento da Jovem Guarda, da Tropicalismo e do rock. Tudo isso na companhia de gênios, como Gil, Caetano, Tom Zé, Tim Maia, Ben Jor, Elis. É história à beça.
Ela se manteve fiel ao que se propôs desde o início. Nunca perdeu aquela aura de padroeira da liberdade, alcunha que dizia preferir no lugar de rainha do rock. Achava cafona esse título. Tinha um eterno jeito de menina levada, de quem está sempre pronta a disparar um comentário irreverente, uma sacada debochada, típica de quem tem a sabedoria de não se levar tão a sério.
Que sorte a nossa poder dividir o mesmo tempo, a mesma galáxia com essa artista visionária, fashionista, libertária, tropicalista, bossanovista, roqueira. A autora e intérprete genial de algumas das melhores trilhas da nossas vidas. Alguém que fez um monte de gente feliz através da música. E, ao mesmo tempo, foi tão única num universo de 200 bilhões de estrelas. Rita, suas canções e histórias ainda vão reverberar viajando na velocidade da luz para, como ela mesma cantou, viver o amanhã e sempre.